TESTEMUNHO DE CIDADE DE DEUS

Ana Rita de Jesus, 50 anos, doméstica, moradora da Quadra 4, casa 10, triagem, há 25 dias.

Lenço à cabeça, uma malha ordinária nos ombros, evitando a chuva, encolhendo­-se. Atarracada, um metro e sessenta, se tanto, vestidinho simples, negra, gorda, nervosa, dizendo ter um pouco mais de cinquenta anos. Ela não sabe exatamente, a certidão de nascimento perdeu­-se entre os parentes mineiros que a criaram em Boa Espe­rança. Está num ponto de ônibus do Largo de São Fran­cisco, centro da cidade, esperando condução para a Cidade de Deus, na manhã depois do Natal. Chove há dois dias no Rio. Ela responde que vai para Cidade de Deus num muxoxo, desdenhando. Logo sorri amarelo, abespinhada e amarga:

“Vou. Vou pra Cidade de Deus, do Diabo, dos ladrões e dos mendigos. A minha vizinhança lá é só ladrão e mendigo. Nem quero falar nisso que fico mais nervosa. Rou­baram tudo o que eu tinha de bom lá. Foram os meus vizinhos que carregaram. Levaram o fogãozinho de duas bocas, o toca­-discos, o bujão de gás, tudo novo que eu tinha comprado para mudar para lá. O meu marido foi reclamar e conseguiu que o pessoal do Distrito prendesse um dos ladrões. Mas as coisas que eles roubaram não voltaram para a minha mão. E os outros ladrões, que foram presos, ameaçaram ele de morte: ‘você vai caguetar que a gente te apaga numa quebrada’. Então, o meu marido, que não é besta, nem nada, resolveu dar no pé e abandonou tudo. Casa, mulher e tudo. Depois, sabe, ele trabalha numa construção, lá no Leblon; e o que ele ia fazer lá naquela lonjura, só pra dormir? Falando bem, aquilo nem é casa, é um lixo. Lá eu não consigo dormir à noite por causa do mau cheiro da fossa. Eu trabalho e durmo no meu emprego, em Ipanema. Ganho cento e cinquenta cruzeiros por mês. Faz três anos, consegui ajuntar um dinheiro na Caixa Econômica e dei oitocentos cruzeiros para comprar uma casa na Cidade de Deus. Mas casa, não aquele lixo. Acho que me tomaram por algum mendigo da rua.”

O ônibus rola pela Avenida Presidente Vargas, ganha o Viaduto dos Marinheiros. A doméstica Ana Rita de Jesus está rindo e chorando ao mesmo tempo. À pergunta de por que não consegue viver na Cidade de Deus:

“Por causa dos ladrões. Eu deixei meu barracão na Gávea, na Estrada da Gávea, que era um pouco melhor do que o que me deram. Na Gávea nunca me roubaram nada e os vizinhos eram de mais confiança. O pessoal na favela se ajuda muito. Eu queria uma casinha com um cômodo, banheiro e cozinha. Só isso.”

Ana Rita de Jesus deu os oitocentos cruzeiros. Foi colocada numa das triagens de Cidade de Deus, onde ficam as pessoas de ínfima condição econômica.

“Meu marido, que vive comigo a menos de um ano, com a mudança não aguentou o rojão e, amedrontado com os roubos, deu no pé. Ele é pedreiro, trabalha em obras perto do Leblon. O nome dele é Raimundo Gomes de Lima. Não, não tenho nenhum parente no Rio de Janeiro. Voltaria com muita alegria para a favela. Mas o meu barraco já foi derrubado e agora não tem mais jeito.”

“A Quadra 4 fica numa das triagens da Cidade de Deus, local provisório onde se alojam ex­-favelados, cujos barracos foram derrubados pela CHISAM. Promiscuidade, insegurança, falta de higiene, fedor permanente, fossas entupidas. Se chove, as águas não têm para onde escorrer, ficam empoçadas nos arruamentos de terra. Há o perigo de enchentes, que o Rio Fundo, ali perto, costuma transbordar. Defendendo­-se do fedor das fossas entupidas da triagem, alguns moradores usam creolina e fecham portas e janelas quando vão comer.”

A doméstica Ana Rita de Jesus desce no ponto terminal do ônibus 226, Largo de São Francisco–Cidade de Deus, enfrenta a chuvinha renitente, ganha o asfalto já meio arruinado, esburacado, da alameda principal de Cidade de Deus, em que às quartas­-feiras e domingos, há feiras. Nos seus começos, a feira lembra a pobreza extrema de certas feiras do Nordeste, muita sujeira e muitos meninos negros com suas carretas para auxiliar, a troco de gorjeta, o transporte de compras das donas de casa. Depois, caminhando­-se, a feira vai se parecendo com todas as do Rio de Janeiro. Os preços, segundo Ana Rita de Jesus, empatam com os de Ipanema e a qualidade tem alguma diferença. Em Ipanema é melhor.

Passada a feira, na alameda das casas melhores do conjunto, de dois a três quartos, entra­-se por ruas cada vez pior pavimentadas e se ganha os arruamentos de terra. É uma das triagens.

Sem dúvida, as dobradiças foram forçadas, a janelinha está empenada e a chave corre com dificuldade na fechadura da porta. Houve assalto na casa da doméstica Ana Rita de Jesus. Sobraram os caixotes onde ela espalha, arruma seus santos, a tarimba com o colchão de crina coberto mal com uma manta encardida. A casa é um quarto só, com um banheiro minúsculo. A porta dos fundos dá para um corredor de meio metro de largura por dois de comprimento. E se tem o tanque, o fedor da fossa entupida aumenta.

A doméstica diz que veio apenas para verificar se não haviam carregado, durante a noite, o resto de seus bagulhos, santos e enfeites. Porque ali não fica, embora não saiba onde ficar.

“Mesmo que arrumem este lixo, eu não quero voltar. Meu companheiro já disse que vai me abandonar. Eu dormia no emprego. No correr da semana e quando era domingo, vinha pra cá. Agora, a patroa diz que vai tirar férias e viajar. Não tenho parente nenhum no Rio e pelo jeito vou ter de arrumar outro emprego ou ficar na rua. É melhor a rua do que aqui. Já não vou falar mais com a polícia porque os ladrões, tudo meu vizinho, disseram que, se eu reclamar, eles me matam. Meu marido já se mandou. Sabe, se eu pudesse, voltava com muita alegria pra favela!”

Alcebíades Alves Pereira, 49 anos, solteiro, ajudante de carpinteiro, morador do Bloco B – casa 13, triagem, há 28 dias.

Magro, cabelos grisalhos, puxando de uma perna, beirando cinquenta anos, Alcebíades recebe um auxílio­-doença de Cr$ 159,00 do INPS, em Copacabana, e vive com o resto, que tira de biscates. Solteiro e sozinho. Tem um fogão de quatro bocas, onde faz a comida e o café. Deu sorte, segundo ele. Sua casa, na triagem, tem um quartinho, uma sala e banheiro conjugado. Tem um guarda­-roupa cambaio e uma cama, no quarto. O resto dos móveis são banquinhos e uma mesa feita de caixote e repintada. Todos os dias, pela manhã, apanha dois ônibus, um de Cr$ 1,00 e outro de Cr$ 0,80 e chega a Copacabana, para defender biscates e apanhar uns trocados:

“Acaba dando pra ir tocando. Mas preciso desta droga, aqui, que não é minha e eu não posso comprar outra” – ele se refere aos óculos, que mostra. “Pra enfrentar esta lama aí fora, estou com esta bota de borracha até a canela, porque se eu meter um sapato como o seu vou ficar sem ele. Faz 2 dias que estou aqui e ainda não paguei nada. Até agora estou neutro neste ponto de vista. Ninguém me disse nada. Nem sei se vou pagar luz separado, nem nada.”

Alcebíades chegou da Rua 1, da favela da Rocinha, faz um mês. Lá, quando menos, para “tapear a solidão, de noite, eu podia dar umas voltas, tinha essa regalia”. Agora, isso acabou:

“O ambiente aqui é bastante carregado. Eu fecho isto aqui e vou pra Copacabana trabalhar e não sei como é que vou encontrar as coisas na volta. Estava acostumado lá na Rocinha, vivi lá dez anos, aqui para mim é muito pior. Não conheço ninguém e tenho que me virar lá em Copacabana, aqui não tenho nem a regalia de sair certas horas da noite e dar um giro, refrescar a cabeça deste fedor de fossa entupida. Eu vivo desconfiado, sou sozinho. Por favor, se tiverem de fazer uma transferência, me botem longe do rio, que ele é um perigo no tempo das enchentes. Essas águas de janeiro são um perigo.”

Alcebíades se levanta, capiongo de uma perna, vai até a pia e traz uma lata de creolina:

“Este fedor é insuportável, não dá pra entender, a fossa arrebentou. Eu encho tudo aí fora de creolina, porque tem bichinho, podridão, é isso aí. Tem dia que pra comer aqui é preciso fechar as portas e as janelas e encher todos os buracos da casa de creolina.”

Volta, vai ao quarto, onde um pedaço de plástico está forrando a cama, a tarimba com colchão furado:

“Chove no quarto, conforme o senhor está vendo. E não há jeito; de se dar uma melhorada nisso. Olhe aí” – aponta para o alto – “aqui chove em todos os cantos. Eu não posso consertar, que não tenho uma escada e não quero mexer, porque o pessoal da Cohab me disse que era para não fazer alterações na construção da casa.”

Abre a carteira e mostra um Comunicado ao Novo Morador dos Conjuntos da Cohab. Olhando o arruamento, onde passa um cachorro e uma charrete espalhando lama, lodo e lixo:

“Olha, essa sujeira aí, é também do pessoal que mora aqui. Cada um precisa cuidar do seu lixo para não virar bagunça. Aqui tem cachorro, gato, cavalos. É preciso deixar a lata de lixo longe dos cachorros, senão eles viram tudo. Então, vai tudo pra rua ou entope as fossas.”

As portas e as janelas emperradas, empenadas e Alce­bíades desenvolve truques e macetes com canivete e arames para abrir e fechar. Diz que não vai consertar nada, porque a situação na triagem é sempre provisória e ninguém sabe para onde vai quando for tirado dali.

“Outra coisa. Até o gás aqui é sacrificado, só vem uma vez por mês e a gente precisa ficar em casa esperando, senão perde a vez.”

Volta a falar da Rocinha. “Havia o problema das barreiras, quando chovia; e, depois, até 75 não haverá mais moradores na Rocinha, os homens do governo vão derrubar tudo. Então, eu tenho de me aguentar por aqui mesmo.” O ajudante de carpinteiro, gentil ou medroso, oferece café, vai fazer. (Difícil lhe explicar que não será tão viável remover 15 mil famílias que moram na favela de Rocinha.)

Sobre o guarda­-roupa está a caixa de ferramentas. Tem fogão, não tem geladeira, tem um rádio de pilha, fuma cigarros sem filtro, tem um dos pés arruinado pelo reumatismo e uma deslocação nas vértebras: “sofro dores incríveis, me torço aí nesta cama, como Jesus sofreu na cruz”.

Tem medo de ladrões:

“Aqui perto já houve assalto. Tem distrito policial, mas sabe como é: a polícia lá vai ter tempo de cuidar de tanta gente. Não pode tomar nem conhecimento. Já houve assalto aqui perto. Só que eu não sou otário de dizer como é que foi.”

Clemência Maria Oliveira, 92 anos, viúva, aposentada, vivendo de um montepio; Celina Bernardo de Oliveira, 60 anos, casada, lavadeira e Maria Isabel, 30 anos, não trabalha. As três mulheres são moradoras do Bloco A, casa 15, há 2 anos e 9 meses.

Mulher de sessenta anos, na triagem de Cidade de Deus, lavadeira, Celina Bernardo de Oliveira é quem fala mais pela mãe, uma viúva de 92 anos e pelos outros ocupantes do cômodo – que conjuga banheiro e em que vivem três mulheres e uma criança de dois anos. Os móveis da casa são uma cama de casal com lençóis encar­didos, uma mesa rampeira, feita de caixote, umas cadeiras e um fogão atulhado de coisas. No chão de cimento, com infiltração de águas e lama, brincava a menina Bianca, mulatinha sarará. Falando Celina:

“Tem gente aqui na triagem que paga dezoito cruzeiros por mês. Mas desde 17 de março de 1969 estamos aqui e até o momento ainda não recebemos o papel para pagar. O meu maior problema aqui é que sou lavadeira, só consigo bons preços lá em Copacabana, porque por aqui é tudo pobre, não pode pagar lavagem de roupa.”

Ignorantes, aturdidas, quase inconscientes. Não sabem sequer porque saíram do Parque Proletário da Gávea para Cidade de Deus. Apenas, “gostaríamos de morar nas casas aqui do conjunto e não nas triagens”. Têm raciocínio simplório:

“Pagar por pagar, tem muita gente lá nas casas que também não paga nada.”

Pouco depois de se mudarem, o marido de uma delas abandonou a casa. A abandonada, Maria Isabel, crioula que não sabe dizer a idade, aparenta mais de trinta, tem o rosto inchado, olhos empapuçados e o hálito de quem bebe continuamente. Confessa, corrigindo algum tempo, com ironia: “estou de porre desde o vinho de ontem”. Percebendo chegada de gente estranha, tranca­-se no banheiro. Sai, após algum tempo. Provavelmente ouvia o estranho agradar a menina Bianca, oferecendo bombom. Aí, senta­-se na cama, aceita um cigarro. Começa, numa ginga carioca:

“Isto aqui? Na favela tem alegria, as pessoas se ajudam. Imagine que aqui tem uns favelados que foram morar em apartamento e agora estão dando uma de bacana. Na favela, o pessoal era todo igual. Aqui, o povo está dividido. Tem gente pobre morando nas casas e se achando importante, porque tem dinheiro pra pintar a casa, botar ladrilha e outras coisas; no entanto, eles não pagam os cento e tantos cruzeiros por mês que o pessoal dos apartamentos paga. Aí, porque têm dinheiro pra pagar, o pessoal dos apartamentos se acha mais bacana que o pessoal das casas. E o povo das casas se acha mais importante que o da triagem. Todo mundo debocha e despreza o pessoal da triagem. Eu? Claro que gostaria de morar numa das casas. Lá, pelo menos, teria segurança. Imagine, ontem fui agredida dentro de casa por um homem que queria me pegar à força na frente de minha filha e da minha sogra. Precisou a sogra aí dar um sarrafo nele. Um chega pra lá, entendeu? Eu não posso sair de casa, à noite, porque os caras estão aí fora, nas esquinas, tocaiando a gente. E é aquela coisa, já viu? O que tem mais aqui é homem querendo agarrar mulher dos outros. E é no pulso. Na marra. Na mão” – suspira, abafada. – “Se se formasse uma favela outra vez, eu iria na frente, com uma bandeira e seria a primeira moradora.” – Maria Isabel termina isso, gingando de um lado e outro, abrindo os braços.

Celina, sessenta anos, diz que Maria Isabel ainda não está trabalhando e seu marido sumido nunca mais deu notícia:

“Ele faz falta. Qualquer tutuzinho aqui nos faz falta. O dinheiro é curto. A sujeira aqui é grande, mas é culpa dos próprios moradores, porque quando eles resolvem se juntar, conseguem desentupir alguma fossa. A condução é difícil, demorada e cara, devia ter um ônibus direto pra Copacabana, porque afinal a gente só consegue dinheiro é lá mesmo. Mas dá pra ir tenteando, vivendo sem morrer de fome.”

Neide não declara o nome todo, não quer dizer onde mora, parece sentir medo e só começa a falar quando nota que Maria Isabel, moradora do Bloco A, resolve abrir o bico, facilitada pela bebedeira. Moradora na triagem, 22 anos. Vive na Cidade de Deus há cinco anos.

Mulata, bonita, benfeita de corpo, doméstica diarista, trabalha na Praça Seca, a quinze cruzeiros por dia, ganha uns trezentos cruzeiros mensais e diz que “vou ganhar mais porque estou tirando os papéis para ser cozinheira de botequim e, aí, vou papar uns quatrocentos e cinquenta cruzeiros por mês. Eu cozinho muito bem”.

Vive com uma filha de três anos, nascida na Cidade de Deus. A menina é Rosilene. Neide não diz quem é o pai da garota e nem em que favela morava. Conta que, na enchente de 66, foi alojada no Maracanã com a família, irmãos, tios “e o resto”. Dali, foi levada para a Cidade de Deus:

“No começo era uma maravilha. Eles colocaram a gente aqui dentro. Deram cama, colchão, comida, vinha um caminhão todos os dias distribuindo comida. Até o Zarzur vinha dar a sopa pra gente. Fazíamos fila e conseguíamos comer direitinho. Eles nos deram roupa de cama, fogão, cobertores, ferro elétrico e até roupas. Era tudo novinho. Imagine, o ferro elétrico vinha dentro das caixinhas de papelão. Eu tenho tudo conservado até hoje. Quando eu vim pra cá, fiquei nas casas, naquelas bem do começo, perto do largo.”

Neide não confessa. Com o nascimento de sua filha, Rosilene, teve problemas com a família. Daí ter ido morar na triagem.

“Aqui é bagunçado. Tem gente que fica, tempos e mais tempos, e nunca pagou a triagem. Eu mesma nunca paguei, que o papel ainda não passou por aqui. A gente também não pode fazer uma reclamação com a administração da Cohab. Eu gostaria de morar nas casas. Eles constroem os apartamentos e dizem que é para os pobres. O caso é que os pobres não podem pagar.”

Diz que o entupimento das fossas é porque “o pessoal não estava preparado para viver desse jeito, não sabe nem usar o banheiro”. E o ambiente:

“O pessoal aqui bebe muito e os homens ficam querendo agarrar as mulheres. Isto acontece todos os dias. Mas tem gente boa morando aqui nas triagens e eu mesmo tenho alguns amigos. Minha filha não tem tido problemas aqui. Tem posto médico, e quando ela crescer, terá escola. Mas o caso é que não tem um único morador aqui em Cidade de Deus que não queira sair da triagem.”

Joaquina Martins, 53 anos, doméstica, moradora na Avenida Ezequiel, no 56 – apartamento 108, há 9 meses.

Cinquenta e três anos, aparenta uns 45, apesar das banhas, e diz que se conservou porque “não sou dada a extravagâncias”. O seu é um dos 906 apartamentos da Cidade de Deus. Tem uma sala, dois quartos, um banheiro, uma cozinha e uma área de serviço. Ali, “eu e Deus sabemos como”, vive uma prole de dezesseis pessoas.

Dona Joaquina, o marido, 12 filhos e 2 netos. Um filho é mongoloide. O menorzinho tem 3 anos; a filha maior, já mãe, tem 33. O marido é faxineiro de um prédio na Zona Sul e quatro dos filhos trabalham – a filha de 17, numa loja de roupas; outra, de 19, comerciária em Copa­cabana; o filho de 23 é trocador de ônibus. O de vinte anos se defende com biscates, mexe com móveis, “e não é sempre que tem serviço”. O dinheiro, conforme se vê, é contado:

“Se for comer bonitinho, direitinho mesmo, a gente gasta um milhão por semana. Mas eu tenho que esticar o dinheiro e gastar trezentos cruzeiros. E olhe lá.”

Por ela, moraria numa casa, “além de mais barato, tem o quintal para as crianças e não se paga condomínio”. Para ela, o filho mongoloide é “meio bobo”, e dona Joaquina está longe de supor os riscos e perigos que uma criança excepcional sabendo movimentar braços e pernas corre e o que pode acontecer no convívio com os outros.

A família veio do Parque Proletário da Gávea:

“Lá era bem melhor por causa do espaço e porque a gente ia aumentando o barraco, conforme as necessidades. Quando nos tiraram de lá para Cidade de Deus, já tínhamos três quartos. Ninguém precisava apanhar tanta condução e gastar tanto dinheiro para chegar ao batente. Havia mais comércio, a feira era melhor e a gente tinha hospital mais perto. Graças a Deus, depois que viemos pra cá ninguém ainda ficou doente. Mas não tem hospital e fico preocupada, aqui tem gente demais, o senhor já viu como é que tem criança. Cada apartamento, aqui, tem cinco, seis. É fogo. Faça as contas.”

Tem geladeira e televisão, uma eletrola escangalhada, precisando ser consertada, “mas não sobrou dinheiro”. As diferenças de dona Joaquina, no entanto, são outras:

“Acho que aqui devia ter hospital, antes mesmo deles construírem o conjunto. Isto aqui é muito longe de tudo e a gente se pela de medo de doença nas crianças. Coisa de comer custa caro, no conjunto tem muitas biroscas, é como nas favelas, mas o preço o senhor já viu, é o mais alto de todos. Condução direta para Copacabana tinha de ter, que é lá que a moçada trabalha. Todos trabalham por lá. Aqui por perto nem tem onde arranjar emprego.”

PANORAMA HORIZONTAL

Visto dos rés do chão, o aglomerado de casas pouco distanciadas uma das outras, parece bem uma favela, a de Brás de Pina. Favela na horizontal, sem horizonte, sem embelecos e sem o disfarce de vista bonita olhando lá para baixo. Nenhuma descida, nenhuma ladeira, os dejetos e os lixos não têm para onde escoar com as chuvas, que as fossas vivem entupidas. Esses restos ficam à beira do meio­-fio, empoçados, fedendo. Ou mesmo no meio das ruas, onde lama e lodo, de comum, costumam se juntar, inda mais nos dias de chuva.

Tem uns poucos arvoredos, oitis e flamboyants novinhos ou desmilinguidos, precisando crescer, ganhar copa, dar sombra. Árvores, pois, não há formadas e se está bem longe do mar, que se espraia lá nas areias da Barra da Tijuca e do Recreio dos Bandeirantes. Assim, é calor, sol batendo de chapa, um castigo, a canícula brava dos bairros da Zona Norte. Mormaço, nochorno dando quente na cara das pessoas. Há cães, gatos e cavalos pelas ruas, pelos quintaizinhos, dentro das casas. Inundando.

Pelos descascados e encardidos de suas casas, pela multidão de crianças, maioria de negros, pelos tipos molanbentos, vestindo andrajos e tropeçando uma bebedeira de dias à beira da birosca, umbigo encostado ao balcãozinho de madeira, Cidade de Deus, inda mais nos trechos de casas e triagens, lembra Brás de Pina.

Poucas casas foram melhoradas pelos proprietários, a maioria continua sem muros, algumas com cerquinhas de paus ou bambus. Quando em quando, uma ou outra cerca de ripas alinhadas, no esquadro, destoa do resto do casario.

Poeira, matos, urubus. Uma presença em quaisquer das divisões de Cidade de Deus, seja nas triagens, nas casas ou nos apartamentos. Gente e mais gente nas ruas, principalmente moleques e muitos bêbados. Homens e mulheres, tipos mal­-ajambrados, mal encarados, aguen­tando­-se mal em cima das pernas. Muito palavrão. Onde se vai, por todo canto, há movimento, rumor, azoada. Em tudo, a incrível filosofia carioca também montou casa nesse conjunto habitacional. Há samba e há pequenas festas, como a Folia de Reis, no dia 6 de janeiro. Cidade de Deus, apesar dos pagodes, jamais tem a alegria das favelas. Favela é o lugar onde mais se canta no Rio de Janeiro.

O asfalto meio arruinado, mais ralo de cimento da frente da casa está arrebentado. Lixo, detritos, papeluchos. Não se pode dizer que a limpeza das ruas esteja entregue aos urubus. Mas quase. O asfalto aumenta o calor. A sujeira geral mostra claramente que a miséria não baixou ali para fazer graça. Se chove, as águas se empoçam, há inundações, há infiltrações nas paredes das moradias. As triagens são as mais prejudicadas.

Carroças, charretes, carrinhos, um e outro automóvel ganham as ruas, principalmente nos dias em que estão todos em casa, sábados, domingos, feriados. E nos dias de feira, quartas e domingos.

As triagens fedem mais e são piores que favela. Isso, na palavra de todos os moradores do conjunto, ex­-favelados, dos entendidos e até dos acostumados, que tem gente vivendo lá há anos. Nas triagens, devido à mistura, dividiu­-se a massa de favelados, sumiu um certo respeito e senso de família ou comunidade que a favela impõe, estabelece e até exige, de pronto. São casinhas de um quarto só, com banheiro conjugado ou dois quartos, em número menor. Teoricamente seria um local de abrigo provisório de ex­-favelados. A verdade é que gente se arruma ou se aperta, mora, se espreme há anos. Começa ficando, vai ficando e fica. O pior é a falta de higiene. Mas há ainda a insegurança diante dos furtos, assaltos e ataques às mulheres. E inexiste um posto médico eficiente.

Os apartamentos, a que injustamente alguns moradores das casas e das triagens chamam de “lugar dos bacanas”, fazem o espetáculo mais completo de gueto, em Cidade de Deus. Isolados até da própria Cidade de Deus. Repetem uma favela na vertical, misturações típicas de biroscas, campinhos de futebol, pipas, muita criançada e algum samba, quando é noite ou algum dia em que não haja trabalho. Lamenta­-se o mesmo das outras áreas: condução, posto médico. Reclama­-se pouco a ausência do policiamento:

“Polícia aqui já tem de sobra. Depois, polícia só encana trabalhador, além de chegar na casa da gente para filar café e outras coisas. Então, polícia já tem demais” – falou um morador de apartamento com três anos de Cidade de Deus.

No conjunto de apartamentos há 1.300 unidades, divi­didas em blocos de cinco pavimentos. Sem elevadores, claro. Quando se implantou Cidade de Deus, prome­teu­-se à população dos apartamentos, três escolas primárias, uma creche e um jardim de infância. Nunca houve creche ou jardim de infância.

Segundo o plano inicial da Cohab, para cada gleba de casas, previam­-se duas escolas primárias, um jardim de infância, uma creche e um cinema com capacidade para 612 pessoas. Dessas previsões, as escolas estão funcionando. Apenas.

Havia ainda promessa de um supermercado e um pos­to médico. O supermercado mantém portas abertas. O posto médico, não.

REVISTA DOS JORNAIS

Tem certidão de nascimento e implantação datada de fevereiro de 1965. A paternidade principal é atribuída à Cohab.

Em janeiro de 66 cumpria papel importante ao abrigar 1.200 famílias de favelados, vítimas das enchentes mais famosas e medonhas que o Rio de Janeiro conheceu nos dez últimos anos. Inundações, desabamentos, desastres, mortes tomando vários bairros cariocas, isolando e flagelando em dimensões de catástrofe. As favelas, claro, fo­ram os ajuntamentos humanos atingidos mais de perto. No começo, o povo desabrigado foi para o Maracanãzinho. Depois, transferido para Cidade de Deus.

Em 6.7.1968 os jornais gritavam que mais de cinquenta por cento da gente que vivia em Cidade de Deus eram invasores e teriam de abandonar casas, apartamentos e triagens para dar lugar, hora e vez aos proprietários legítimos. No dia 13 daquele mês, Augusto Vilas­-Boas, então Presidente da Cohab, prometia encontrar jeito para a invasão. O jeito foi com modo pessoal. No dia 17, a Cohab colocava uma tropa de choque da Polícia Militar na Cidade de Deus, para evitar a invasão de casas por ex­-favelados. Um mês e um dia depois, a mesma Cohab, em cumprimento a despejo judicial, levou a operação às últimas consequências. A ação rápida não encontrou resistência dos ex­-favelados. Todos transferidos para o Albergue João 23.

No mês de dezembro de 1968, o engenheiro Raul Marques de Azevedo, diretor­-técnico da Cohab, fazia um elogio na Revista de Engenharia do Estado da Guanabara. Era um suculento, inspirado e talvez desinteressante (pela linguagem) artigo sobre a Cidade de Deus. Apesar da cantilena ufanista, o publicado contém mapas e números. Que se aproveita.

No dia 2 de março de 1969, os moradores chiavam objetivamente. Pediam ônibus diretos para a Zona Sul, por causa dos empregos. Afinal, a maioria daquele povo continuava a arranjar dinheiro em Copacabana durante o dia, e usava as habitações apertadas como um esconderijo, à noite. Um canto em que encostar os ossos, entre cinco ou seis filhos. Gente pobre é isso.

Em 22 de maio de 69, dizia uma senhora, dona Lúcia: “um horror, não tem condução, falta água, é longe à beça, o esgoto está sempre entupido e com mau cheiro. Médico só até cinco horas. Cidade de Deus, nada. Do diabo, isto sim”. Moradora de Cidade de Deus. Em junho daquele ano, dia 15, os jornais voltavam: o conjunto habitacional tinha capim, mau cheiro e poeira; esperava melhorias urbanísticas.

No dia 3 de dezembro de 1969, um sociólogo “que evita dizer seu nome porque o problema é delicado”, lavrava:

“É. Pode ser que essas comunidades venham a se transformar em guetos. Principalmente a Cidade de Deus, que é a mais isolada da comunidade central.”

Chegou o ano de 1970 e, no dia 25 de março, o Governador Negrão de Lima resolveu dar uma lição de fé ao povo do conjunto habitacional. Lançou nomes bíblicos às avenidas, ruas, travessas e praças da Cidade de Deus, localizada na XVI Região Administrativa, de Jacarepaguá. Profetas judaicos, maiores e menores, acompanhados de personagens bíblicos e de maravilhas, tipos, forças e obras de Deus começaram a aparecer substituindo os números frios. Assim, a Avenida 1 passou a se chamar Ezequiel; a Avenida 2 transformou­-se em José de Arimateia; a Rua 1 ganhou o nome de Salomão; a Rua 2 chamou­-se Daniel; a Rua 3 passou a ser Moisés; a Rua 5, Ezequias; 6, Elias; 7, Josafá; 8, dos Milagres; 9, Salatiel; 10, Josias; 11, Jessé; a Rua 47 chamou­-se Zebulom; a 51, Tarso; a 54, Samaria; a Rua 70 foi chamada Judá e a Rua 71 virou Amon. O mesmo com travessas e praças. A Travessa 118, por exemplo, se chamou Murta; a 119, Pecode; a 121, Purim e a Travessa 125 ganhou o nome de Mênfis.

Mas no dia 3 de maio do mesmo ano, os jornais incomodavam de novo. Cidade de Deus continuava com uma só linha direta de ônibus para seu povo. Era a 266, Largo de São Francisco–Cidade de Deus. Em 14.7.70 afirmou­-se que os moradores de Cidade de Deus desprezavam a boa alimentação para ter geladeira. Nessa matéria não se escreve uma única linha sobre a temperatura da região, uma das mais quentes do Rio.

No mesmo setembro de 70, os jornais gritavam que os moradores tinham um mundo de problemas e, precisamente em 17.7.70, publicou­-se que uma favela crescia, há já um ano, à margem do Rio Fundo. Com barracos enfileirados à margem direita do rio, assinalavam uma favela em formação, na entrada da Cidade de Deus. Enquanto isso, esqueletos de bambu anunciavam a chegada de mais gentes para as beiradas do rio. Uma ameaça grave, sem dúvida.

Estudantes do Brasil, cumprindo nova etapa do Projeto Rondon, fizeram uma pesquisa socioeconômica da Ope­ração Grande Rio e despejaram para a imprensa a informação de 18.7.70: Cidade de Deus tinha apenas 3 (três) crianças subalimentadas.

Mas no dia 27 daquele mês, um jornal malcomportado malhava. Cidade de Deus não estava a merecer sequer o nome e havia virado um inferno com 2.500 pessoas no caldeirão. Um paraíso dos urubus.

Com a palavra o Sr. Vítor Pinheiro, Secretário dos Serviços Sociais, em 31 daquele julho de 1970: o Estado iria usar as pesquisas socioeconômicas levantadas pelo Projeto Rondon para melhorar a Cidade de Deus.