VISITA

Sonhei que voltara às grandes paradas. Eu e Carli­nhos. Desprezando para sempre nossos empregos, sozinhos no mundo e conluiados, malandros perigosos, agora. Vagabun­deávamos, finos na habilidade torpe de qualquer exploração. E fisgávamos mulheres, donos de bar, zeladores de prédios engraxates, porteiros de hotel, meninos que vendem amendoim...

Era quando a branca caía.

No jogo, no quente jogo aberto das parceiradas duras, partidas caríssimas, eu tropicava, tropicava, repetidamente. Aquilo não se explicava! A tacada final era dolorosa e era invariável – era a minha – e eu me perdia. Aquilo, aquilo nos arruinava. Quem me visse e não soubesse diria que eu estava traindo. O ótimo Carlinhos não se desnorteava, fazia fé, dava­-me o embalo, imprimia moral.

– Firma e joga o jogo!

Mas nada. Ajeitasse giz no taco, estudasse os efeitos das tabelas, caçasse combinações, lavasse o rosto para a tacada – não me salvava. A bola branca caía.

* * *

– Olha, este sabonete também.

– Sim senhora.

Diabos, toda noite esta história. Mal entro em férias, é isto. Não basta o escritório, não basta. Os chefes, as idiotices. Tudo em promiscuidade e eu a aturar. Quando a noite chega, hora da gente descansar, cinema, mulher, qualquer coisa... não. Latinha de flite, sabonete, caixa de alfinetes, nem sei. Minha mãe tem a mania de me arranjar estes probleminhas domésticos. Pelo ano inteiro, este tonto trabalha e aguenta escola noturna. Dorme seis horas, acorda atordoado de sono, vai buscar dinheiro numa profissão inútil. Dia todo somando, dividindo, subtraindo, multiplicando. Por que diabo mandam­-me tantos relatórios? Os dedos pretos de fumo são fins de braços sem bí­ceps, sem tríceps, nada. Pudera! Às vezes, vejo na expedição homens da sacaria, braços enormes. Imagino­-me vivendo à sombra deles. Parece­-me que a vida teria músculos e sossego, não cálculos e ocupações domésticas.

Uns dois meses sem ver Carlos. Desde o tempo da refinaria. Não sei bem como era – mas eu não vivia mandado como agora, tinha sempre mais dinheiro, meu jogo era bom, tinha um estilo e rendia.

Quando deixei aquilo, deixei­-o e deixei outros colegas. Emprego novo, vida diferente. Qualquer mudança me impinge ocupações novas, esquecer amigos, abandonar certas coisas. Parceiros em tudo, parceirões. Dois tacos considerados e de respeito, viris nas partidas caras. E na refinaria, sempre me arranjava um jeito de estudar escondido, tapear os chefes. Num Natal dera­-me um postal. A aproximação de dezembro, agora, trouxe­-me a lem­brança de revê­-lo e levar um cartão. Carlos se alegraria, abraços, café, apresentar­-me­-ia sua irmã (ele deveria ter uma irmã linda); bate­-papo sobre futebol, a velha sinuca, umas horas longe de latinhas de flite e sabonetes.

* * *

Arranco a gravata. Nem é gravata. Um nó e pronto. Mas todas são assim, não as consigo conservar. E o pior é que aqueles sujeitos do escritório, gente estrangeira que fuma charuto, espia isso. Nada o que fazer. Adoraria vê­-los onde estou, dia inteiro sobre a máquina, suportando desaforos.

– Onde é que anda minha camisa esporte?

– Camisa não anda.

– Deixe de brincadeiras! Onde é que está minha camisa esporte?

– Não sei, procure.

Que irmã, vejam. Uma tonta. Sabe é ouvir novela, ler romancinhos para moças, discutir babados. Uma camisa nunca sabe onde está. Chateado, abro o guarda­-roupa. Há um estalo na porta, que a fechadura está velha, que é preciso trocá­-la, eu vivo falando nisso. Não encontro camisa esporte.

– Mas onde enfiaram?

– Nossa!... Você vive sempre amolado.

Ora, vou com esta. Sem gravata, tudo arranjado.

– Você viu a filha de seu Daniel, ontem?

– Não vi.

– Só mesmo vendo aquele vestido.

Vejam, em vestidos pensava...

– Por que você não me compra um vestido daqueles para o Natal? Fica tão bem...

A filha do Daniel é uma sujeita antipática que vive por aí. Anda namoricando Deus e todo o mundo. Agora é a vez dum sargentinho da Aeronáutica, muito metido a balão. Julga­-se, por isso, moça distinta, troço importante cá na vila. Galinha assanhada! Da pouca­-vergonha que faz à noite, no namoro de portão, vive se esquecendo.

– Compro nada!

– Pão­-duro!

Bem, até aí estava bem. Miserável, pão­-duro, estava bem. Muito bem. Agora, sustentar luxos e tendências, não. Já me bastam os meus gastos.

* * *

Uma calma gostosa.

O ônibus quase vazio me dá calma. Entrando vento pela janela. Bom. Mãos cruzadas, olhando coisas lá fora. A casa do ótimo Carlinhos – perto. Poderia ir a pé. Prefiro o ônibus; basta a canseira do dia. Gente como eu, bobagem economizar níqueis. Jamais se tem alguma coisa. A taxa do colégio, uma farra qualquer, levam tudo. O diabo é que eu não nasci trouxa, aqueles tempos de jogo, quando desempregado, me ensinaram que eu não nasci trouxa. Agora, o salário minguado dá para cigarros de vinte cruzeiros e cachaça de quando em quando. Se o mês aperta, corta­-se isso.

– Só mesmo vendo aquele vestido.

Calculem. E eu a aturar. Se perco as estribeiras, meto a boca no mundo, é a velha história – estou dando escarcéu, acordando a boa vizinhança, mau exemplo. Quieti­nho. Feito um menino, feito criado.

Carlos deveria ter uma irmã linda, cheia de modos e não cabeça oca. Nunca estivera em sua casa. Sabia o ende­reço, que ele jamais esquece essas coisas. Eu não. Tanto faz. Talvez por isso não arranje bom emprego. Mas... e se não tenho jeito?

O cobrador. Tiro vinte cruzeiros, espero o troco. Gos­tosa, a noite. O ônibus roncava, ganhava esquinas, passou a serraria, a fábrica de tubos. Passada a ponte, eu desceria. Sentou­-se a meu lado um tipo de chapéu, olhan­do de esguelha. Assim fazem nos ônibus, parecem não ter coragem de encarar uma pessoa. Caras de gente apoquentada nestes lados, que me parecem uma indústria de neurastênicos.

O ônibus rolava pelo viaduto. Rio sujo lá embaixo. Ainda dizem ser grande coisa lá na escola. Asnos engravatados! Não sei. Li, dia desses, a biografia de um escritor morto há pouco, também professor. Coitado, mal tinha para os quatro filhos, e um dia foi detido, trancafiado, por meter­-se em política, mesmo não sendo da esquerda. Homem admirável. Mas dizer­-se maravilha do rio fedorento, lá isto é asneira grossa. Até um ignorante como eu, percebe. Xingam isto de nome indígena...

Já curti um desemprego, cinco meses que só eu sei... Vida do joguinho. O dia na cama, a noite na rua. Cinco meses. Mas naquele tempo eu fumava cigarros estrangeiros e mandava polir as unhas. Não engulia um desaforo. Dinheiro? Eu tinha muita cabeça e era um taco de verdade. Noites de levantar quatro­, cinco contos! Mas jogo é jogo e eu não nego – peguei rebordosas medonhas – não foi uma vez que deixei o salão sem dinheiro para o ônibus. A casa... a família reunida para as reprimendas que duravam duas horas. O vagabundo, o ingrato, o perdido, o isto e o aquilo ouvia sem dizer nem pau, nem pedra. Os olhos no bico dos sapatos. Aborreciam­-me. Puxava uma, duas das notas maiores e entregava. Preocupação, remorso, vergonha? Não, não, nada disso. Era sono, que eu passara a madrugada em volta da mesa me batendo, jogando, suando, arriscando, perdendo, ganhando. Por isso aturava o esporro – queria dormir. Falassem. Moral para a família rezadeira é aguentar máquina de cálculo oito horas por dia, aguentar chefe estrangeiro, bitola, manha, idiotice e ganhar seis contos no fim do mês. Hoje sou um bom rapaz...

Dou o sinal, pulo. Ganho a rua de paralelepípedos, dobro esquinas, olho o endereço num cartão, entro por um corredor, rumo a um cortiço. A casa era a última duma fileira de moradias de ferroviários. Na varanda, um casal em namoro. Um pegadio sem modos. Avistando­-me vem a moça atender.

– Boa noite. Carlos está?

– Não. Saiu. O senhor...

Coço a cabeça. Sempre me desajeito ante mulheres. E esta, agora, me chamando senhor! Torço as mãos, deses­pero­-me à toa. Deve ser irmã de Carlinhos. Namo­rando ou noivando. Bonita, boas pernas. O sujeito que aí está – bem apessoado. Voz firme e não corou, quando apa­reci interrompendo abraços. Como essas pessoas que não se intimidam ante outras me parecem superiores! Tiro o postal do bolso interno do paletó, vem junto um cigarro amassado que guardo com atropelo.

– Pode­-lhe, por favor, entregar isto?

– Pois não.

– Me desculpe, a senhora é irmã dele?

Era. Despeço­-me, deixo­-os sossegados. Curvo esquinas, subo ladeiras, acendo cigarros maquinalmente. Enca­bulado. Pena não ter encontrado o excelente Carlinhos. Chateado. Perdi uma noite agradável.

– Também... isto não deve ser hora de visitas.

É. Quem sabe... não entendo dessas coisas. Tanto faz.

Vou perambulando, a admirar coisas do caminho, mulheres que passam. Cedo, nove horas. Um bar, entro. Num sobrado gente conversando na sacada.

– Cachaça pequena, faz favor.

Um sujeito solícito me enche o copo. Encosto­-me ao balcão, fico olhando para a calçada, onde besouros caem e gente passa de longe em longe. Remato a bebida, saio. E agora, o quê? Cinema? Meio tarde para cinema. Besouros voam, caem. A última sessão termina pela meia­-noite passada, o último ônibus parte às onze é meia. Porcaria de subúrbio! O sujeito que abraçava a irmã de Carlos era alto e era loiro. Havia se arranjado muito bem.

– Por que não arranjo uma namorada?

Um engraxate batuca na caixa, me convida para limpar os sapatos. Viro a esquina, entro para os lados do ponto do ônibus. Lendo um letreiro de propaganda de dentifrício.

– Por que não arranjo uma namorada?

Que nada... arranjaria uma dessas franguinhas bobas, que se ajustam a meninos bonitos. Ao pé do letreiro, um modelo de dentes muito brancos, teria pernas bonitas como as da irmã do ótimo Carlinhos. Meus dentes são amarelos, manchas de fumo. Ambas teriam coxas mornas, brancas. Espero uns minutos, quieto. Aquela posição, de pé, mãos para trás feito soldado, me chateando. Ando até outro ponto mais próximo do final. A filha do Daniel vive inchada pelo sargentinho da Aeronáutica, e se tem como moça distinta. Para essa gente, distinção é usar roupa nova, ter namorado bonito... Essas coisas. Ônibus não vem. Diabo de linha! Por que não vem duma vez a prefeitura de um governo que tome conta de tudo?

Bato a cinza do cigarro. A vila é bem mesquinha, rodeada de fábricas, dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar. O casario feio abriga mal gente feia, encardida, descorada. Nos meus cinco meses de vagabundagem eu me acordava tarde, tarde, e podia ver melhor aquilo. Ia aos bares. As ruas com seus monturos, cães e esgotos, muitas vezes me davam crianças que saíam do grupo escolar. Não me agradavam aqueles pés no chão movendo corpinhos magros. Qualquer ignorante podia perceber que aquilo não estava certo, nem era vida que se desse aos meninos. Eu saía do botequim, chateado e fatalmente enveredava mal. Encabulação, cachaça, erradas, desnorteava­-me no jogo. Um sentimento confuso, uma necessidade enorme de me impingir que não era culpado de nada. Os meninos iam magros porque iam. Culpada era a vila ou alguém ou muitos. Eu também engulia aquele pó, igualmente amassava aquele barro, aguentava aquela vida cinzenta. Podia mudar o quê? Não havia sido um menino como aqueles, pé no chão, desengoçado? Nos dias de chuva eu não me encolhia nessas ruas feito um pardal molhado? Sem eira nem beira. Eu tinha culpa de quê?

Minutos de espera, o que me sobrou foi tédio e raiva. Onde se viu uma linha de ônibus tão relaxada? E ainda querem aumento de tarifas... é, barriga está cheia, goiaba tem bicho. Abandono a ideia do ônibus, vou a pé. Passo o pontilhão, entro pela rua do quartel. Uma das sentinelas encosta­-se a uma prostituta num canto do portão, que a iluminação parca não abrange. Quartel intendente. Meretrício logo ali. E depois a gente vê na televisão, ouve no rádio, homens de farda falando em moral de costumes. E mostram bossa.

– Quartel indecente! – gracejei comigo.

Quando os passei de largo, pararam com a safadeza.

O praça olhou para o chão, esperando a minha ida.

Quis seguir estrada, o atalho me surpreendeu. Uns dez minutos e estaria na vila. Sapos nas pocinhas das beiradas do campo de futebol. Até há pouco, aquilo era do futebol da molecada. Indústrias querem surgir acompanhando a estrada de ferro, acompanhando tudo, provavelmente serão usinas de concreto. Várzea escura, breu. Meu pai disse­-me que, quando menino na Europa, transpunha vales escuros, para pastoreio, onde lobos uivavam. Aqui há mosquitos e fartum do curtume próximo. Luzes ao longe, luzes da serraria. Posso caminhar olhando­-as. Às vezes, faço de conta que são guias, que eu sigo para alcançar a vila. Pena não encontrar Carlinhos, não estaria tateando este breu.

— Quartel indecente!

Chego. Sapatos cheios de pó, sapatos cheios de pó, vivem sempre empoeirados. Porcaria de vida! Para a cama a esta hora, asneira. Estava, ficava até mais tarde. Gente povoava o largo do correio. Entrei no Bar e Café Colombo. No fundo havia sinuca, pedi café, me fui encostando. Uns me reconheceram. Outros reconheceram e fizeram que não. Sujeitos bestas, muita vez um terno a mais, um tico de ordenado a mais e torcem o nariz. Arrogância besta.

— Sujeitos bestas — digo baixinho, para justificar­-me de que estou acima deles.

Logo caio em mim, reconheço que sou pobre­-diabo como os que jogam. Como reconheço que já vivi disto e eles não. Cada um no seu emprego.

— Vinte­ e­ um, Gazuza?

O mulato meneou a cabeça. Aquele sim, um bicho, mas sabe o que é e não é balão.

— Aberto, cinquenta a mão.

— Posso entrar?

Os quatro se entreolharam. Também a sentinela e a molanqueira entreolharam­-se quando apareci. Na várzea havia mosquitos bravos, não lobos. Um tipo musculoso mediu­-me de soslaio, tinha a camisa apertando braços enormes, uma cara enorme, um queixo enorme, de gringo. Talvez quizesse jogar. Se quizesse, que fosse dizendo. Polidez com essa gente é tempo perdido.

— Vai, entra. Tira pedra.

Desatei o paletó, acendi um cigarro, escolhi taco, peguei num giz.

— Seu Neves, me dá cachaça grande.

— Em cima do café?

— Ahn?

— Puxa, não ouviu? Disse três vezes.

— Ahn... sim.

Chateado, escorando­-me ao taco, esperando a vez. Um gole. Esperei que ardesse na garganta. O modelo do cartaz tinha dentes tão brancos, teria pernas mornas, brancas. Talvez, nesta vida besta jamais estarei com uma mulher como aquela. É. Nunca conhecerei. O mundo para mim não tem dado voltas, rolado como dizem alguns. Sempre as mesmas tiradas. Meus sapatos furam­-se, os ternos estragam­-se, continuo o mesmo sujeito. Escritório, taxa de colégio, irmã galinha. Vida xepe, porcaria!

Tanto preparei o postal... queria tanto rever o excelente Carlos! Não tenho jeito para escrever, mas vá lá. “Vai pras cabeças!” – como se diz cá na sinuca. Escrevi. As redações da escola... na escola sabem é falar de verbos e casos do infinitivo. Servem­-me bem pouco. Falando sou um sujeito como esses marreteiros que por aí vivem. Palavrão. Perífrase. Gesticulação de gringo. Pago um dinheirão de taxa.

Vejam a branca... Se caísse, eu teria um sete e um cinco de boca. Cinco e sete: doze. Doze com pedra nove, faria os vinte­-e­-um e faria os duzentos cruzeiros. Um sujeito bateu a rodada, agora. E eu tinha bom jogo! Diabo de branca, por que não era minha vez? Meto a mão no bolso, enfio a cédula na caçapa. Saio para outra.

– Por que não arranjo uma namorada?

Que maluquice de ideia de namorada é essa, que hoje me anda na cabeça! Aqueles ingleses do escritório deviam aturar desaforo, para saberem o que é vida. Aturar desaforos. Figurões que se agrupam, vêm para cá, moram em palacetes, aqui encontram bobos a servirem­-lhes em idioma e escrita. Sou um deles. O que sei aí está – língua estrangeira para servir a estrangeiros. E ganhar seis contos por mês. Para que eu viva é preciso tanto. Se descambo para a vida do joguinho, a família rezadeira me atinge com o moral. Para os ingleses do escritório, tudo fácil, escolhido, arrumadinho, asseadinho. Ainda espiam gravatas. Ratos!

A branca subia, descia, nada de minha vez chegar. Seu Neves olhava­-me entediado. Tristeza aquela profissão de suportar bêbado. Seu Neves tem uma história triste e eu não gosto de lembrar. Entretanto, é apenas uma história como outras aqui da vila, que é rodeada de fábricas e em que não existe uma só rua asfaltada, em que há algumas dezenas de bares, três igrejas, um grupo escolar. O resto é o casario imundo e descorado com seus esgotos nas ruas. Até um ignorante como eu gostaria que lhe explicassem porque pessoas que trabalham hão de viver assim.

Olhem Seu Neves. Brigado com a mulher que o engana, suporta a sem­-vergonha, porque tem filha moça dentro de casa. Como pode uma mulher fazer uma coisa dessas a um sujeito como seu Neves? Eu não entendo. Seco, fala pouco, fuma calado, não entende futebol, não tem opinião. Às vezes, penso que é um homem que morreu já faz muito tempo e está neste mundo nem sei para quê. Talvez para aguentar bêbado ou ser corno manso.

Caiu a branca. Minha vez. O álcool rondava­-me a cabeça. Terceiro, quarto copo, nem sei. Uns quarenta mi­nutos ali de pé, repetição de cigarros, pegando no taco de longe em longe. Angústia me vem, cada vez que penso em coisas sérias, quando bebo. Começos de desmaio, muita vez, quando bêbado, penso em coisas sérias; com um estremecimento empurro a ideia de tê­-los agora. Lastidão, o amargo começando na boca, a canseira nas coxas e na barriga das pernas. Pedra dez, é fácil, fácil. Deus do céu! Estava ali a deixa. Bola cinco meio difícil, é certo, porém o seis... a um palmo da caçapa. Era só empurrar. Derrubava a rosa, colocava a azul, fechava o jogo. Pagava meu tempo, meia­-noite e tanto, ia dormir. Não me aguentava nas pernas.

Mas que jogo triste! Fosse outrora e eu fechava este joguinho num instante. Hoje tremo, cachaça e medo, peço com os olhos para as bolas caírem. Ora, eu fazendo este joguinho sovina de cinquenta cruzeiros a mão!

– Por que não arranjo uma namorada?

Por que não esqueço duma vez esse negócio de namorada? A cara dura, os beiços duros, a cabeça doendo pela cachaça. Olho a branca, posso fechar o jogo, acabar com a alegria desses parceiros. Não me lembro da cor dos cabelos do modelo de propaganda. Amanhã passo por ali, reparo naquilo. O mundo de dimensões do pano verde de uma mesa de sinuca. Quase bicou o seis, não tropiquei por bem pouco. Estou nervoso, é este medo sem jeito. Os parceiros olham­-se, olham­-me. Na porretada, a azul. Diabos, não caiu na caçapa em que mirei. Por que veio cair aqui em cima, na sorte? Mal, péssimo. Eu não queria na sorte. Vejam a que meu jogo ficou reduzido. Sujo, é só sujeira, só me encontrando na sorte. Vou é para a casa.

Atenazado, mergulho a cabeça na bacia. Faço a ablução aos poucos, fazendo a água escorrer aos poucos... Os olhos pesam. As mãos ásperas de giz, os olhos estão miúdos. Muito sono, muito urgente é dormir, luz apagada, travesseiro, solidão, nada... Amanhã, curtir bebedeira. Cara inchada, olhos inchados, beiços duros. Amanhã, saia sol ou não, os óculos escuros, ninguém perceberá os olhos inchados.

Aborrecimento sem motivo. Para final, não vi o excelente Carlinhos, vi as pernas brancas da irmã, ganhei trezentos cruzeiros (tirante o tempo), deixei o postal, desertei uma noite das ocupações domésticas.

Mas amanhã, a repetição dos relatórios. Meus olhos viajarão do teclado aos corpos taludos dos homens da sacaria. E nas paredes brancas do escritório, balbúrdia, persianas entreabertas, ingleses a perambular.