BOLO NA GARGANTA

O irmão se chegou e ajeitou­-lhe as cobertas.

Sentiu que amolecia aos poucos, ouviu as gotas caindo. Um barulho baixinho, gostoso. A impressão era de estio. Virou­-se para a parede, mas não queria dormir. A certeza de que era assim toda a noite, pouco a pouco se aproximando, acabava dormindo, e quando se acordasse, a mãe zombaria dos roncos, trouxe­-lhe um desgosto fundo que o botou de olhos muito abertos a olhar o reflexo da luz na parede. Que bom se arranjasse um jeito de não dormir.

Via o irmão entretido com o livro verde. Por que lia tanto? Não perguntou. Lembrou­-se de que poderia ser chamado de espírito santo de orelha e chato. Ouviria coisas desagradáveis, ouviria dizer que estava na cama e cama é lugar da gente dormir. Mas por que o irmão lia tanto? Não entendia. O irmão, gente grande, usava bigodes e sabia tantas coisas de escola! Entretanto, falava de um jeito confuso; uma pergunta redundava em vinte outras. Chamavam­-no, então, de pedaço de asno. Entendia e não entendia o xingamento, mas percebia a finalidade; era o mesmo que: “Fique quieto”. É. A mesma coisa.

Olhava agora para o irmão, que lhe estava de costas. Procurar o foco de luz indireta. Luz sempre lhe afugentava o sono. O livro verde era grosso, tinha retratos no meio, o irmão dizia­-lhe ser coisa séria. Coisas sérias... Para o irmão todas as coisas eram sérias...

* * *

O tintureiro japonês contava­-lhe histórias de guerras e de mares. Guerra – ele sabia – os moleques fazem com um pedaço de lama endurecida. Metade da trinca em cada borda da rua, atiram barro uns nos outros. Aquilo o agradava: gostoso ver moleques brincarem, não havia os beliscões da empregada, não havia as caçoadas da mãe. Papai também lhe disse que na guerra gente briga com gente, trabalhando armas perigosas, terríveis, mais mortíferas que a Winchester de matar passarinho. Torcia os beicinhos cada vez que ouvia.

– Puxa vida!

Mares – eram águas grandes, ganhavam metade do mundo. Mais da metade do mundo. Mundo – não entendia o que fosse. Falavam de bola, o irmão dava­-lhe o atlas, ele não entendia. Bobagem alguém viver dentro de bola... O japonês era bonzinho. Tudo que falava, ele entendia.

– Onde já se viu gente morando em bola.

Desistira de entender o que era mundo.

À tarde, o pai trouxe­-lhe um embrulhinho amarelo. Estouvado, jogou para longe o pião, quis abrir. Era um ioiô azul! Ah, arrancou­-o, quis enfiá­-lo nos dedos, o elástico não obedecia. Procurou o dedão, inútil. O mindinho, o fura­-bolo, não ia. Enfezou­-se.

– Calma, vem cá.

O pai ajustou o elástico. Mas era comprido, arrastava­-se no chão.

– Quero que nem o de Paulo.

Arrumaram. Pareceu­-lhe igual ao do vizinho. Bem. Agora brincar. Os dedinhos brancos, terra nas unhas, mexe­ram­-se, torceram­-se, o ioiô não ia. Desgostou­-se com aquilo. Por que o ioiô não dava certo? Foi ver o “cheq... cheq…” aborrecido das mãos da lavadeira lá no tanque. Pôs­-se de longe, a olhar quietinho, senão tiravam­-no dali. Aco­corou­-se, meteu os dedos na terra, o ioiô atrapalhava­-o; entretanto, imaginou que iria construir túneis imensos com gente dentro, gente grande, é claro, já que crianças como ele não podem viver em túneis. Construiria com as mãos e a terra do quintal.

* * *

Mamãe o chamou para levar a capa do irmão ao tintureiro. Bom. Ouvir histórias e aprender a jogar ioiô.

– Lava seco, duzentos cruzeiros.

Quanto seria duzentos cruzeiros? Não, não perguntaria, que assim não esqueceria o ioiô.

Experimentando. Dedos para baixo, mão fechada, o ioiô dentro dela, palma aberta, atira, puxa, atira... não dava certo.

– Calma, assim.

Acertou na sorte. Mas talvez não repetisse. Tentou com medo de errar. Acertou. Agora fazia como Paulo; à ideia de que Paulo já não lhe era avantajado, torceu os beicinhos vermelhos, suspirou fundo, fechou longamente os olhos, baixou a cabeça, sorriu com malícia.

O tintureiro contou uma história de índios que matavam e devoravam pessoas, como eles dois. Os brutos dominavam os matos.

– Matavam e comiam, pra quê?

O homem arrumou os óculos. Difícil explicar. Engen­dra exemplos, quer comparar, não sabe esmiuçar os brutos que devoravam gente branca e mandavam nos matos. Debandou, falou nos brancos, suas guerras e mares, torceu lorotas.

– Ora, criança esquece logo.

Mas a batida se repetiu. Se a gente come pudim... não, nada de brancos miúdos. Queria os índios. O tintureiro engasgou, ressalvou­-se, descartou­-se, escorregou nos índios.

– Menino impossível.

* * *

Para os lados da casa, ia encabulado. Os índios têm ioiô? A lavadeira gritou­-lhe que fosse tomar banho, mamãe mandou­-o não roncar à noite, o irmão atrapalhou­-o com um palavrório que não entendeu. Amuou. Não lhe explicavam. Foi ao papagaio.

– Louro, louro!

– Louro bobo que não sabe nada.

Por que índios comem carne de pessoas? Como eles são? Não lhe diziam, não lhe diziam. Começou a crescer­-lhe um bolo na garganta.

O pai catou­-o na rede a choramingar. Aí, ele acusou todo mundo. Num berreiro. Ninguém lhe dizia coisa alguma, era só caçoada que sabiam fazer. Papai pôs cara severa, fingiu bater na empregada, advertir o irmão, botar a mamãe de castigo.

– Para não zombar do menino.

E, voltando­-se, certo do efeito, mimou­-o. Prometeu levá­-lo a ver índios do cinema.

* * *

Índios nada. Bobagem. Comeram nada. Faziam, sim, algazarra, e tinham feições de gente que joga bola. Cabelos de mulher e numa gritaria terrível. Danadamente agitados, penas nas cabeças de mulher. Por que faziam­-no ficar com aquele bolo na garganta, aquela coisa dentro do peito? Raiva de não saber. Cada vez que lhe negavam uma resposta o bolo crescia, subia à garganta, tomava­-o todo. Vinha­-lhe, então, raiva e vontade de sair correndo e quebrar todos os brinquedos de Paulo. Todos, deixar Paulo sem brinquedos, chorando.

* * *

Com força, o enxurro batendo na vidraça. Não explicavam, não explicavam. Confusão de coisas: aqueles da fita não eram as coisas do tintureiro. Bichos com penas, como mulheres, gritalhões. Mamãe diz que no sono ele fala e ronca. Ele não gosta de caçoada e, não podendo se vingar, um bolo na garganta como depois do cinema. Que chuva! Um livro verde que o irmão vira uma folha de quando em vez, aquilo o distrai, o bolo diminui. Nos túneis vivem pessoas grandes, crianças não. Ioiô igualzinho ao de Paulo, sem diferença (Paulo não tem vantagem). Sente um pouco de frio, encolhe­-se.

– Louro bobo que não sabe nada.

Olhinhos abertos, fugir do sono. A luz indireta projeta um círculo luminoso no quarto; acompanhá­-lo com os olhos. Estar atento. Índios não são aqueles do cinema. Uma risadinha:

– Onde já se viu gente morando em bola?

Se perguntasse o valor de vinte cruzeiros teria sido melhor. Os beliscões da empregada doem menos que o bolo na garganta. Mamãe zombará porque ele ronca, no sono. Acompanhar o círculo de luz, não há de perdê­-lo, que ele espanta o sono. Que bom se conseguisse distrair­-se, evitar o sono!

Aí, parece­-lhe que o sono é um círculo de luz, projetado no quarto pela lâmpada indireta. E que se vai fechando.