O menino tinha só dez anos.
Quase meia hora andando. No começo pensou num bonde. Mas lembrou-se do embrulhinho branco e benfeito que trazia, afastou a ideia como se estivesse fazendo uma coisa errada. (Nos bondes, àquela hora da noite, poderiam roubá-lo, sem que percebesse; e depois?... Que é que diria a Paraná?)
Andando. Paraná mandara-lhe não ficar observando as vitrinas, os prédios, as coisas. Como fazia nos dias comuns. Ia firme e esforçando-se para não pensar em nada, nem olhar muito para nada.
– Olho vivo – como dizia Paraná.
Devagar, muita atenção nos autos, na travessia das ruas. Ele ia pelas beiradas. Quando em quando, assomava um guarda nas esquinas. O seu coraçãozinho se apertava.
Na estação da Sorocabana perguntou as horas a uma mulher. Sempre ficam mulheres vagabundeando por ali, à noite. Pelo jardim, pelos escuros da Alameda Cleveland. Ela lhe deu, ele seguiu. Ignorava a exatidão de seus cálculos, mas provavelmente faltava mais ou menos uma hora para chegar. Os bondes passavam.
* * *
Paraná havia chegado com afobação. Nem tirou o chapéu, nem nada. O menino dormia. Chegou-se:
– Nêgo... nêgo!
O menino não queria. Paraná puxou a manta.
– Paraná! Que foi? – acordou chateado.
O homem suado na testa. Barbado. Só explicou que precisava dele. Levar um embrulho às Perdizes. Muito importante. O menino se arrumou fora do colchão furado, meteu o tênis.
– Embrulho? Pra quem?
Paraná fez uma coisa que nunca fizera e que ele não entendeu bem. Fê-lo ficar de pé, pousou-lhe as mãos nos ombrinhos. Sentado na beira da cama. Disse bem devagar.
Ele tinha que ir às Perdizes, encontrar-se lá com Paraná. E não podia perder o embrulhinho. Perguntou-lhe se conhecia uma Avenida grande que desce a igreja das Perdizes. Sim. Ele deveria descê-la, três quarteirões. Sim. Tomar cuidado com os guardas. Sim. Lá encontraria um ferro-velho. Sim. Pularia o muro.
– Lembra? Aquela viração do Diogo? Pois. Mudou de dono.
Pulasse o muro e esperasse Paraná aparecer. Havia, cama, escondida no barracãozinho de zinco. Se não viesse, ele que dormisse. E acordasse cedo para os donos do ferro-velho não perceberem que gente dormira lá. Se Paraná não aparecesse deveria ir para o Largo da Barra Funda, lá na casa de Nora. Logo pela manhã.
– O embrulho é sagrado, tá ouvindo?
Paraná apalpou-o, examinou-lhe a roupinha imunda de graxa de sapato. Tirou-lhe o tênis, cortou dois pedaços de jornal e enfiou-os dentro. Embrulhou uma manta verde. Meteu a mão no bolso, deu-lhe duas de dez. Os olhos brilharam:
– Se vira com elas. Olha, se eu não baixar lá...
– Ué, por quê? – o menino interrompeu.
– Nada. O embrulho é nosso, se guenta. Se manca. Que o abrisse, mas escondesse. Nem Nora poderia mexer. E que se virasse lá na Pompeia, engraxando. O menino teve um estremecimento. Será que os guardas iriam agarrar Paraná? Ouvira contar que a cana é lugar ruim, escuro, onde se apanha muito. Contudo, Paraná era muito vivo, saía-se bem de qualquer galho. Sossegou. Depois, resolveu perguntar se ele apareceria mesmo.
Paraná fez não ouvir. Falou do muro do ferro-velho. Era alto e difícil. Tomasse cuidado. Abriu a porta imunda:
– Se arranca. Se vira de acordo, tá? Olho vivo no embrulho.
E depois, lembrando-se:
– Mora, tá frio.
Passou-lhe o embrulho da manta. O menino sentiu as notas no bolso do casacão. Coçou o pixaim:
– Puxa, como é de noite. Tchau.
Paraná respondeu com a mão no ar. O menino meteu o embrulhinho branco entre o suspensório e a camisa. Só ficou o embrulho da manta na mão.
Andou.
* * *
Pequeno, feio, preto, magrelo. Mas Paraná havia-lhe mostrado todas as virações de um moleque. Por isso ele o adorava. Pena que não saísse da sinuca e da casa daquela Nora, lá na Barra Funda. Tirante o que, Paraná era branco, ensinara-lhe engraxar, tomar conta de carro, lavar carro, se virar vendendo canudo e coisas dentro da cesta de taquara. E até ver horas. O que ele não entendia eram aqueles relógios que ficam nas estações e nas igrejas – têm números diferentes, atrapalhados. Como os outros, homens e mulheres, podem ver as horas naquelas porcarias?
Paraná era cobra lá no fim da Rua João Teodoro, no porão onde os dois moravam. Dono da briga. Quando ganhava muito dinheiro se embriagava. Não era bebedeira chata, não. Como a do seu Rubião ou a do Aníbal alfaiate.
– Nêgo, hoje você não engraxa.
Compravam “pizza” e ficavam os dois. Paraná bebia muita cerveja e falava, falava. No quarto. Falava. O menino se ajeitava no caixãozinho de sabão e gostava de ouvir. Coisas saíam da boca do homem: perdi tanto, ganhei, eu saí de casa moleque, briguei, perdi tanto, meu pai era assim, eu tinha um irmão, bote fé, hoje na sinuca eu sou um cobra. Horas, horas. O menino ouvia, depois tirava a roupa de Paraná. Cada um na sua cama. Luz acesa. Um falava, outro ouvia. Já tarde, com muita cerveja na cabeça, é que Paraná se alterava:
– Se algum te põe a mão... se abre! Qu’eu ajusto ele.
Paraná às vezes mostrava mesmo a tipos bestas o que era a vida.
O menino sabia que Paraná topava o jeito dele. E nunca lhe havia tirado dinheiro.
Só por último é que ele passava os dias fora, girando. Era aquela tal Nora e era a sinuca. A sinuca, então... Paraná entrava pelas noites, varava madrugada, em volta da mesa. Voltava quebrado, voltava que voltava verde, se estirava na cama, dormia quase um dia, e não queria que o menino o acordasse.
Só por último é que andava com fulanos bem vestidos, pastas bonitas debaixo do braço. Mãos finas, anéis, sapatos brilhando. Provavelmente seriam sujeitos importantes, cobras de outros cantos. O menino nunca se metera a perguntar quem fossem, porque davam-lhe grojas muito grandes, à toa, à toa. Era só levar um recado, buscar um maço de cigarros... Os homens escorregavam uma de cinco, uma de dez. Uma sopa. Ademais, Paraná não gostava de curioso. Mas eram diferentes de Paraná, e o menino não os topava muito.
Ele sempre sentia um pouco de medo quando Paraná estava girando longe. Fechava-se, metia um troço pesado atrás da porta. Ficava até tarde, olhando os cavalos da revista de turfe de Paraná. Muito altos, espigados, as canelas brancas, tão superiores ao burro Moreno de seu Aluísio padeiro. Só com os soldados, à noite, é que via coisa igual. Fortes e limpos. Fazendo um barulhão nos paralelepípedos.
– Que panca!
Muita vez, sonhava com eles.
* * *
Havia Lúcia, a menina branca e havia seu Aluísio padeiro. Gostavam dele. O resto eram pessoas que passavam na Rua João Teodoro com muita pressa. Também um meganha que vinha engraxar os coturnos. Dava sempre gorjeta. Esse, entretanto, não falava muito.
Lúcia era menor que ele e brincava o dia todo de velocípede pela calçada. Quando alguma coisa engraçada acontecia, eles riam juntos. Depois, conversavam. Ela se chegava à caixa de engraxate. O menino gostava de conversar com ela, porque Lúcia lhe fazia imaginar uma porção de coisas suas desconhecidas: a casa dos bichos, o navio e a moça que fazia ginástica em cima dum balanço – que o pai dela chamava de trapézio. Na sua cabeça, o menino atribuía à moça um montão de qualidades magníficas.
Seu Aluísio vivia brincando com todas as crianças que encontrava. Era só ver criança. Uma conversa gozada, mexendo na cara o bigode poento. Piadas sem graça, chochas. O menino gostava era do jeito que seu Aluísio tinha para contá-las. Terminava e ria primeiro que os ouvintes. Paraná deixava que o menino se entretivesse com ele.
Para o menino, todas as outras pessoas eram tristes, atarefadas na pressa da Rua João Teodoro. Afobadas e sem graça.
* * *
Frio. Quando terminou a Duque de Caxias na Avenida São João. O pedaço de jornal com que Paraná fizera a palmilha não impedia a friagem do asfalto. Compreendeu que os prédios, agora, não iriam tapar o vento batendo-lhe na cara e nas pernas. Andou um pouco mais depressa. Olhava para as luzes do centro da Avenida, bem em cima dos trilhos dos bondes, e pareceu-lhe que elas não iriam acabar-se mais. Gostoso olhá-las.
Que bom se tomasse um copo de leite quente! Leite quente, como era bom! Lá na Rua João Teodoro podia tomar leite todas as tardes. E quente. Mas precisava agora era andar, não perder a atenção.
– Paraná já deve tá na boca de espera.
O menino preto tinha um costume: quando sozinho, falar. Comparava os cavalos taludos e a moça da ginástica e as coisas da Rua João Teodoro. Desnecessário conhecer coisas para comparar. Cuidava que os outros não o surpreendessem nos solilóquios. Desagradável ser pilhado. Impressão de todos saberem o que se passava com ele – pensamento e fala. Paraná também achava que aquilo era mania de gente boba. É. Não devia. Mas era muito bom. O menino se achava muito bem, quando podia estar daquele jeito.
Eta frio! Tinha medo. Alguém poderia vê-lo sacar uma de dez. Que vontade! Arriscou. Num bar da Marechal Deodoro. Entrou sorrateiro, encostou-se ao balcão. Só um casal numa mesa, falando baixinho e bebendo cerveja. Tremelicou, bebeu, pegou o troco, duas horas no relógio do bar. Cansado, com sono. Por que diabo todos os relógios não eram como aquele, grande e fácil? Entretanto, não se deteve nesses e noutros pensamentos. Mais meia hora de chão, e se Paraná não viesse?... Teria que acordar muito cedo. Escapulir bem escapulido para os caras que compraram o ferro-velho do Diogo não perceberem. Apalpou o embrulhinho branco. Repetiu o exercício muitas vezes. Não haveria de perdê-lo. Levava a manta embrulhada como se carregasse um livro. As perninhas pretas começavam a doer.
– Mas que frio!
Lúcia contava que navios apitavam mais sonoros que chaminés. Enormes. Gente e mais gente dentro deles. Iam e vinham no mar. O mar... Ele não sabia. Seria, sem dúvida, também uma coisa bonita. Quando seu Aluísio ria, o bigode se abria, parecia que ia sair da cara. É. Mas o burro Moreno não chegava nem aos pés dos cavalos da revista.
– Cavalo não tem pé.
Quem é que lhe falara assim uma vez? Esforçou-se, não lembrava. Somente se lembrou de que Paraná talvez estivesse esperando e apertou o passo. Vento. O pezinho direito subia e descia na calçada e o menino sentia muito frio. Meteu também o embrulho da manta entre a camisa e o suspensório. Mãos nos bolsos.
Evitava os olhares dos guardas. A Avenida teria muitos, era preciso, quem sabe, desguiar. Enfiar-se, talvez, pelas ruas transversais. Mas temeu se perder nas tantas travessas e não encontrar a igreja das Perdizes. Ia tremelicando, mas ia.
– Cavalo não tem pé.
Quem é que falara assim uma vez?
Largo Padre Péricles. Igreja das Perdizes. Suspirou. Estava perto. Por ali ninguém. Tudo dormido. Só motoristas de praça que ouviam rádio baixinho, cabeça deitada no volante. Deveria ser bom ficar como eles... Ou tocando pra baixo e pra cima num carrão daqueles. Vida boa. Nenhum vagabundo dormindo nas portas da igreja.
– E Paraná?
Parou, pensou um pouco. Perplexo, pareceu-lhe a princípio estar fazendo coisa errada, não indo procurar Paraná noutro canto. Vasculhar outros lados. E se não estivesse no ferro-velho? Um pressentimento desusado passou-lhe pela cabecinha preta. Guarda-noturno surgindo no largo. O menino andou.
Logo que começou a descer a Água Branca veio-lhe um pouco de fome e uma vontade maluca de urinar. Ali não dava. Se viesse alguém...
Já seriam duas e pouco.
Frio. Canseira. As casas enormes esguelhavam a Avenida muito larga. Pela Avenida Água Branca o menino preto ia encolhido. Só dez anos. No tênis furado entrando umidade. Os autos eram poucos, mas corriam, corriam aproveitando a descida longa. Tão firmes que pareciam homens. O menino ia só.
Na segunda travessa, topou um cachorro morto. Longe, já o divisara. Assustou-se com as deformações daquele corpo na beirada do asfalto. Analisou-o de largo, depois marchou.
– O coitado engraxou alguma roda.
Ficou com pena do cachorro. Deveria estar duro, a dor no desastre teria sido muito forte. Não o olhou muito, que talvez Paraná estivesse no ferro-velho. Seguiu. A vontade forte ia com ele.
O muro pareceu-lhe menos alto e menos difícil de pular do que advertira Paraná. O menino procurou o homem por todos os lados. Depois, chamou-o. Abafava os sons com a mão, medroso de que alguém, fora, passasse. Chamou-o. Nada de Paraná. E se os guardas tivessem... Uma dor fina apertou seu coração pequeno. Ele talvez não veria mais Paraná. Nem Rua João Teodoro. Nem Lúcia.
– Para-naaá...
Repulou o muro. Ainda olhou para a Avenida. Frio.Queria ver um vulto. Ninguém. Não havia nada. Só um ônibus lá em cima, que dobrava o largo, como quem vai para os lados da Vila Pompeia. Então, desistiu. Agarrou-se com esperança à ideia de que Paraná era muito vivo. Guarda não podia com ele. Sorriu. Pulou de novo. Achou a tarimba prontinha. Tateou o embrulhinho branco. No escuro, sem lua, os pedaços de folha de flandres era o que de melhor aparecia. Abriu a manta verde, se enrolou, se esticou, ajeitou-se. Pensou numas coisas. Olhando o mundão de ferrugem que ali se amontoava. Não se ouvia um barulho.
– Cavalo não tem pé.
Onde lhe haviam dito aquilo? Não se lembrava, não se lembrava. Coitado do cachorro! Amassado, todo torto na Avenida. Também, os automóveis corriam tanto... Frio, o vento era bravo. Sentia ainda o gosto bom do leite. Onde diabo teria se enfiado Paraná? Ah, mas não haveria de meter o bico no embrulhinho branco! Nem Nora. Muito importante. Paraná é que sabia, Nora não. Um arrepio. Que frio danado! Entrava nos ossos. Embrulhou-se mais no casacão e na manta. Fome, mas não era muito forte. O que não aguentava era aquela vontade. Lembrou-se de que precisava se acordar muito cedo. Bem cedo. Que era para os homens do ferro-velho não desconfiarem. Lúcia, branca e muito bonita, sempre limpinha. Sono. Esfregou os olhos. O embrulhinho branco de Paraná estava bem apertado nos braços. Entre o suspensório e a camisa. Que bom se sonhasse com cavalos patoludos, ou com a moça que fazia ginástica! Contudo, não aguentava mais a vontade. Abriu o casacão.
Então, o menino foi para junto do muro e urinou.