O Japão deu início a sua miraculosa transformação em potência moderna durante o reinado do imperador Meiji, que subiu ao trono em 1867. Com uma população de 40 milhões de habitantes, o país aspirava construir um império global. Na década de 1870, assenhoreou-se de um dos estados vassalos da China, as ilhas Ryukyu (Liuqiu), e tentou invadir Taiwan, parte do Império Chinês. A política geral de Cixi consistia em manter o império intato a todo custo, mas abrir mão dos estados vassalos se necessário. Ela demonstrou não fazer questão de Ryukyu, por atos, se não por palavras, mas fez um esforço determinado para defender Taiwan, ligando a ilha mais estreitamente ao continente.
O Japão também lançou os olhos sobre a Coreia, outro Estado vassalo da China. Nesse caso, Cixi tentou impedir que os japoneses anexassem o país, pois ele fazia fronteira, em parte, com a Manchúria, que ficava próxima a Beijing. Como a China não tinha força suficiente para deter o Japão sozinha, Cixi procurou envolver também o Ocidente, como elemento dissuasor. Instruiu o conde Li a persuadir a Coreia a estabelecer relações comerciais com as potências ocidentais, de modo que elas passassem a ter interesses no país. Em 1882, irrompeu um conflito interno na Coreia, e a legação japonesa foi atacada. Tóquio mandou uma canhoneira à Coreia a fim de proteger seus cidadãos. Assim que tomou conhecimento disso, Cixi falou ao conde Li de seu temor de que o Japão “pudesse explorar a situação para concretizar seus desígnios”.1 De imediato, despachou tropas, por terra e por mar, para a capital da Coreia, a atual Seul, com o conde Li no comando geral e baseado em Tianjin. Enquanto o Exército chinês ajudava a reprimir os distúrbios, os japoneses se abstiveram de se envolver na luta. Obtiveram algumas compensações, porém o mais importante foi que seus soldados lá permaneceram. Em resposta, Cixi ordenou que parte de suas tropas continuasse na Coreia enquanto houvesse ali uma presença militar japonesa.* Escrevendo ao conde Li de próprio punho e com tinta carmesim, para ressaltar a importância de suas palavras, ela disse: “Apesar de ser um país pequeno, o Japão tem grandes ambições. Já engoliu Liuqiu e agora volta os olhos para a Coreia. Temos de nos preparar sem chamar a atenção. O senhor deve ser extremamente cauteloso com o Japão e não baixar sua guarda em momento algum”. Foi sobretudo por essa razão que ela decidiu gastar quantias enormes na modernização da esquadra.
No fim de 1884, enquanto a China travava uma guerra contra a França em sua fronteira com o Vietnã, ocorreu um golpe pró-Japão na Coreia. Por informações que colheu, Cixi acabou se convencendo de que “os japoneses estavam por trás do golpe”, “tirando partido das preocupações da China em outra parte”.3 Enviou tropas para reprimir o golpe, mas pediu a seus comandantes que não dessem ao Japão nenhuma desculpa para começar uma guerra. Num choque entre forças chinesas e japonesas no palácio do rei da Coreia, os chineses saíram vitoriosos. Seguindo instruções de Cixi, o conde Li abriu negociações com o conde Ito Hirobumi, que logo se tornaria primeiro-ministro do Japão, e ambos os lados concordaram em retirar as tropas da Coreia. Cixi ficou satisfeita com a “conclusão rápida e satisfatória”.4 O resultado agradou também a Robert Hart, inspetor geral da Alfândega, que escreveu numa carta: “Os japoneses pretendiam assinar ontem em T’tsin [Tianjin]: ou seja, ganhamos em todas as frentes”.5
No decorrer da década seguinte, o Japão acelerou a modernização de suas Forças Armadas, principalmente a Marinha. Na China, Cixi baixou sua diretriz para o desenvolvimento naval, pouco antes de transmitir o poder, no começo de 1889: “Continuem a expansão e a atualização, aos poucos, mas sem nunca diminuir o ritmo”.6
Entretanto, depois da aposentadoria de Cixi, a China deixou de adquirir navios de guerra modernos.7 O imperador Guangxu era orientado pelo grão-preceptor Weng, que também cuidava das finanças do país, como titular do Ministério da Receita. Weng não compreendia o motivo pelo qual somas imensas deveriam ser gastas na compra de navios de guerra, se não existia nenhum conflito. Não via o Japão como uma ameaça. Tudo o que lhe importava eram os problemas internos. Em 1890, desastres naturais assolaram o país e enchentes deixaram milhões de pessoas desabrigadas. Hart escreveu: “Tivemos lagos na cidade… um mar em torno dela… rios nas ruas… piscinas no pátio… chuveiros nos quartos… e destruição em vez de tetos, de telhados”.8 Homens e mulheres famintos dependiam dos centros de distribuição de arroz, aos quais Cixi, como imperatriz-viúva, fez donativos. O governo gastou mais de 11 milhões de taéis importando arroz naquele ano.9
Passado o desastre, e tendo as importações de arroz caído à metade, não se retomou a modernização da esquadra. Pelo contrário, em 1891, quando Cixi se mudou para o Palácio de Verão e cortou todos os laços com o governo, o imperador Guangxu decretou que cessassem todos os gastos com a Marinha e o Exército, atendendo ao conselho do grão-preceptor Weng (“não temos guerra na costa”).10 Essa decisão pode ter causado uma cisão entre o imperador Guangxu e Cixi, que temia que o Japão agora ultrapassasse a China em equipamento bélico. Com efeito, como observou o conde Li, o Japão “está concentrando os recursos de todo o país na ampliação de sua Marinha” e “está comprando um vaso de guerra a cada ano […] inclusive encouraçados de primeira linha, os mais modernos, da Grã-Bretanha”.11 Em decorrência desse programa, nos anos seguintes a Marinha japonesa superou a chinesa em capacidade geral, e sobretudo no tocante a belonaves mais rápidas e mais modernas. Também o Exército japonês adquiriu melhores equipamentos.12
Nessa época, o conde Li estava encarregado da defesa da costa. O imperador Guangxu herdara e mantivera a antiga equipe de Cixi ao assumir o poder. Apesar de todo o ressentimento que sentia pelo Papai Querido, não estava empenhado numa disputa de poder com ele. O imperador tampouco se interessava por questões militares — na verdade, preferia não pensar nisso e deixava tudo nas mãos do conde Li. No entanto, embora o conde arcasse com essa enorme responsabilidade, perdera a confiança total que Cixi tinha nele. Do lado do imperador estava seu feroz inimigo, o grão-preceptor Weng. A animosidade do preceptor real, um arquiconservador, contra o principal reformador do país tinha raízes antigas. O preceptor sempre suspeitara de que parte das verbas destinadas ao conde para modernizar a esquadra acabava em seus bolsos e nos de seus auxiliares. Era essa suspeita de desvio de recursos que estava por trás do conselho que dera ao imperador para que interrompesse todas as compras de equipamento moderno para a Marinha. Assim que Cixi se afastou, o grão-preceptor começou a verificar as contas do conde, ano a ano, desde 1884, quando tivera início um grande plano de modernização da esquadra. Pediu-se ao conde que apresentasse dados contábeis detalhados, respondesse a consultas sem fim, apresentasse justificativas para as despesas e que solicitasse, caso a caso, verbas para despesas essenciais, como a manutenção dos navios.13 Mesmo assim, o grão-preceptor não ficou satisfeito e nomeou o príncipe Ching como supervisor geral da Marinha, num sinal de falta de confiança no conde.
No entender do conde Li, o trono “prefere crer em rumores infundados e parece desejar reduzir o poder” do comandante da Marinha.14 Diante dessa pressão, decidiu agradar ao imperador para manter o cargo. Depois que o imperador Guangxu cortou as compras para a Marinha, e sabendo que sua majestade não queria gastar dinheiro na defesa, o conde lhe apresentou um animado relatório em que dizia ser a costa da China inexpugnável.15 O informe não fazia menção a problema algum, embora o conde soubesse que eram muitos. Privadamente, ele escreveu: “Nossos navios não são modernos, e o treinamento é deficiente. Teríamos dificuldades numa batalha naval”.16 Mais tarde, chegou até a dizer que sempre soubera que as Forças Armadas chinesas eram um “tigre de papel”.17 Mas ao imperador Guangxu só disse o que sua majestade queria ouvir. De fato, o imperador ficou satisfeito e o cobriu de elogios por ter realizado um trabalho brilhante.
Continuamente os comandantes da Marinha lhe pediam navios novos, mas o conde não transmitia essas solicitações ao trono.18 Temia que o grão-preceptor Weng o acusasse de falar de perigos para forrar os próprios bolsos e que o imperador pudesse demiti-lo.
O conde negava as ambições do Japão. Parecia não ter a mínima preocupação, embora visse que a expansão naval daquele país tinha como objetivo superar a China: o Japão estava “procurando ser melhor do que nós em tudo: se a velocidade de nossas canhoneiras é de quinze nós, eles querem que a das deles seja de dezesseis”.19 “Esse país irá longe”, comentou com um colega. Entretanto, fechava os olhos para o fato inevitável de que o Japão só poderia “ir longe” à custa do Império Chinês.
Se Cixi estivesse no poder, jamais teria permitido que o Japão ganhasse superioridade em equipamento militar. Sabia que essa era a única forma de detê-lo. Antes de se afastar, havia construído a esquadra mais poderosa da Ásia, muito mais bem equipada do que a do Japão. E manter essa vantagem não era de modo algum impossível, uma vez que os japoneses dispunham de muito menos recursos na época e não tinham como travar uma corrida armamentista.
Entretanto, aposentada, Cixi não tinha informações suficientes nem o direito de dar palpites em assuntos internacionais. Além disso, o jovem imperador não era um estrategista. Simplesmente deixava todo o encargo de defender o país por conta do conde Li, cujos cálculos eram ditados pelo interesse pessoal.
Em 29 de maio de 1894, depois de inspecionar a costa, o conde Li apresentou ao monarca outro relatório otimista.20 Dessa vez, porém, notavam-se sinais de apreensão: o conde mencionou que o Japão vinha comprando vasos de guerra a cada ano e que a China estava ficando para trás nesse quesito. Contudo, evitou deixar claras as implicações, que passaram despercebidas ao imperador. Sua majestade não fez perguntas e mais uma vez louvou o conde pela qualidade de seu trabalho.
Nesse momento, o Japão atacou. Na primavera daquele ano, houvera um levante camponês na Coreia. No dia 3 de junho, o rei coreano pediu à China que enviasse tropas, e Beijing assentiu. Cumprindo o que ficara ajustado no acordo do conde Li com o conde Ito, a China deu ciência disso ao Japão. Tóquio alegou que precisava ter forças próprias na Coreia a fim de proteger seus diplomatas e civis e despachou uma força. A sublevação chegou ao fim antes que as tropas de ambos os países interviessem, e os coreanos lhes pediram que se retirassem. Os chineses concordaram em fazê-lo, mas os japoneses se recusaram a sair.
O primeiro-ministro japonês era agora o conde Ito, que assinara o acordo com o conde Li dez anos antes. Estadista de escol, Ito desde então ajudara a redigir a Constituição Meiji (1889) e a criar uma Dieta nacional bicameral (1890), que lançara os alicerces do Japão moderno. Ao despachar as tropas para a Coreia, a intenção dele era de que elas lá permanecessem, como primeiro passo para uma meta muito mais ambiciosa: dar início a uma disputa militar com a China, derrotar o gigantesco império e se tornar a nação líder e senhora da Ásia Oriental. Por isso, em vez de retirar as tropas, ele enviou mais soldados. Seu pretexto para esse ato de invasão era o de que o governo coreano deveria ser forçado a executar “reformas” modernizantes. Ito disse aos chineses que seriam bem-vindos se quisessem participar dessa iniciativa “reformista”, mas que se preferissem ficar de fora, o Japão a realizaria sozinho. O plano do primeiro-ministro Ito punha o Japão numa situação em que o país não tinha como perder. Se as tropas chinesas saíssem, o Japão ocuparia a Coreia — e desafiaria a China numa ocasião que lhe conviesse. Se os chineses ficassem, haveria um sem-fim de oportunidades para criar um conflito entre os dois exércitos e provocar uma guerra, também na época em que isso conviesse ao Japão. Na verdade, o primeiro-ministro Ito decidira confrontar a China.21
No governo chinês, ninguém, nem mesmo o conde Li, percebeu as intenções do Japão. Enquanto crescia a presença militar japonesa na Coreia, a vida seguia como sempre em Beijing. O imperador Guangxu continuava a receber suas aulas de textos clássicos e planejava banquetes para comemorar seu aniversário no fim de julho. O grão-preceptor Weng praticava caligrafia em leques, passatempo comum de letrados, e avaliava, com outros conhecedores, suas estimadas coleções de cópias de petróglifos em papel. Temendo provocar uma guerra, o conde Li retardava o envio de reforços para as tropas chinesas na Coreia. Não parece ter lhe ocorrido que a meta do Japão não se limitava à Coreia, que na verdade aquele país estava procurando entrar em guerra com a China. Acreditando que a paz poderia ser preservada, o conde fazia ativa pressão junto a potências europeias, em especial a Rússia, que tinha seus próprios interesses na Coreia (bem conhecidos do conde), na esperança de que elas interviessem e contivessem os japoneses — esperança que se mostrou vã. Robert Hart observou que o conde “faz cálculos com muita confiança numa intervenção estrangeira e infere demais da disposição do Japão para negociar”.22 “As potências estão ativas, tentando induzir o Japão a se retirar e discutir, pois não desejam a guerra, mas o Japão se mostra muito arrogante e presunçoso.” O Japão “lhes agradece os amáveis conselhos, segue seu caminho e, provavelmente, preferiria lutar com todas elas a ceder!”.
No fim de junho, enfim, ocorreu ao conde Li que o Japão estava “não só ameaçando a Coreia”, como desejava uma guerra decisiva “com a China, usando tudo o que tem”.23 Essa percepção nasceu de notícias dadas por Robert Hart. “O Japão está mobilizando 50 mil soldados, encomendou dois vasos de guerra encouraçados à Grã-Bretanha e comprou e arrendou muitos veículos comerciais ingleses para o transporte de tropas e armamentos.” Ao dar essas informações ao imperador, o conde enfatizou os problemas enfrentados pela defesa de seu país. Dessa vez, deixou claro que a China não “seria capaz, provavelmente, de vencer no mar” e, além disso, que só havia 20 mil tropas terrestres para defender toda a costa norte, da Manchúria a Shandong.
O imperador notou a discrepância entre essas informações e o recente relatório otimista do conde, mas não se alarmou. Disse que a guerra entre a China e o Japão por causa da Coreia estava “dentro de nossas expectativas” e se mostrou confiante.24 Encheu o peito para falar em “lançar uma ação militar punitiva em grande escala”.25 A sensação de superioridade de sua majestade em relação ao Japão era compartilhada pela grande maioria de seus súditos. Hart comentou: “Entre mil chineses, 999 têm certeza de que a grande China pode acabar com o pequenino Japão”.26
Em 15 de julho, enquanto o Japão agia “de forma realmente magistral”27 (palavras de Hart), o imperador chinês nomeava seu preceptor de letras clássicas como o principal consultor para a guerra. O Grão-Conselho não podia se reunir sem a presença de Weng. Mestre e aluno nutriam uma alegre ignorância do péssimo estado da defesa do país. Hart escreveu nessa época que a China descobriria que “seu Exército e sua Marinha não eram o que ela esperava que fossem”28 e que se houvesse uma guerra “o Japão há de arremeter com denodo e talvez com sucesso, enquanto a China, com sua tática antiga, terá de se avir com muitas derrotas”. Com efeito, as Forças Armadas chinesas tinham recaído em seu velho esquema de indisciplina e corrupção. Canhoneiras tinham sido usadas para o transporte de contrabando, e canos de fuzis, imundos, como cabides de roupa. O nepotismo inchara as Forças Armadas de oficiais incompetentes. Ninguém estava disposto a ir à guerra, enquanto as forças japonesas, bem treinadas, tinham se transformado numa soberba máquina de guerra, pronta para a ação.
Tardiamente, o conde Li começou a transportar tropas para a Coreia, por mar, usando para isso três navios britânicos. Enquanto isso acontecia, no dia 23 de julho tropas japonesas entraram em Seul, capturaram o rei coreano e instalaram um governo-fantoche, que concedeu ao Exército japonês o direito de expulsar as tropas chinesas. No dia 25, a Marinha japonesa lançou um ataque de surpresa aos navios que transportavam soldados chineses e afundou um deles, o Kow-shing. Morreram quase mil homens, entre eles cinco oficiais da Marinha britânica. Só dois dias mais tarde o conde Li deu ao imperador Guangxu a notícia do primeiro choque militar com o Japão. Li receava que o imperador, mal informado, se apressasse a declarar guerra ao Japão. Estava tentando usar o afundamento de um navio britânico para evitar a guerra. “A Grã-Bretanha não pode permitir isso”, calculou o conde.29 Londres teria de fazer alguma coisa para conter o Japão. Ele se agarrava a suas esperanças como a uma palha.
Logo se viu que nem a Grã-Bretanha nem as outras potências queriam se envolver. A China e o Japão se declararam em guerra em 1o de agosto. Assim, o encargo de conduzir a primeira guerra moderna da China — e sua maior guerra em mais de duzentos anos — caiu nos ombros de um rapaz de 23 anos que até então levara uma vida totalmente isolada. Guangxu tinha pouco conhecimento do mundo, apenas informações esparsas sobre suas próprias Forças Armadas e nenhuma sobre as de seu inimigo, e como consultor dependia quase exclusivamente de seu retrógrado mestre de letras clássicas. Seu comandante militar, o conde Li, apostava tudo em esforços de paz e deixou de preparar defesas adequadas. Pior, o conde se sentia incapaz de discutir planejamento estratégico com Guangxu, e com frequência lhe escondia a verdade.
A esse lastimável estado de coisas, o Japão contrapunha um Exército moderno e com excelente liderança. Não era difícil prever o resultado da guerra. Os chineses sofriam uma derrota catastrófica atrás da outra, tanto em terra, na Coreia, quanto no mar. No fim de setembro, os japoneses tinham capturado Pyongyang, a principal cidade do norte da Coreia, e avançado até o rio Yalu — a fronteira com a China.
Durante todo esse tempo, o imperador Guangxu em nada consultou Cixi e só lhe informou que a guerra parecia inevitável pouco antes de 16 de julho. Ela estava residindo em seu Palácio de Verão, apartada do centro nervoso das decisões políticas, e não tinha mais do que uma imagem vaga do conflito. O imperador a procurara para que ela confirmasse a decisão a favor da guerra, e ela lhe deu seu pleno apoio.30 Acentuou também que “não devia fazer nada que dê a impressão de fraqueza”.31 A forma como o conde Li se conduzia na busca da paz era uma admissão de fraqueza — até de desespero. E no entanto não havia sinal de que a mensagem tivesse sido transmitida ao conde. O imperador Guangxu só a mencionou en passant ao grão-preceptor Weng em seu gabinete privado. A própria Cixi não tinha nenhum contato com o conde e nenhum meio de dar a ele, ou a quem mais fosse, instruções diretas.
Depois dessa breve consulta, o imperador Guangxu não procurou mais saber a opinião de Cixi. O papel dela era puramente simbólico. Deu-se, em nome dela, uma condecoração a uma unidade do Exército que, segundo informações, teria obtido a primeira vitória da China — mas depois se viu que a notícia era falsa. Não resta dúvida de que Cixi estava extremamente ansiosa. Ao que parece, ela tentou fazer com que alguns grão-conselheiros lhe passassem informações, por intermédio do príncipe Ching, mas o imperador Guangxu soube disso e admoestou os conselheiros.32 A pedido de um grupo de amigos chegados, o imperador manteve Cixi fora do círculo de decisões.33 Os relatórios sobre a guerra eram apresentados apenas ao imperador, em envelopes fechados, e ele só permitia que Cixi tomasse conhecimento dos títulos.
Desde o início da guerra, nos primeiros dias de agosto, até a véspera da queda de Pyongyang, no fim de setembro, parece que o imperador Guangxu só consultou Cixi uma vez, quando quis demitir o almirante Ting, comandante da Frota do Norte, que estava travando a guerra. O Regimento redigido quando de sua acessão ao poder o obrigava a obter a aprovação de Cixi no caso de substituição de pessoal de primeiro escalão. Ao expor o caso, o imperador acusou o almirante de “covardia e incompetência”,34 por não ter mandado seus navios para mar aberto. Na realidade, o almirante estava adotando uma estratégia defensiva, pois os navios dos japoneses eram melhores e mais rápidos e a superioridade nipônica teria sido decisiva em mar aberto. Permanecendo em sua base, a frota tinha a proteção dos fortes. Entretanto, o imperador dera ouvidos ao conselho de um primo da concubina imperial Pérola, Zhirui, que insistiu em que “o Japão não passava de um país minúsculo e pobre, nossos navios devem desfilar em alto-mar […] e atacar e destruir os navios deles. Nossos canhões devem disparar primeiro, no momento em que encontrarmos um navio inimigo”.35 Ao ver o edito que demitia o almirante, Cixi se irritou e disse com fúria visível: “Não se comprovou que o almirante tenha cometido algum crime!”. Recusou-se a permitir que o edito fosse baixado. Num gesto de desafio, o imperador Guangxu deu uma ordem particularmente irada, condenando o almirante e ordenando ao conde Li que achasse um substituto. O conde escreveu um longo arrazoado, implorando que o imperador reconsiderasse sua decisão, explicando a estratégia defensiva, destacando que não havia ninguém em condições de substituir o almirante e argumentando que sua demissão poderia causar uma revolta na Marinha. Por fim, o imperador suspendeu de má vontade a demissão, mas continuou a repreender e censurar o almirante.36
Foi contra esse pano de fundo que o almirante comandou uma grande batalha naval em 17 de setembro de 1894, na qual cinco de seus onze navios foram a pique. Isso, com a queda iminente de Pyongyang, forçou o imperador Guangxu a envolver Cixi, que também achara uma oportunidade de deixar o Palácio de Verão e ficar no Palácio do Mar, adjacente à Cidade Proibida. Assim, no dia da devastadora batalha naval e após dois meses de sucessivos desastres militares, Cixi viu o Grão-Conselho pela primeira vez em anos.37 Ainda não tinha um mandato para conduzir a guerra. No começo, imaginou-se que sua intervenção seria breve, de apenas dez dias, depois dos quais ela deveria voltar ao Palácio de Verão, em 26 de setembro.38 No entanto, por causa de seu status e de suas realizações prévias, ela assumiu certa autoridade — principalmente diante dos olhos daqueles que a cultuavam. Para pô-la a par dos fatos, o conde Li apresentou relatórios pormenorizados, anexando telegramas que havia recebido.39 À medida que se desenhou o quadro sinistro, Cixi anunciou que doaria 3 milhões de taéis para a manutenção do Exército.40 A seguir, prorrogou sua estada no Palácio do Mar por outros dez dias, até 6 de outubro — “provisoriamente”, o que dava a entender que ela poderia ser mais longa. Ao mesmo tempo, cancelou todas as comemorações de seu sexagésimo aniversário,41 que caía em 7 de novembro.**
Os preparativos desse aniversário tinham começado três anos antes, sob a supervisão do grão-preceptor Weng, entre outros. O sexagésimo aniversário era um marco para os chineses, e o da imperatriz-viúva exigia festividades esplendorosas. Uma das principais responsabilidades do Ministério do Ritos, um importante órgão do governo, consistia em preparar programas para tais ocasiões. Dessa vez, o programa seguia o precedente fixado por Qianlong, o Magnífico, para seu próprio sexagésimo aniversário e também para o de sua mãe, e ocupava dois livretos encadernados em cetim vermelho. Os arquivos de decretos imperiais listavam honrarias a ser concedidas, promoções a ser firmadas, criminosos a ser indultados e mil e uma outras coisas a ser feitas. No caminho entre a Cidade Proibida e o Palácio de Verão haviam sido selecionados sessenta locais onde ergueram arcos, pavilhões, tendas e palcos, todos ricamente decorados, para óperas e bailados. Tudo isso estava sendo agora cancelado. Cixi só receberia cumprimentos na Cidade Proibida, numa cerimônia muito reduzida.
Durante vários dias, Cixi estudou a história da guerra, concluindo que o conde Li levara a China a uma situação caótica, devido a uma série de erros de cálculo e de improbidade administrativa, como induzir o imperador a equívocos. Como o Exército tinha com o conde uma fidelidade pessoal, ela considerou que ele não podia ser demitido. A quem pedia sua cabeça, ela respondia: “Vamos dar tempo ao tempo. Não há quem possa ocupar seu lugar”.42 O príncipe Gong foi reconduzido e nomeado líder do Grão-Conselho. No entanto, não podia fazer milagres. Houve mais derrotas — e mais heroísmo. Numa batalha naval, um capitão chamado Deng Shichang tentou abalroar um navio japonês, mas quando a manobra falhou e seu próprio navio afundou, ele se recusou a ser resgatado e se afogou (aparentemente junto com seu cachorro).
No fim de setembro, todas as tropas chinesas tinham sido expulsas da Coreia para seu lado do rio Yalu. Nas palavras de Robert Hart, Beijing sabia que “levar os combates adiante é irresponsabilidade e que a melhor medida a tomar é buscar um acordo rápido”.43 Dois grão-conselheiros procuraram Hart para que ele pedisse à Grã-Bretanha que intermediasse a paz. Os britânicos propuseram duas condições para pôr fim à guerra: que a Coreia se tornasse um protetorado das potências internacionais e que a China pagasse uma indenização de guerra ao Japão. Nas circunstâncias, essas condições não eram tão más. No entanto, indignaram o grão-preceptor Weng. Tachando de “maldoso” o ministro britânico que apresentara a proposta, ele exigiu que o Grão-Conselho rejeitasse as condições. Cixi dedicou muito tempo tentando persuadi-lo a aceitar a proposta britânica, dizendo-lhe que era esse o desejo dela. Com muita relutância, o cortesão se curvou ao desejo da imperatriz-viúva, e os britânicos apresentaram a proposta aos japoneses.44
Esse episódio mostrou a Cixi que sua situação atual era muito diferente da que existia antes de sua aposentadoria. Ela era agora somente uma “consultora”, ainda que influente. Na verdade, não tinha informações suficientes, pois o imperador só lhe dava acesso a alguns relatórios, o que fazia com que seu quadro da guerra fosse incompleto. Em resultado disso, ela se iludiu, julgando que, com a mediação dos britânicos e o pagamento de uma indenização, chegariam a um acordo. Subestimou o apetite do Japão, acreditando que a essa altura Tóquio estaria satisfeito em engolir a Coreia. Enquanto aguardava a resposta do Japão à proposta britânica, fez uma coisa que não combinava com ela como estadista, mas sim com outro lado seu, a de uma mulher ávida por coisas belas. O conde Li acabara de lhe enviar uma lista dos presentes dele por ocasião de seu aniversário, e consistia em nove conjuntos de tesouros:***
Nove ru-yi de jade incrustados, nove estátuas de ouro puro do Buda da Longevidade, nove relógios de ouro cravejados de brilhantes, nove pares de taças de ouro de “boa sorte” e “longevidade”, nove flores de cabelo de diamante, nove peças de veludo puro amarelo, nove peças de brocado amarelo com estampas florais, nove incensários de ouro cravejados com sete gemas e nove vasos de ouro cravejados com sete gemas.45
Era uma lista esplêndida, até mesmo para a imperatriz-viúva da China. E era particularmente tentadora para Cixi, a quem muito agradavam objetos de arte e artigos de luxo. O conde, que não possuía riquezas fantásticas, estava realmente ansioso por conquistar as boas graças de Cixi, com a esperança, claro, de que ela salvasse sua pele. Havia relacionado esses presentes sabendo que Cixi tinha emitido um decreto, dois anos antes, em que anunciava: “Nada de presentes, por favor”, em seu sexagésimo aniversário.46
Os presentes do conde confirmaram que ele era um perito na arte de agradar aos superiores explorando seus pontos fracos. De fato, era difícil para Cixi recusar aquelas preciosidades. E se ela aceitasse os presentes do conde, teria de aceitar os de outras pessoas. Aniversários de décadas redondas eram as principais ocasiões para presentear, mas seu quinquagésimo aniversário fora marcado pela guerra com a França, e Cixi tivera de vetar todos os presentes. Teria ela de renunciar a essa oportunidade de novo? A tentação se mostrou forte demais. Depois de alguns dias de dúvidas cruéis, Cixi se convenceu de que aceitar presentes de aniversário não era incompatível com travar a guerra. Essa decisão foi semelhante à sua ilusão no passado, quando achou que tirar uma soma relativamente pequena das verbas para a Marinha não faria diferença para a esquadra. Agora ela efetivamente rescindiu seu próprio decreto e mandou os eunucos anunciarem que as autoridades acima de certo nível podiam lhe dar presentes, se assim desejassem.47
Suas palavras imediatamente causaram desassossego entre as altas autoridades na corte. Algumas, como o grão-preceptor Weng, disseram que não tinham preparado nada por obedecerem ao decreto da própria imperatriz-viúva e porque a admiração que tinham por ela não podia, afinal, ser medida por objetos materiais (segundo uma máxima confuciana). No entanto, a linha geral estava definida: todos começaram a dar tratos à bola para resolver o que lhe oferecer, e Weng e alguns outros contrataram um agente para solucionar o problema para eles. Percebendo que cometera um erro, Cixi se apressou a emitir um edito em que tentava se explicar, dizendo que achava que seria errôneo de sua parte rejeitar a boa vontade das pessoas.48 Mas o mal já estava feito. O espírito de luta, que já era baixo na corte, agora desaparecia. Robert Hart escreveu numa carta:
As coisas parecem mal aqui. As autoridades não têm espírito de luta, e a desesperança, de modo geral, está baixando em todos: as perspectivas são de fato bem ruins, e se o Japão não aceitar a “folha de oliveira”, não sei como haveremos de sair dessa situação.49
Os japoneses não aceitaram a “folha de oliveira”. Sem responder aos britânicos, lançaram ataques às defesas da fronteira chinesa, que desabaram como castelos de cartas. Os japoneses estavam dentro da própria China em 27 de outubro. Tardiamente, Cixi tentou medidas de última hora. Propôs doar mais 2 milhões de taéis ao esforço de guerra. Mas esse gesto não podia salvar a guerra ou sua imagem. Seus rituais de aniversário, muito reduzidos, foram levados a cabo ao som dos tambores de um Exército japonês que avançava. As cerimônias foram uma fachada que ela estava obrigada a preservar: cancelá-las equivaleria a anunciar uma catástrofe nacional e causaria espanto ao império. Entretanto, nem mesmo a pompa prescrita podia dissipar a atmosfera densa e pesada.
As potências ocidentais viram, com escândalo e desdém, que o império parecia incapaz de opor uma resistência decente e só tinha forças para uma fanfarra de aniversário. A reputação de Cixi despencou. Robert Hart escreveu com ironia, sem mostrar agora nenhum traço de sua passada reverência pela imperatriz-viúva: “É provável que vejamos o aniversário da imperatriz-viúva (7 de novembro) ser comemorado com a captura de Liao Yang — não creio que [os japoneses] possam chegar a Moukden nessa data!”.50 Liao Yang ficava bem no meio da península de Liaodong, no sul da Manchúria, perto da Coreia, e Moukden era a velha capital dos manchus, mais ao norte.
Em 21 de novembro, os japoneses capturaram o estratégico porto-fortaleza de Port Arthur, na extremidade sul da península de Liaodong — a porta para a Manchúria, por terra, e para Tianjin e Beijing, bastando cruzar um breve trecho de mar. Essa catástrofe fez Cixi se dar conta de toda a dimensão das ambições e da capacidade militar do Japão. Lamentou amargamente o fiasco dos presentes e da cerimônia de aniversário, por mais reduzida que tivesse sido. Mais tarde, declarou que não aceitaria nem presentes nem comemorações em nenhum de seus aniversários. Seu septuagésimo aniversário, uma data especial, não seria exceção.51 Nessa ocasião, propostas para que ela aceitasse tributos correram pelas províncias, mas ela se manteve firme.
De volta a novembro de 1894, Cixi também atribuiu a culpa por seus erros de julgamento ao acesso restrito que tinha a informações. Agiu no sentido de pôr fim ao embargo, imposto pelo filho adotivo, a seu acesso aos relatórios dirigidos a ele. Como essa atitude nascera, em grande parte, devido a conselhos de amigos, que haviam chegado a ele por meio de Pérola, a concubina favorita do imperador Guangxu, Cixi abordou-a primeiro.
Oficialmente, como integrante do harém, Pérola era sua pupila, e Cixi nunca mostrara má vontade com relação a ela. Na verdade, até procurara ser gentil com a concubina, convidando a ela e a sua irmã, Jade, para se hospedarem no Palácio de Verão. Quando Pérola manifestou desejo de aprender a pintar, Cixi permitira que a sra. Miao lhe desse aulas. No começo daquele ano, como parte das comemorações de seu sexagésimo aniversário, Cixi promovera Pérola a um nível acima na hierarquia das consortes imperiais. Agora com dezoito anos, Pérola era louca por dinheiro. Uma despesa nada irrelevante para as concubinas imperiais eram as gratificações que davam aos eunucos, para ser bem atendidas, e Pérola era generosa nesse aspecto. Em troca de dinheiro, ela vendia cargos oficiais a quem pagasse melhor.52 Um desses cargos era o de prefeito de Shanghai, e ela pediu ao imperador que desse o cargo a certo Lu. Quando o imperador Guangxu determinou ao Grão-Conselho que nomeasse Lu — sem informar aos conselheiros que a nomeação fora pedida por Pérola —, eles questionaram a nomeação, pois nunca tinham ouvido falar dessa pessoa. O imperador foi obrigado a permitir que Lu fosse avaliado pelo Ministério do Funcionalismo. O órgão concluiu que Lu não merecia um cargo em Shanghai e o pôs numa lista de reserva, à espera de que vagasse um cargo bem mais baixo. Correu a notícia de que Lu era analfabeto e subornara Pérola com uma quantia bastante elevada. Havia casos semelhantes.
O fato de uma consorte imperial tirar proveito de seu relacionamento com o monarca para vender cargos oficiais era uma atitude ilícita punível com a morte na dinastia Qing. O imperador se tornaria objeto de escárnio e seria considerado estúpido e indigno se o escândalo viesse à tona. Cixi sabia dos malfeitos de Pérola e do envolvimento de Guangxu, e resolveu usá-los para forçar o filho adotivo a aceitar suas exigências. Obteve confissões de Pérola e dos eunucos que a serviam — ao açoitar os eunucos nas costas com longos bastões de bambu e obrigar Pérola a assistir ao castigo enquanto a pele deles rachava e seus gritos se reduziam a balbucios.53 A própria Pérola foi esbofeteada. Sentindo fortes dores, humilhada e aterrorizada, ela desmoronou. Um médico da corte a encontrou “inconsciente, com os dentes trincados, e todo o corpo se contraindo e se agitando”. O sangue escorria da boca e do nariz. Pérola passou uma quinzena perdendo e recuperando a consciência.
Anos antes, quando Pérola acabava de ser escolhida como concubina imperial, sua mãe pressentira um destino infeliz para a filha. A sra. Headland, médica americana, fora chamada para ver a mãe de Pérola, e se lembrava de que a aristocrata
sofria um colapso nervoso devido à preocupação e à insônia. Inquirindo-a, eu soube que suas duas filhas tinham sido levadas para o palácio como concubinas do imperador Kuang Hsu [Guangxu] […]. Ela me pegou pela mão, puxou-me para seu lado na cama de tijolos e me contou a forma patética como as duas filhas tinham sido tiradas dela no mesmo dia. “Mas elas foram levadas para o palácio”, aleguei, tentando consolá-la, “e ouvi dizer que o imperador tem muito apreço por sua filha mais velha.” “É verdade”, ela respondeu, “mas como isso pode me consolar? […]. Tenho medo das intrigas da corte, e elas são apenas crianças e não podem entender a hipocrisia da vida na corte… Tenho medo por elas, tenho medo por elas”, e a mulher se balançava para a frente e para trás na cama de tijolos.54
Com a confissão de Pérola, Cixi forçou o filho adotivo a aceitar seu “acordo”. Ela permitiria que o papel dele no escândalo fosse acobertado, e em troca Guangxu lhe daria pleno acesso a todos os relatórios sobre a guerra. Em 26 de novembro, o imperador se ausentou quando Cixi expôs ao Grão-Conselho o que Pérola tinha feito e, ato contínuo, fez com que fosse emitido um decreto em sua qualidade de imperatriz-viúva supervisora do harém, anunciando as transgressões cometidas por Pérola e sua irmã Jade e rebaixando ambas de categoria.55 O decreto apresentava o imperador como um monarca de impecável integridade. Dizia que as duas concubinas imperiais tinham “suplicado ao imperador” que desse cargos a pessoas que elas haviam recomendado, mas que ele se sentira “profundamente incomodado por esse comportamento” e levara o caso à imperatriz-viúva, pedindo que as duas consortes fossem censuradas. Quando o grão-preceptor Weng se encontrou com o imperador Guangxu no dia seguinte, sua majestade tocou no assunto com toda a calma, como se fosse mesmo inocente.56 Nesse dia, 27, o imperador emitiu um edito ordenando que todos os relatórios dirigidos a ele fossem apresentados à imperatriz-viúva em sua forma original. Só a partir de então Cixi passou a ter pleno acesso às informações sobre a guerra.57
Entrementes, como lembrete da gravidade do escândalo, uma reprimenda em termos enérgicos foi emoldurada e pendurada no apartamento de Pérola. Um eunuco-chefe envolvido foi executado. Cixi quis que a execução fosse pública, mas o grão-preceptor Weng a convenceu de que isso prejudicaria a dinastia, e a sentença de morte foi executada no interior da Cidade Proibida, pelo Departamento de Punição da corte, com a utilização de longos bastões de madeira.
* * *
A seguir, Cixi resolveu separar o imperador Guangxu de seus amigos que lhe vinham recomendando excluí-la do processo decisório. Ela desejava muito expulsar da corte o primo de Pérola, Zhirui, o homem que também tentara fazer com que o imperador demitisse o almirante Ting e o metesse na prisão, e até o executasse, por nenhuma outra razão além do fato de o almirante ter assumido uma sensata posição defensiva. Em outra petição, Zhirui aconselhara o imperador a reduzir em 80% o soldo das tropas que defendiam a Manchúria — para economizar dinheiro, como disse.58 Por que ele escolheria a Manchúria, que faz fronteira com a Coreia, para esses cortes, quando os japoneses já chegavam às portas da China? Cixi não podia deixar de ver o conselho do primo Zhirui como nefasto e benéfico aos japoneses. Suspeitando bastante dele, mandou-o para um posto no extremo norte do império, bem longe da corte.
Cixi também planejou eliminar a influência de Wen Tingshi, um amigo de família de Pérola. Wen escrevera ao imperador dizendo que Cixi deveria ser barrada inteiramente da política, porque uma mulher desempenhando um papel no governo é como “uma galinha cacarejando de manhã, o que decerto prenuncia um dia funesto”.59 Além disso, Wen fizera com que um censor, Weijun, enviasse uma petição ao trono e acusasse Cixi de intromissão, alegando que ela era um fantoche de seu eunuco-chefe, Lianying. Cixi ficou fora de si com essa acusação, na qual até algumas altas autoridades tendiam a crer.60 Uma delas explicitou sua preocupação numa audiência, e a fúria de Cixi ficou patente quando ela a interrompeu e lhe disse que “ficasse certo” de que as acusações eram infundadas.61 Começaram a circular boatos de que ela era uma conciliadora e que vinha “fazendo pressão sobre o imperador para não lutar contra o Japão”. “Os historiadores vão escrever a história assim. Como hei de encarar o país? E o que as futuras gerações pensarão de mim?”, gritou ela. O imperador Guangxu sentiu-se compelido a punir o censor caluniador e o baniu para a fronteira durante vários anos. Esse castigo duro por crítica a Cixi era coisa de que não se tivera notícias durante seu reinado e causou sensação. Eram muitos os que acreditavam nas acusações (era, e ainda é, fácil fazer com que as mulheres sejam vistas como bodes expiatórios de fracassos) e elogiavam o censor como um herói. Grande parte da solidariedade a ele dedicada foi fomentada por Wen, cuja proximidade do imperador Guangxu lhe conferia credibilidade. Wen arrecadou centenas de milhares de taéis como um presente para o censor quando ele partiu para o exílio. Apesar de tudo quanto Wen fizera contra ela, Cixi o tratou com equanimidade. Durante a guerra ela o deixou em paz, e mais tarde fez com que o filho adotivo o expulsasse da corte e da capital. Dois outros amigos do imperador, que vinham lhe murmurando frases como “Não deixe a imperatriz-viúva se meter”, também foram demitidos depois da guerra, acusados de “jogar as duas majestades uma contra a outra”.62
Outra medida importante que Cixi tomou então foi tentar fechar o gabinete do imperador, que era o único lugar onde seus amigos podiam ir e conversar com ele sem despertar suspeitas.63 Era também ali que o monarca continuava a estudar os clássicos e a língua manchu — e até inglês — em meio a uma guerra desastrosa. Cixi tinha direito de fechar o gabinete porque, como genitora, tinha responsabilidades gerais por sua educação. Fechar o gabinete poria também um ponto final nos tête-à-têtes com o grão-preceptor Weng, durante os quais eles definiam a política de guerra. Cixi queria que as políticas fossem fixadas com o Grão-Conselho e em sua presença. Nomeou Weng como grão-conselheiro, para que ele não tivesse motivo para dar seus conselhos em particular.
A tentativa de Cixi de fechar o gabinete não teve êxito. O imperador Guangxu ficou muito aborrecido com a possibilidade de perder seu mundo privado e pediu ao príncipe Gong, agora à testa do Grão-Conselho, que interviesse. Também Weng se agastou. Por isso, Cixi teve de permitir que as aulas de letras clássicas prosseguissem, só conseguindo pôr fim às aulas de línguas. Foi obrigada a garantir a Weng que ela o considerava “leal e digno de confiança” e que o fechamento do gabinete não visava a ele, mas apenas a pessoas como Zhirui. Pediu desculpas por sua ordem ter sido “demasiado áspera”.
Só em decorrência dessa luta hercúlea foi que Cixi conseguiu penetrar no processo de tomada de decisões. Isso aconteceu perto do fim de 1894, meses depois do começo da guerra e quando a China já estava condenada à derrota.
* As tropas que permaneceram na Coreia eram comandadas por um oficial, Wu Changqing, que parece ter imposto uma rigorosa disciplina a seus homens, o que lhe valeu certa boa vontade por parte dos coreanos. Em 1884, ele adoeceu e voltou à China. Quando o militar se viu desenganado, seu filho adolescente, angustiado, cortou duas tiras de carne do lado esquerdo do próprio peito, perto do coração, e cozinhou-as junto com o remédio, numa esperança desesperada, mas vã, de que seu amor e sacrifício comoveriam o Céu e salvariam o pai. A ideia do rapaz tinha origem em moralidades confucianas.2
** Segundo o método de cálculo chinês.
*** Nove era considerado o número mais auspicioso, por ser o maior número de um só algarismo e ter a mesma pronúncia da palavra que significava “duradouro”, jiu.