Depois que Cixi declarou guerra, os boxers ganharam status legal e foram organizados sob o comando de príncipes que os apoiavam. Na capital, totalizavam cerca de 250 mil, sob o comando supremo do príncipe Duan. Dividiam-se em cerca de 1400 ligas, cada qual com aproximadamente duzentos membros.1 Mais de 100 mil deles defendiam a estrada para Beijing, juntamente com o exército regular, contra uma força internacional de mais de 20 mil homens. O exército regular tinha recebido treinamento ocidental e dispunha de armas modernas. Com fardamento ocidental, os boxers, agora seus irmãos de armas, chamavam os oficiais e praças do Exército de “cabeludos secundários”. Sarah Conger, mulher do ministro americano, registrou:
Juntos, os boxers e os soldados formavam um exército forte […].2 Os estrangeiros que conheceram os chineses melhor e por mais tempo afirmam que nunca viram algo de semelhante no comportamento deles […]. As batalhas em Tientsin [Tianjin] foram terríveis. Os chineses demonstraram uma bravura jamais imaginada por aqueles que os conheciam bem. Estavam resolutos, lutaram com brio e submeteram os exércitos ocidentais a uma dura prova.
O reverendo Arthur H. Smith escreveu: “Não resta dúvida de que os exércitos chineses […] lutaram com um destemor que não encontrava nenhum paralelo na guerra com o Japão”.3
Cixi expressou sua gratidão aos boxers e os recompensou com prata dos cofres da corte.4 Abriu armazéns onde se acumulavam armas antigas do exército regular, agora equipado com armas modernas, e as distribuiu entre os boxers.5 Equipados com essas armas, um tanto primitivas, e com suas facas e lanças, mais primitivas ainda, os boxers investiram contra a tecnologia moderna com uma disposição fanática. Um de seus inimigos assim se expressou: “Eles se aproximaram, devagar e gritando, com suas espadas e picaretas faiscando ao sol, só para ser abatidos, fileiras inteiras de uma vez, pelo fogo de fuzis e metralhadoras”.6 Seus líderes, que acreditavam em proteções sobrenaturais, foram os primeiros a morrer. Um soldado britânico descreveu uma cena: “Bem vestido, um líder dos boxers caminhou, sozinho e sobranceiro, em direção à ponte de barcos diante da infantaria russa […]. Agitou sua faixa e começou a realizar sua cerimônia, mas é claro que dentro de segundos virou um cadáver”.7
Vendo superados os poderes mágicos de seus líderes, alguns boxers admitiram que os estrangeiros só podiam ter poderes misteriosos e procuraram bloqueá-los mediante sujeira, uma estratégia antiga. Espalharam fezes humanas e ataduras de pés de mulheres — consideradas as coisas mais fedorentas — no parapeito das muralhas das cidades, na esperança infundada de que o mau cheiro afugentasse os estrangeiros.8 Também Cixi cometeu atos irracionais. Ditou dois editos, pedindo a um monge budista de quem se dizia ser capaz de fazer milagres, à força de orações, que fosse à frente de batalha e ajudasse a afastar os navios de guerra.9 À medida que soldados das forças aliadas continuavam a chegar aos borbotões, ficou claro que não havia magia, fedentina ou intervenção divina capaz de vencê-los.
Ao se tornarem fundamentais para o esforço de guerra, os boxers ficaram fora de si. Dedicaram-se ao que sabiam fazer com mais naturalidade: saquear e pilhar cidades, grandes e pequenas, que estivessem à sua mercê. Os prejuízos em apenas uma rua rica de Tianjin foram estimados em dezenas de milhões de taéis, antes que a cidade caísse nas mãos dos invasores. Turbas saquearam residências privadas, inclusive de pessoas importantes. Em Beijing, a mansão da princesa imperial, filha do falecido príncipe Gong, que Cixi adotara como filha, foi pilhada.10
Nem mesmo a Cidade Proibida ficou a salvo.11 Ali, príncipes de meia-idade passaram a se vestir como boxers — com uma blusa curta e uma faixa vermelha na cintura — e a se conduzir de forma agressiva, “pulando e gritando, agindo de maneira totalmente diferente do normal, como se estivessem doidos ou ébrios”, recordou Cixi mais tarde. Um deles “chegou a discutir comigo! Quase derrubou o altar imperial!”. Até membros da Guarda Pretoriana (da qual um ramo era comandado pelo príncipe Duan) aderiram aos boxers. Correu o boato de que os boxers pretendiam entrar na Cidade Proibida e matar dignitários pró-ocidentais, como o príncipe Ching e Junglu. Um dia, levou-se a Cixi um pedido dos boxers: que os criados da Cidade Proibida fossem mandados ao lado de fora para ser examinados, a fim de verificar se eram “cabeludos secundários”.12 Cixi perguntou como isso poderia ser feito, e lhe responderam que, depois de pronunciados certos encantamentos, os boxers seriam capazes de ver uma cruz na testa de qualquer pessoa que tivesse sido batizada. Aterrorizados, eunucos e camareiras suplicaram a Cixi que os protegesse, mas ela foi obrigada a lhes dizer que saíssem para ser examinados, por medo de que os boxers usassem isso como pretexto para atacar a Cidade Proibida. Por fim, os boxers não fizeram acusação alguma: pareceram satisfeitos com o fato de a própria imperatriz-viúva se sentir obrigada a fazer-lhes a vontade. Cixi sentiu-se como um “tigre de papel”. Aos vice-reis que se opunham ao modo como ela lidava com os fatos, explicou:
De repente, em questão de meses, havia mais de 100 mil boxers na capital, desde pessoas comuns a soldados, príncipes e nobres […]. A capital mergulharia num perigo inimaginável se eu tentasse usar o Exército para esmagá-los. Tenho de atender ao que desejam, para ser tratada como a líder deles e para, de alguma forma, controlá-los e não piorar as coisas.13
De fato, o controle exercido por Cixi era menos vigoroso do que de hábito. Bem diante dela, dezenas de milhares de boxers, juntamente com as tropas muçulmanas do Exército, sitiavam o Bairro das Legações. Quando rebentou a guerra, eles começaram a atacar o bairro. Cixi sabia que seria suicídio permitir que mais diplomatas fossem agredidos ou mortos, e não distribuiu armas aos boxers que estavam ali. As tropas muçulmanas, ferozmente antiocidentais, se achavam estacionadas em apenas um trecho do bairro, e o restante era protegido pelas tropas de Junglu, pró-Ocidente. Os ataques de Junglu eram ruidosos e determinados, mas pouco eficazes. De dentro do bairro, Sarah Conger escreveu sobre os ataques: “O toque das cornetas, os gritos e os disparos de suas armas são os sons mais aterradores que já ouvi”. E também: “Os chineses muitas vezes atiram bem alto, pelo que damos graças”.14
Com um estrondo, o canhão manda suas granadas sobre nós. Às vezes elas estouram sobre nossa cabeça, às vezes vão adiante, mas nem um só fragmento nos atinge. Quando o inimigo, depois de muitas tentativas, acerta a mira para nos atingir, e algumas granadas danificam nossos prédios, as mãos daqueles chineses parecem ser imobilizadas. Nem uma única vez continuaram a disparar de modo a destruir um desses prédios ou muros. Como pode ser isso, sem que seja Deus a nos proteger? Seu braço amantíssimo nos cinge.
A verdade era que Cixi dera especificamente o canhão a Junglu, que fizera com que a alça de mira fosse elevada muitos centímetros.15 Mais tarde Cixi diria: “Se eu realmente quisesse destruir as legações, elas não teriam como continuar existindo”.*17
Depois de um mês de sítio, Cixi começou a temer que os que estavam no Bairro das Legações pudessem morrer por falta de alimentos frescos, e disse a Junglu que fizesse com que frutas frescas e verduras fossem entregues às legações.18
O sítio durou 55 dias, de 20 de junho a 14 de agosto, quando a força aliada capturou Beijing. Entre os ocidentais que estavam no Bairro das Legações, houve 68 mortos e 159 feridos. Os chineses cristãos que morreram ou se feriram não foram contados. Os boxers, que atacavam praticamente de mãos nuas, sofreram milhares de baixas — muitas mais do que os inimigos estrangeiros, que estavam, aparentemente, em suas mãos.19
Outro prédio sitiado foi a catedral católica de Beijing, a Beitang, onde quase 4 mil cristãos estrangeiros e chineses haviam se refugiado. Ali, Cixi ordenou ao príncipe Duan, líder do sítio, que “não usasse canhões ou outras armas de fogo”. Assim, quando os boxers faziam ataques, com suas armas primitivas, contra um edifício robusto defendido com armamento superior, eram abatidos aos magotes. À medida que os estoques de alimentos na catedral se reduziam, de vez em quando grupos saíam correndo para procurar novas provisões. Quando soube disso, Cixi ordenou que “as tropas os atacassem”, porém depois mudou de ideia, e seu edito dizia: “Se cristãos conversos saírem, não os molestem, mas mandem tropas para protegê-los”.20 Por fim, muitos cristãos preferiram a morte pela fome, dentro da catedral, a cair nas mãos dos boxers. Essa decisão causou a maior parte dos quatrocentos mortos no sítio.
As políticas ambivalentes de Cixi em relação aos boxers mandaram muitos deles à morte certa, ao mesmo tempo em que garantiam a sobrevivência da maioria dos estrangeiros encurralados na China, muitas vezes entre multidões sanguinárias.
Em outras partes da China houve casos de missionários e conversos mortos por autoridades. As piores atrocidades ocorreram na província de Shanxi. Seu governador, Yuxian, fora transferido da província de Shandong para lá, pois Cixi o considerava demasiado favorável aos boxers — e não existiam boxers em Shanxi. As relações entre as missões, as autoridades de Shanxi e a população em geral tinham sido amistosas. No entanto, Yuxian levou consigo, para lá, seu ódio ao Ocidente. Utilizando sobretudo soldados, ele massacrou 178 missionários e milhares de conversos chineses, muitas vezes de formas horripilantes.21 Um sacerdote, monsenhor Hamer, foi levado
durante três dias pelas ruas de To To, estando todos autorizados a torturá-lo. Todo o seu cabelo foi arrancado, e seus dedos, nariz e orelhas, decepados. Depois disso, envolveram-no em panos impregnados de óleo e, pendurando-o de cabeça para baixo, atearam fogo a seus pés. Seu coração foi comido por dois mendigos.22
Tardiamente, Cixi pôs fim às atrocidades de Yuxian.23 Também vetou um massacre em escala nacional, proposto por alguns dignitários, entre eles Chongqi, o pai de sua falecida nora — o homem que, quase com certeza, mandou que a filha morresse de fome depois da morte do marido e que viria, ele próprio, a se suicidar (como faria também o resto da família) quando Beijing caiu em mãos de estrangeiros. Ele e alguns outros enviaram uma petição a Cixi, instando por “um decreto que comunicasse ao país inteiro que toda pessoa comum tem permissão de matar estrangeiros sempre que os vir”. Com isso, argumentaram,
as pessoas sentirão que podem tirar desforra das injustiças que trazem há muito reprimidas […]. Durante décadas foram envenenadas por estrangeiros [com o ópio], agredidas por cristãos convertidos e reprimidas por servidores públicos, grandes e pequenos, que passavam sentenças fraudulentas contra elas — sem que tivessem a quem recorrer […]. Assim que o decreto se tornar conhecido, as pessoas exultarão de tal forma e ficarão tão gratas ao trono que todas tomarão armas para combater os invasores […]. A terra chinesa estará enfim expurgada de estrangeiros e nosso povo estará livre do sofrimento.24
Cixi não deu conhecimento da petição a ninguém, nem expediu tal decreto.
O caos criado pelos boxers durante o governo de Cixi espantou e afastou muitos de seus antigos colaboradores, em especial o conde Li e o vice-rei Zhang Zhidong, que lhe escreveram para censurá-la: “Se a senhora continuar a proceder dessa forma voluntariosa e só se preocupar em dar vazão a sua fúria, há de arruinar nosso país. Em que abismo maior o mergulhará antes de sentir-se satisfeita?”.25 Observaram que ela não estava fazendo aos boxers favor algum: “Números imensos deles foram mortos, e seus corpos enchem os campos […]. Não se pode deixar de se apiedar deles por serem tão néscios”. Além disso, o norte da China estava agora reduzido a “uma terra desolada”, tanto por causa da seca quanto devido aos boxers: já era tempo de ela prestar alguma atenção à vida das pessoas.
No país inteiro os vice-reis trocavam mensagens telegráficas todos os dias, combinando abertamente que “não obedeceriam de modo algum” a seus decretos.26 Pela primeira vez desde que ela começara a governar, a maioria dos magnatas regionais, cruciais para o vasto império, aparentemente tinha perdido a fé em Cixi. Ela nunca estivera tão privada de amigos. Quando executara o golpe palaciano aos 25 anos de idade, quando arbitrariamente escolhera uma criança de três anos para pôr no trono, quando governara durante décadas sem um mandato, e até mesmo quando fizera do imperador um prisioneiro — em todas essas ocasiões eles sempre a tinham apoiado. Agora, porém, ela estava sozinha.
O isolamento não a assustava. Destemida, Cixi arremetia sem ajuda, apostando que acabaria por descobrir um meio de lidar com os invasores estrangeiros. Contudo, não queria arrastar todo o império e estimulou ativamente os vice-reis a permanecerem fora de seu jogo. Disse-lhes que eles deviam preservar seus territórios e agir de forma “totalmente realista”.27 Foi com o consentimento implícito de Cixi que os mais importantes vice-reis, liderados pelo conde Li e pelo vice-rei Zhang, assinaram um pacto de “neutralidade” com as potências, que assegurou a paz na maior parte da China, principalmente no sul, restringindo a luta à área entre os Fortes Dagu e Beijing. A maioria das províncias foi poupada da violência dos boxers.
Quando os aliados começaram a se aproximar mais de Beijing, Cixi foi obrigada a buscar a paz. Pediu ao conde Li, ainda em Cantão, que fosse à capital para ser seu negociador, oferecendo-lhe como incentivo o cargo que ele desejava: o de vice-rei de Zhili. O conde, que no passado desejara exercer aquele papel, agora relutava. Sabia que a rendição era a única alternativa, mas que a imperatriz-viúva não estava disposta a aceitá-la e alimentava esperanças de melhores condições.28 De fato, ela se preparava para continuar a lutar, mesmo com as potências chegando aos muros de Beijing, e reunia munição e tropas para a defesa da cidade. O conde viajou para o norte, mas fez uma pausa em Shanghai, alegando estar doente. Nesse ínterim, o vice-rei Zhang coletava uma longa lista de assinaturas, entre as quais as de seis dos nove vice-reis do império e as de diversos governadores e generais, pedindo a Cixi que permitisse ao conde negociar com as potências em Shanghai.29 Raramente uma petição fora firmada por tantas figuras regionais poderosas.
Cixi estava convicta de que sem sua supervisão direta o resultado da negociação não seria aceitável, e vetou a proposta. A seguir, disparou um tiro de advertência contra os peticionários, visando em especial o vice-rei Zhang, que os liderava. Em 28 de julho, ela ordenou a execução de dois homens muito ligados a Zhang. Um deles, Yuan Chang, alto funcionário do Ministério do Exterior, era sabidamente os olhos e os ouvidos do vice-rei em Beijing.30 (Zhang comandava uma considerável rede de coleta de informações na capital, o que Cixi se dispunha a tolerar.)31 O outro homem, Xu Jingcheng, fora o ministro da China em Berlim na época em que a Alemanha estava preparando o bote para se apossar de Qingdao.32 Sabe-se hoje, graças à liberação de documentos de arquivos alemães, que ele aconselhou o governo alemão, “insinuando — de forma extremamente secreta, é claro” — que a “ameaça de força militar” era a única forma de fazer Beijing ceder território, e que a Alemanha deveria “simplesmente ocupar um porto que lhe interessasse”. O Kaiser seguiu seu conselho e pôs de lado o plano original, que previa atitudes menos agressivas. Depois o Kaiser disse ao chanceler alemão, o príncipe Hohenlohe, que “é mesmo uma vergonha que precisemos que um ministro chinês diga a nós, alemães burros, como agir na China em nosso próprio interesse”. É bem possível que o ministro Jingcheng tenha sido atormentado por remorsos, pois ele parecia acolher bem a morte no local da execução: “Arrumando o chapéu e o manto com todo o cuidado e a seguir pondo-se de joelhos, voltado para o norte [a direção do trono], pôs a testa no chão e expressou gratidão ao trono. Não havia em seu rosto nenhuma expressão de mágoa ou queixa”.33
Ao que parece, Cixi tomara conhecimento da traição do ministro Jingcheng. O decreto imperial que anunciava as execuções acusou os dois homens de “manter uma agenda privada ao tratar com estrangeiros”.34 Ser vaga quanto a uma acusação que envolvia uma potência estrangeira era bem o estilo de Cixi.
O vice-rei Zhang compreendeu que essas execuções pretendiam ser advertências a ele. De fato, estivera conspirando com potências estrangeiras, principalmente com a Grã-Bretanha e o Japão, que o tinham em alta conta. Zhang era conhecido como um homem probo, que preferia tecidos de algodão grosseiros a belas peles e sedas em seu guarda-roupa, que invariavelmente recusava presentes e não acumulara fortuna pessoal. Quando morreu, sua família não tinha dinheiro suficiente para pagar um enterro adequado a sua posição. Suas paixões eram a natureza e os gatos. Era dono de dúzias desses animais, dos quais cuidava pessoalmente. Os ocidentais que tratavam com ele o consideravam “honestíssimo e dedicado ao bem-estar de seu povo”, “um verdadeiro patriota”. Era um dos poucos diplomatas que os japoneses consideravam incorruptível e que realmente respeitavam. O conde Ito Hirobumi, que fora primeiro-ministro, disse que o vice-rei era “o único homem” capaz de arrostar a monumental tarefa de fazer as reformas na China. E os britânicos o julgavam o homem com quem mais gostavam de tratar.35 Desiludido com Cixi e convencido de que assim que ela fosse expulsa de Beijing seu governo cairia — uma opinião também de vários outros —, o vice-rei cogitava substituí-la. Seu representante em Tóquio, cuja função oficial consistia em supervisionar os estudantes enviados por seu vice-reino, declarou a seu contato japonês que “se o trono foi forçado a deixar Beijing (e provavelmente se instalar em Xian) e o império Qing ficar sem governo”, o vice-rei “estará pronto para se adiantar e formar um governo em Nanjing, junto com dois ou três outros vice-reis”. A mesma mensagem foi passada aos britânicos. A fim de se preparar para essa eventualidade, o vice-rei pediu aos japoneses que lhe dessem oficiais e armas. Cixi podia não conhecer os pormenores exatos dessas maquinações, mas tinha seus espiões — e instintos poderosos.36
Advertindo os vice-reis de que não fizessem negociações clandestinas com as potências estrangeiras, Cixi levou sua guerra até o fim. Depois de uma derrota estratégica que deixou Beijing exposta, seu comandante na frente de batalha se suicidou com um tiro. Para seu lugar, ela nomeou o governador Li Bingheng, o homem que impedira que ela extraísse dinheiro da população para restaurar o Antigo Palácio de Verão — e que fora promovido por isso e depois demitido por pressão dos alemães, pois insistia em resistir à ocupação germânica. Inimigo ferrenho dos invasores, jurou a Cixi que lutaria até seu último suspiro, embora para ele a guerra fosse uma causa perdida. O Exército fora aniquilado por completo, e os soldados “simplesmente debandavam, sem opor nenhuma resistência, bloqueando as estradas, pois eram dezenas de milhares. Por onde passavam, saqueavam e incendiavam as aldeias e as cidades”, informou o governador Bingheng a Cixi, antes de se suicidar.37
No dia de sua morte, 11 de agosto, as esperanças de Cixi por fim se extinguiram. Beijing seria ocupada pelas potências em questão de dias. Outros três altos funcionários foram executados, acusados de traição. Um deles era seu então lorde camareiro, Lishan, de quem ela fora muito próxima. Cixi acreditava que havia “um bom número de traidores” vendendo segredos aos estrangeiros.38 Eunucos se lembravam de ouvi-la resmungar que “deve haver espiões no palácio, pois como é possível que logo se saiba lá fora de toda decisão que tomamos aqui?”.39 Sua suspeita em relação a Lishan pode bem ter tido origem em 1898, quando ele não mediu esforços para evitar uma busca que ela ordenara na casa de Sir Yinhuan — uma busca que talvez revelasse provas da ligação de Yinhuan com os japoneses.40 No entanto, as execuções tinham mais a ver com o momento presente: Cixi queria evitar que altos funcionários colaborassem com os aliados, que estavam na iminência de entrar em Beijing.
Por fim, os pensamentos de Cixi se voltaram para a fuga. Informando-se sobre meios de transporte, soube que duzentas carruagens com seus cavalos tinham estado de sobreaviso, mas que tropas em retirada tinham se apoderado delas, e que agora era impossível comprar ou alugar outras, já que todo mundo estava fugindo.41 O fato de Cixi não ter essas duzentas tábuas de salvação bem protegidas mostra que a fuga estivera muito distante de sua mente. Diante da notícia sobre a perda dos meios de transporte, ela suspirou: “Então, vamos ficar”. Ao que parece, estava disposta a morrer ali mesmo, na Cidade Proibida. No entanto, na undécima hora, mudou de ideia. No dia 15 de agosto, de manhãzinha, quando os aliados já batiam às portas da Cidade Proibida, diante da insistência de um príncipe, Cixi partiu numa carroça que ele trouxera de casa.42
Como só havia umas poucas carroças, a maior parte da corte tinha de ficar. Cixi levou consigo o imperador Guangxu, a imperatriz Longyu, o herdeiro presuntivo, mais ou menos uma dúzia de príncipes, princesas e nobres, e a concubina do imperador, Jade. A outra concubina, Pérola, que estivera em regime de prisão domiciliar durante os dois últimos anos, representava um problema para Cixi. Devido à dificuldade de transporte, Cixi não queria abrir espaço para ela, tampouco lhe agradava deixar para trás a concubina favorita e cúmplice do imperador Guangxu. Decidiu usar sua prerrogativa e ordenou a Pérola que se suicidasse. Pérola não quis obedecer e, ajoelhando-se diante de Cixi, suplicou em lágrimas que lhe poupasse a vida. Cixi tinha pressa e disse aos eunucos que a atirassem num poço. Como ninguém se adiantasse para fazê-lo, ela, colérica, gritou para um eunuco jovem e forte, Cui, que cumprisse sua ordem. Cui arrastou Pérola para a beira do poço e a jogou dentro dele, enquanto a moça em vão gritava por socorro.43
* Depois de se hospedar no Bairro das Legações, Katharine Carl escreveu: “Quando vi a posição do Bairro das Legações e, sobretudo, o da legação britânica, onde todos os estrangeiros por fim se reuniram […] me convenci de que se não houvesse alguma força impeditiva em suas próprias fileiras, os chineses teriam acabado com os estrangeiros em menos de uma semana. A má pontaria deles poderia ter adiado, por breve tempo, o resultado inevitável para as legações. Na ausência de alguma força que atuava como um estorvo para os chineses, não haveria sobrado um só europeu para contar a história. E essa força restringente, eu confiava, vinha de ninguém menos que o imperador e a imperatriz-viúva”.16