3
O Desdém da Fortuna
PERUGGIO DEGUSTAVA UM cálice de licor de butiá na varanda de casa quando o estrondo dos trovões e o grito dos bugios que visitavam a mata ciliar do riacho que extremava a propriedade — meio urbana, meio rural — anunciaram tempestade forte.
Havia duas horas que construía castelos no ar em sua cadeira de balanço. Quantos quilos de ouro haveria lá? O que poderia comprar com o dinheiro? Delirava com a fama da descoberta, mas temia a humilhação, a chacota, o fracasso. Atormentava-se, sobretudo, com as lendas de maldição; e gritava internamente, debatia-se, justificava-se. Eram bobagens! Melhor não dar ouvidos! Algo o impelia a prosseguir, uma voz profunda, juvenil, a voz do garoto que tanto amara aqueles livros de aventura, do Conrad, do Verne… e lhe dizia não poder chegar ao fim da vida sem arriscar pelo menos uma busca ao tesouro do Chico Pialo. Pensando bem, uma possibilidade interessante não se apresentava?
Essas reflexões tão audaciosas foram subitamente interrompidas pela empregada que apareceu aos berros, alardeando a chegada de uma caixa “muito estranha” remetida de São Paulo. João Peruggio já sabia o que era, e saltou sobre o embrulho. Abriu-o. Neste preciso momento, lá fora, começou a chover.
***
Um mês já se havia passado desde a morte de Hans. Nesse meio-tempo, enquanto esperava a chegada do detector de metais, realizara acordos discretos com os proprietários da região. Ficara acertado com todos: reteria trinta por cento das eventuais descobertas. Muito pouco, mas era algo, fazer o quê…
Foi num domingo ensolarado de dezembro que a aventura começou. Era cedo pela manhã. Galos se hostilizavam em algum lugar, emitindo trinares confusos; na rua, passos estalavam no calçamento. O café reforçado, revirado de feijão com torresmo e pão fresco, foi tomado às pressas. Depois de carregarem o jipe, Peruggio e Geovane seguiram pelo trajeto de chão batido. Contemplaram roças de milho e casinhas de madeira. Rebanhos de charolês pastavam à margem da estrada. Dirigindo com o rosto ao vento, o frescor da manhã e o perfume da mata úmida enchiam-nos de fome de campo. Depois de um tempo, vencido o mau humor matinal do jovem, pai e filho riam alto, narrando causos, falando do passado e rememorando as mentiras que contaram aos parentes para ocultar a empreitada. Quando enfim chegaram à Fazenda da Macieira, a fronteira sul das antigas terras de Chico Pialo, deram com um senhor idoso fumando palheiro, apoiado na enxada. O homem retirou o chapéu para cumprimentá-los antes de abrir a porteira. Em seus olhos lia-se desaprovação e suspeita.
O par de mulas aguardava por eles no galpão. O local cheirava a madeira de lei e esterco. Nas paredes de tábuas frestadas pendia toda sorte de relhos, arreios e pelegos lanudos. Um capataz, gaúcho arquetípico metido em bombachas sujas e alpargatas puídas, afiava a sua lâmina numa chaira de cabo de osso, emitindo um chio estrídulo que sibilava desvairadamente. Ao seu lado havia outro homem, igualmente gordo, afundado em uma papada barbuda. Vestia uma camiseta velha, exibindo a estampa de um candidato a prefeito. Trazia um ar ingênuo e ao mesmo tempo simpático e gozador. A poucos passos, dois cordeiros suffolk , gordos e impassíveis, mantinham-se na baia menor. Cachorros rodeavam a porteira, espertamente, antecipando o arremesso das vísceras. O dono daquele pedaço de mundo, Martinho Silva de Soares, observava os Peruggios arrumarem suas tralhas, chamando-os de loucos varridos:
— Mas já faz meio século que procuram este maldito tesouro nas minhas terras e nas fazendas vizinhas. Se tinha alguma coisa, já levaram faz tempo…
— É o que eu falo para ele, seu Martinho… — assentiu Geovane, com uma careta de escárnio e um levantar dos ombros.
— Vá lá, vá lá… Se encontrarem umas moedas, me paguem o quinhão. Senão mando chumbiá vocês — ria-se o fazendeiro, com a boca reluzente de dentes de ouro.
Naquele momento o capataz, Lucão da Laguna, aproximou-se do primeiro cordeiro, que já estava suspenso por uma corda. Recebera apenas os rudimentos da fé, mas vinha com ares de sacerdote levita: passos lentos e solenes, coluna ereta, avental impoluto. Ao seu redor fez-se um silêncio reverente. Cravou enfim o cutelo na garganta do bicho, rasgando-a por inteiro: um jato renhido tingiu a poeira do chão, formando bolotas. Não se ouviu um balido sequer. O animal morreu placidamente, sem convulsões, manifestando apenas um tênue espasmo nas patas traseiras amarradas. “Agnus Dei ”, refletiu o fazendeiro, passando a mão por sobre o lugar da antiga tonsura. Os olhos dos homens brilharam com a cena, com um plus de rejuvenescimento. Um dos cães uivou, o alfa, raspando as patinhas traseiras na grama. Cinco minutos depois, Laguna iniciou a esfola: separou o pelego da carcaça, cortando os tecidos; depois, largou da faca e abriu espaço com as mãos, num movimento à semelhança de um braço entre lençóis. O outro capataz, no lado do dorso do animal, mantinha a lã estendida, puxando-a para baixo. A carne não poderia encostar no pelego, jamais! A essa altura os cachorros já corriam rasgando as tripas estendidas pela grama. O perro mestre ganhou o rim; o coração e o fígado os capatazes salgaram grosseiramente para fritarem em um disco de arado.
Após aquele espetáculo gastronômico, os Peruggios terminaram de carregar as suas malas de garupa e ganharam o ermo. No momento em que partiam, um bando de chupins revoou sobre o galpão, para estranheza dos peões, que arranharam um sinal da cruz.
As mulas pareciam ser bons animais, resolutas e disciplinadas, mas a marcha era pausada. Cupinzeiros e pedras dificultavam o avanço, impondo um enervante ziguezague. Em um ponto de coxilhas aveludadas, os animais se viram tragados pelo capim-gordura, que lhes roçava as soldras.
O detector de metais, envolto em lona de carga, estava posto de atravessado na sela da mula de João. A cada solavanco mais forte, fruto do terreno acidentado, o relojeiro voltava o rosto para conferir o aparelho, atitude que fazia o filho rir silenciosamente. “Sonhador, mas que vecchio sonhador! Quanto teria gastado na misteriosa geringonça?”, indagava-se.
Nossos heróis percorreram mais de cinco quilômetros de pradaria naquele dia, varrendo metros e mais metros de taipa com o detector de metais. Perscrutaram cada pedacinho dos antigos muros que serpenteavam a terra. Aquelas paredes rústicas, incrustadas de líquens, dividiam o terreno em piquetes e em invernadas, e haviam sido erguidas há tempos, antes do uso comum do arame farpado. A cada bipe do aparelhinho, renovavam a esperança; mas tiveram de se contentar com panelas velhas, pregos e ferramentas.
Cansaram-se dos muros, e no dia seguinte resolveram investigar a caverna da Cachoeira da Espada, só por desencargo de consciência, pois o local era mais conhecido que parteira de campanha. A gruta era ampla, quatro metros de elevação, vinte de largura, cinqüenta de profundidade. Andorinhões faziam ninhos lá dentro, atravessando o véu de água para depois eclodir em vôos rasantes sobre a lâmina do poção. Morcegos voejavam freneticamente, e estalactites gotejavam seus pingos eternos. Pai e filho toparam com os restos de uma fogueira e com latas de cerveja furadas. “Tiros de revólver”, pensaram. Examinaram o salão em pouco mais de meia-hora. Não havia nada. Para que insistir? Mas continuaram. Saindo da caverna, avistaram um poço seco perdido no meio do campo, ao lado de um rancho em ruínas, há quase um século queimado pelos botocudos.
— Eu vou descer!
— Não, pai, tá louco?!
— É seguro, baixinho, as paredes son de pedra também. Viu só o teu medo? Por isso que o lugar é perfeito para esconder alguma coisa. Isso aqui tá com cara de estar seco faz tempo.
— Ai, ai, ai, que barato! Deixa que eu vou, deixa que eu vou.
Geovane desceu os três metros pendurado só de cueca em uma corda. Embaixo, acendeu uma vela. Não demorou a perceber que havia pelo menos meio palmo de água no fundo do reservatório.
— Tem água aqui, pai! Te disse que não era só barro.
Um balde caiu ao lado dos pés do jovem.
— Não acredito que vamos ficar a manhã aqui tirando água barrenta deste maldito buraco.
— É pouca coisa, preguiçoso, chuto que non dá nem três baldes.
Foram dez.
Enfim, uma grande pedra apareceu em meio à lama. Parecia ser o fundo. Contrafeito, Geovane esquadrinhou o piso com o aparelho. Foi grande a sua surpresa quando o dispositivo gritou, bipando repetidamente, cada vez mais alto.
— Tem algo aqui, pai, tem algo aqui! — exclamou, sua voz ecoando desde o fundo da greta. (Ou ao menos tinha de ter, tinha de ter….)
O rapaz começou a revirar o fundo febrilmente, feito um cão que busca ossos. Farejava um cheiro de podre no ar, uma emanação putrefata. Que odor seria aquele? Continuou na sua escavação, sem querer acreditar. Que barro medonho! Lama dos infernos, é cheiro de merda! Então amaldiçoou tudo em sua mente — a vida, o destino, a sorte, a expedição. Veio um novo contratempo. Deu um berro:
— Aaaaai! Graveto do diabo!
Levantou o dedo espetado. Não tinha sido nada, um simples arranhão, mas aquilo o deixara mais nervoso. O rapaz sentiu uma pontada aguda no diafragma, seu ventre queimava por dentro como se tivesse fogo. E se todas aquelas pedras despencassem sobre a sua cabeça? Ainda se remoía em seus pensamentos quando viu algo que aumentou o seu terror. O que seria aquilo? Aquela mancha escura, imóvel, pegada na parede? Seria uma aranha? Assustado, apanhou uma mão-cheia de barro e atirou nas pedras, mirando o aracnídeo. A lama escorreu, lentamente, revelando uma simples rachadura.
O barro mole e gelado se acumulava no meio das suas pernas. As costas doíam. Não enxergava nada, estava ficando louco, não podia continuar lá dentro!
Repentinamente, tateou um objeto firme, gelado.
— Achei algo! — gritou para o pai.
— O quê? O quê?
— Não sei ainda! Espera!
Geovane tinha o braço direito atolado até o cotovelo. Depois de revolver a lama por mais meio minuto, finalmente conseguiu retirar do fundo duas peças de metal de idêntica forma e tamanho. Não podia ser! Não podia ser! A desilusão envolveu a cisterna. Freios de cavalo? Esmurrava o chão molhado. O barro respingou dentro da boca, fazendo com que praguejasse.
— São de prata, filho, valeu a pena! Estamos melhorando! — ria o pai, enquanto içava o garoto de volta.
Geovane se limpou como podia, valendo-se de um pedaço de estopa. Seus olhos fulminavam os de João.
Naquele dia houve apenas mais uma descoberta: uma peça de dez mil réis encontrada no oco de um bugreiro próximo à cisterna. E foi só. Nos dias seguintes, nada mais restou achado naqueles campos de Martinho Oliveira.