Capítulo 5

firula.png

Fiquei tão abalada que demorei para conseguir ir embora. Por fim, depois de deixar que os funcionários do café usassem em mim metade de seu estojo de primeiros socorros, garanti que podia ir sozinha para casa e voltei mancando, as pernas parecendo de borracha. Mamie saía pela porta da frente quando cheguei.

— Ah, minha querida Katya! — gritou ela depois que contei o acontecido e, deixando cair ao chão sua amada bolsa Hermès, me envolveu nos braços. Então, juntando nossas coisas, me levou para dentro de casa, onde me colocou na cama e insistiu em me tratar como se eu estivesse tetraplégica, apesar dos meus inúteis protestos.

— Katya, tem certeza de que está confortável? Posso trazer mais travesseiros, se quiser.

— Mamie, estou bem, sério.

— Seu joelho ainda está doendo? Posso colocar alguma outra coisa nele. Talvez precise ficar mais alto...

— Mamie, o pessoal do café passou um milhão de coisas do estojo de primeiros socorros. Só está esfolado, juro.

— Ah, minha criança querida. E pensar o que podia ter acontecido... — ela aconchegou minha cabeça a seu peito e afagou meu cabelo até que alguma coisa dentro de mim se partiu e comecei a chorar.

Mamie me consolou e me abraçou enquanto eu reclamava.

— Só estou chorando porque estou nervosa — protestei entre lágrimas, mas a verdade era que ela estava me tratando direitinho como minha mãe teria feito.

Quando Georgia chegou em casa, ouvi Mamie contando-lhe de como eu “quase tinha morrido”. A porta do quarto se abriu um instante depois, e minha irmã entrou correndo, branca como um fantasma. Ela se sentou, em silêncio, na beirada de minha cama, me olhando com olhos arregalados.

— Tudo bem, Georgia, só me arranhei um pouco.

— Ah, meu Deus, Katie-Bean, se alguma coisa tivesse lhe acontecido... Você é tudo que me resta. Lembre-se disso.

— Estou bem. E não vai me acontecer nada ruim. Daqui em diante vou ficar longe de edifícios que desmoronam. Prometo.

Ela forçou um sorriso e estendeu a mão para tocar a minha, mas o olhar assustado continuou lá.

No dia seguinte, Mamie se recusou a me deixar sair de casa, insistindo que eu devia descansar e me “recuperar de meus ferimentos”. Obedeci, para fazer-lhe a vontade, e passei metade da tarde lendo na banheira. Depois de me entregar à água quente e a um livro, meus nervos me dominaram, e fiquei lá sentada, tremendo como uma folha.

Eu não tinha percebido como ficara aterrorizada com o desabamento da fachada, e precisei encher várias vezes a banheira com água bem quente, até conseguir me acalmar. No fim, adormeci com as finas plumas de vapor da água que me envolvia.

Quando passei pelo café, na manhã seguinte, ele estava fechado, e a calçada diante do edifício estava cercada com a fita de plástico amarelo da polícia. Homens com macacões azul-elétrico erguiam andaimes para que os pedreiros viessem estabilizar a fachada. Eu precisava achar outro lugar para minha leitura ao ar livre. Senti uma ponta de decepção ao me dar conta de que aquele era o único lugar onde eu tinha uma chance de ver minha recente obsessão. Quem podia saber quanto tempo ia levar para que eu tropeçasse em Vincent de novo?

 

Minha mãe começou a me levar a museus quando eu era bem pequena. Sempre que vínhamos para Paris, ela, Mamie e eu saíamos de manhã para “uma degustação de beleza”, como dizia mamãe. Georgia, que se entediava já na primeira pintura, em geral preferia ir com papai e nosso avô para algum café, onde os dois papeavam com amigos, colegas de trabalho e quem mais aparecesse. Mas nós três vasculhávamos juntas os museus e galerias de Paris.

Assim, não me surpreendi com a vaga desculpa de Georgia quanto a “outros planos” quando a convidei para ir a algum museu comigo, uns dias depois.

— Georgia, você vive reclamando que a gente nunca faz nada juntas. Este é um convite legal!

— É, tão legal quanto um convite para uma corrida de monster truck. Me convide de novo quando você estiver a fim de fazer algo interessante de verdade. — Para mostrar sua boa vontade, ela apertou de leve meu braço antes de fechar a porta do quarto na minha cara. Touché.

Saí sozinha para Le Marais, um bairro do lado oposto do rio em relação à casa de meus avós. Percorrendo um caminho tortuoso por suas vielas medievais, por fim cheguei a meu destino: o edifício parecido com um palácio e que alojava o Museu Picasso.

Fora o universo alternativo oferecido por um livro, o espaço silencioso de um museu era meu lugar favorito. Mamãe dizia que no fundo eu era uma escapista, que eu preferia mundos imaginários ao verdadeiro. É verdade que para mim sempre foi fácil me libertar deste mundo e mergulhar em outros. E eu me sentia pronta para uma relaxante sessão de hipnose artística.

Ao cruzar as portas gigantescas do Museu Picasso, penetrando em suas assépticas salas brancas, senti meu coração desacelerar. Deixei que a calidez e a paz do lugar me cobrissem como um cobertor suave. E, como de hábito, vagueei até encontrar o primeiro quadro que me chamasse a atenção, sentando-me em um banco diante dele.

Deixei que as cores se impregnassem em minha pele. As silhuetas convolutas, retorcidas, me faziam pensar em como me sentia por dentro; minha respiração se acalmou e comecei a viajar. As outras pinturas da sala, o vigia parado ao lado da porta, o cheiro de tinta fresca ao meu redor, até os turistas que passavam, tudo se desfez em um pano de fundo cinzento ao redor daquele quadrado de cor e luz.

Não sei quanto tempo fiquei ali sentada antes que minha mente retornasse aos poucos de seu transe autoimposto, e ouvi vozes baixas atrás de mim.

— Vem aqui. Olha essas cores.

Uma longa pausa.

— Que cores?

— Exato. É como lhe falei. Em apenas quatro anos ele vai da paleta viva e ousada de algo como Les Demoiselles d’Avignon até o cinza e marrom monótono deste quebra-cabeças anguloso. Que exibido! Pablo sempre tinha que ser o melhor em tudo que fazia, e, como eu dizia a Gaspard outro dia, o que me incomoda de verdade é...

Eu me virei, curiosa para ver a origem daquele manancial de conhecimentos, e gelei. Parado a uns cinco metros de mim estava o rapaz de cabelos encaracolados amigo de Vincent.

Agora que eu o via de frente, percebia o quanto era atraente. Havia algo rústico nele — o cabelo despenteado e malcuidado, a barba por fazer, e as mãos largas e ásperas que gesticulavam apaixonadas em direção ao quadro. Pelas roupas sujas de tinta, imaginei que talvez fosse um artista.

Tudo isso me ocorreu em uma fração de segundo. Porque, no fim das contas, eu só tinha olhos para a pessoa que estava ao lado dele. O sujeito de cabelos pretos. O sujeito que fixara residência permanente nos cantos escuros de minha mente desde o primeiro momento em que o vi. Vincent.

Por que você tinha que se apaixonar pelo cara mais improvável e mais inacessível de Paris? Ele era atraente demais — e distante demais — para sequer me notar de verdade. Afastei o olhar, me debrucei para frente e apoiei a testa nas mãos. Não adiantou nada. A imagem de Vincent estava gravada a fogo no meu pensamento.

Percebi que o que quer que o fizesse parecer um tanto frio, quase perigoso, na verdade aumentava meu interesse em vez de me assustar. O que havia de errado comigo? Eu nunca tinha me interessado por bad boys antes — essa era a especialidade de Georgia! Meu estômago se contraiu quando me perguntei se teria coragem de me levantar e falar com ele.

Mas não tive a chance de pôr isso à prova. Quando ergui a cabeça, eles tinham ido embora. Fui depressa até a entrada da sala ao lado e olhei lá dentro. Estava vazia. E então quase dei um pulo quando uma voz grave soou atrás de mim.

— Oi, Kate.

Vincent estava a meu lado, muito mais alto que eu, seu rosto bem uns quinze centímetros acima do meu. Levei a mão ao peito, alarmada.

— Valeu pelo ataque do coração! — exclamei.

— Quer dizer que é um hábito seu deixar a sacola para trás para puxar uma conversa? — Ele riu e, com a cabeça, indicou o banco onde eu estivera sentada. Debaixo dele estava minha sacola com o livro. — Não é mais fácil ir até o cara e dizer oi?

O leve traço de zombaria em sua voz evaporou meu nervosismo. Ele foi substituído por uma indignação viva, que surpreendeu a nós dois.

— Perfeito! Oi — rosnei, minha garganta apertada de fúria. Marchando até o banco, peguei a sacola e saí da sala pisando duro.

— Espera — exclamou ele, correndo atrás de mim e ajustando seus passos aos meus. — Não foi o que eu quis dizer. O que eu queria...

Detive-me e olhei para ele, esperando.

— Desculpa — disse ele, soltando o ar dos pulmões. — Nunca fui famoso por minha conversa brilhante.

— Então por que você insiste em tentar? — provoquei.

— Porque... Você é, sei lá, divertida.

— Divertida? — pronunciei cada sílaba lentamente e lancei meu olhar de Você é um maluco total. Meus punhos cerrados pousaram em meus quadris. — Então, Vincent, você veio falar comigo só para me ofender ou tem algo mais que queira?

Vincent pôs a palma da mão na testa.

— Olhe, me desculpa. Sou um idiota. Podemos... podemos começar tudo de novo, do zero?

— Começar o quê do zero? — perguntei, sem entender bem.

Ele hesitou por um segundo e então estendeu a mão.

— Oi, meu nome é Vincent.

Meus olhos se estreitaram enquanto eu avaliava a sinceridade dele. Aceitei a sua mão, apertando-a com um pouco mais de aspereza do que pretendia.

— Kate.

— Prazer em conhecê-la, Kate — respondeu Vincent, compenetrado. Houve um silêncio de quatro segundos, durante o qual continuei a encará-lo. — Então, você vem sempre aqui? — murmurou ele, inseguro.

Não consegui me controlar e comecei a rir. Ele sorriu, obviamente aliviado.

— Hã, na verdade sim. Eu me amarro em museus, não só por Picasso.

— Se “amarra”?

O inglês de Vincent era tão bom que ficava fácil esquecer que não era sua primeira língua.

— Quer dizer que eu gosto de museus. Muito — expliquei.

— Ah, entendi. Você gosta de museus mas não de Picasso em particular. Então... você só vem aqui quando quer meditar?

Eu sorri para ele, mentalmente dando-lhe pontos por tentar com tanto empenho.

— Cadê seu amigo? — indaguei.

— Foi embora. Jules não gosta muito de conhecer gente nova.

— Simpático.

— Então, você é inglesa? Americana? — ele disse, mudando de assunto.

— Americana — respondi.

— E a garota que tenho visto com você pelas redondezas seria sua...

— Irmã — completei, devagar. — Você tem me espionado?

— Duas garotas bonitas se mudam para as redondezas... O que eu devia fazer?

Uma onda de felicidade percorreu meu corpo ao ouvir isso. Então ele achava que eu era bonita. Mas ele também achava que Georgia era bonita, observei para mim mesma. A onda desapareceu.

— Olhe, o museu tem uma máquina de espresso. Quer um café enquanto você me diz em que outras coisas você se “amarra”? — Ele tocou meu braço. A onda estava oficialmente de volta.

 

Sentamos em uma mesa minúscula, diante de dois cappuccinos fumegantes.

— Bom, agora que já revelei meu nome e nacionalidade para um completo desconhecido, que mais você quer saber? — perguntei, mexendo o café para dissolver a espuma.

— Ah, não sei... número do calçado, filme favorito, conquistas esportivas, momento mais constrangedor, pode ir dizendo.

Dei uma risada.

— Hã, calçado número trinta e oito, Bonequinha de luxo, absolutamente nenhuma habilidade esportiva, e momentos constrangedores demais para enumerar antes que o museu feche.

— Só isso? Isso é tudo que eu consigo? — provocou ele.

Senti minhas defesas se desfazerem diante desse surpreendente lado charmoso e decididamente não perigoso de Vincent. Com ele me encorajando, contei sobre minha antiga vida no Brooklyn, com Georgia e meus pais. Sobre nossos verões em Paris, os amigos com os quais eu já não tinha contato. Sobre meu amor ilimitado pela arte e meu desespero ao descobrir que não tinha nenhum talento para criá-la.

Ele quis saber mais, e fui completando as lacunas para ele, sobre bandas, comida, filmes, livros e tudo o mais. E, ao contrário dos rapazes da minha idade que eu conhecera no Brooklyn, ele parecia mesmo interessado em cada detalhe.

O que não contei foi que meus pais estavam mortos. Falei deles no presente e disse que minha irmã e eu tínhamos nos mudado para a casa de nossos avós para estudar na França. Não era totalmente mentira. Mas eu não estava a fim de contar toda a verdade. Não queria que ele sentisse pena. Queria parecer qualquer outra garota normal que não tinha passado os últimos sete meses se isolando em um mundo interior de sofrimento.

Sua saraivada rápida de perguntas tornava impossível que eu perguntasse de volta qualquer coisa. Assim, quando finalmente fomos embora, eu o censurei por isso.

— Muito bem, agora me sinto completamente exposta. Você sabe tudo sobre mim e não sei nada sobre você.

— Ahá, isso é parte de meu plano nefasto — ele sorriu, enquanto o vigia do museu trancava as portas depois de sairmos. — Como eu ia ter esperança de você aceitar um novo encontro se abrisse o jogo logo de cara, na primeira vez que a gente se fala?

— Essa não foi a primeira vez que nos falamos — eu o corrigi, tentando friamente ignorar o fato de que ele parecia estar me convidando para sair.

— Tudo bem, da primeira vez que nos falamos sem eu insultar você sem querer — ele consertou.

Caminhamos através dos jardins do museu rumo aos espelhos d’água, onde crianças barulhentas celebravam o sol e o calor que ainda fazia às seis da tarde, correndo na água de um lado a outro, eufóricas.

Vincent andava um pouco curvado para diante, com as mãos no bolso. Pela primeira vez senti nele uma ponta de vulnerabilidade. Tirei proveito disso.

— Não sei nem sua idade.

— Dezenove — ele respondeu.

— O que você faz?

— Estudante.

— Sério? Mas seu amigo disse algo sobre vocês serem da polícia — não consegui evitar uma ponta de sarcasmo na voz.

— O quê? — exclamou ele, detendo-se.

— Minha irmã e eu vimos você salvando aquela menina.

Vincent me olhava com expressão vazia.

— A menina que pulou da ponte Carrousel durante aquela briga de gangues. Seu amigo nos levou para longe e disse que era uma operação policial.

— Ele disse isso? — murmurou Vincent, seu rosto assumindo a mesma expressão dura de quando o vi pela primeira vez.

Ele enfiou as mãos de novo nos bolsos e continuou andando. Estávamos chegando perto da estação do metrô. Diminuí o passo para ganhar tempo.

— E aí, o que vocês são, policiais disfarçados? — Eu não acreditava nem um pouco nisso, mas tentei parecer sincera. Sua mudança súbita de humor me intrigava.

— Algo do gênero.

— O quê, uma espécie de equipe da SWAT?

Ele não respondeu.

— Aquilo foi mesmo muito corajoso — insisti. — Mergulhar no rio. Mas o que aquela garota tinha a ver com a briga de gangues debaixo da ponte? — perguntei, indo mais a fundo.

— Hã, eu não posso falar sobre isso — disse Vincent, examinando o concreto alguns centímetros à frente de seus pés.

— Ah, ok. Claro — falei com naturalidade. — Você parece mesmo novo demais para ser policial.

Não pude evitar que um sorriso divertido se espalhasse por meus lábios.

— Eu falei... sou estudante — ele disse, com um sorriso inseguro. Dava para ele perceber que eu não acreditava.

— Legal. Eu não vi nada. Não ouvi nada — afirmei, dramática.

Vincent riu, e seu bom humor retornou.

— Então... Kate, o que você vai fazer neste fim de semana?

— Hã... Não planejei nada — respondi, maldizendo em silêncio meu rosto vermelho.

— Quer fazer alguma coisa? — perguntou ele, com um sorriso tão charmoso que meu coração se esqueceu de bater.

Fiz que sim com a cabeça, pois não conseguia falar.

Interpretando meu silêncio como hesitação, ele se apressou em acrescentar:

— Não seria um encontro formal, nem nada assim. Só fazer algo juntos. Podemos... dar uma volta. Caminhar pelo Marais.

Assenti mais uma vez e então consegui dizer algo.

— Seria ótimo.

— Legal, que tal sábado à tarde? Durante o dia. Em público. Algo perfeitamente seguro de fazer com um sujeito que você mal conhece. — Ele ergueu as mãos como se demonstrasse que não estava escondendo nada.

Dei uma risada.

— Não se preocupe. Mesmo que você seja de uma equipe da SWAT, não tenho medo de você.

Assim que falei isso, percebi que eu tinha medo. Só um pouquinho. Fiquei pensando, uma vez mais, qual a atração que ele exercia sobre mim. Talvez a morte de meus pais tivesse me privado do sentido da autopreservação, e era a possibilidade do perigo o que me atraía. Ou quem sabe a vaga aura de distanciamento intocável que emanava dele. Talvez ele representasse um desafio para mim. Qualquer que fosse o motivo, funcionava. Eu gostava de verdade desse cara. E queria vê-lo de novo. De noite, de dia, não importava. Eu estaria lá.

Ele ergueu uma sobrancelha e deu uma risadinha.

— Você não tem medo de mim. Que... engraçado.

Não consegui evitar e também ri.

— Jules deve estar me esperando — disse ele, acenando com a cabeça para a outra direção do bulevar. — Vejo você no sábado. Do lado de fora da estação do metrô da rua du Bac, às três?

— Sábado às três — confirmei, e ele se virou e foi embora.

Acho que não seria muito exagero dizer que meus pés não tocaram no chão durante todo o caminho de volta para casa.