Capítulo 19
Naquela noite, Georgia me cercou no meu quarto depois do jantar.
— Você desapareceu depois da aula. Para onde foi? Fiquei esperando por você.
— Vincent foi me buscar e me levou ao Les Deux Magots.
Georgia arregalou os olhos.
— Vocês se encontraram dois dias seguidos?
— Bom, hoje não conta de verdade, foram só quinze minutos. Eu estava com pressa, porque tenho que estudar para a prova de amanhã.
— Não interessa que foram só quinze minutos. Caramba, a coisa tá ficando séria. — Ela se acomodou nos pés de minha cama. — Aí. Me conta sobre esse misterioso ex-criminoso.
— Bom — comecei, tentando encontrar coisas que pudessem ser ditas. — Ele está estudando.
— Onde?
— Hã, sabe que não sei?
Ela me olhou, meio na dúvida.
— E o que ele estuda?
— É... literatura? Acho — arrisquei.
— Você também não sabe o que ele está estudando? Bom, mas sobre o que é que vocês dois conversam?
— Ah, outras coisas. Sabe, arte, música. — Desmortos. Imortalidade. Zumbis do mal. Sem chance de eu contar a Georgia qualquer coisa sobre ele.
Georgia me olhou duro por um instante e então disse, irritada:
— Tudo bem. Se você não quer me falar sobre ele, beleza. Você também não sabe muito sobre a minha vida, mas não é por falta de eu tentar incluir você. Só parei de convidar porque sei que você vai dizer não.
— Ok, Georgia. Com quem você está saindo?
Minha irmã sacudiu a cabeça.
— Não vou dar informação se você também não der.
Peguei na mão dela e supliquei:
— Georgia, não estou tentando excluir você da minha vida de propósito. Você sabe como tenho sofrido com... bom, com tudo. Mas estou conseguindo finalmente me reerguer, e prometo me esforçar mais.
— Então você vai sair comigo neste fim de semana?
Demorei um instante para responder.
— Sim.
— Com Vincent?
— Hum...
Minha irmã me lançou um olhar que dizia: Viu?.
— Tá bom, tá bom. Vamos sair com Vincent. Mas não vamos a nenhuma balada, Georgia, por favor.
O mau humor de Georgia se dissolveu no ato, e ela começou a pular de alegria em minha cama.
— Sem balada. Legal. Que tal um restaurante?
— Ótimo. Vou ver se ele pode. — Ou melhor, vou ver se ele está vivo.
— Liga para ele agora.
— Um pouco de privacidade, por favor?
— Tudo bem — concordou ela, me dando um beijo na testa. Ela foi até a porta e se virou. — Valeu, mana. Sério. É bom ter você de volta.
As luzes da rua começavam a se acender quando fomos para a estação de metrô. Vincent e Ambrose estavam apoiados à banca de jornal, conversando, e se aprumaram ao nos ver. Meu coração virou uma massa derretida quando Vincent veio até mim e me beijou no rosto. Então, virando-se para Georgia, abriu seu sorriso mais charmoso.
— E você deve ser a guardiã legal de Kate... quer dizer, a irmã de Kate. Georgia, não é?
Georgia riu e exclamou, fazendo charme.
— Olha só isso! Com certeza Katie sabe escolher os caras.
Dava a impressão de que ela podia ficar ali a noite toda, olhando nos olhos dele.
— Georgia! — ralhei, sacudindo a cabeça.
Georgia, me ignorando, olhou por cima do ombro de Vincent para Ambrose e lhe deu uma piscadinha matreira.
— Fique fria, Katie-Bean. Parece que Vincent trouxe alguém para me distrair. E você é...
— Ambrose. Encantado em conhecer a adorável irmã de Kate — ele se apresentou em francês, me lançando uma olhada de esguelha. Eu entendi. Se ela soubesse que ele era americano, começaria a fazer perguntas. Talvez perguntas demais, se bem que eu tinha certeza de que ele estava acostumado a inventar histórias. — Então, senhoritas, aonde vão nos levar?
— Pensei em irmos a um restaurantezinho que conheço no 14o Arrondissement — respondeu Georgia.
Vincent e Ambrose se entreolharam, justo quando o telefone dela tocou.
— Desculpe — ela disse, e se virou para atender à ligação.
— Não é nossa vizinhança favorita — disse Ambrose em voz baixa.
— Por quê? — perguntei.
— É meio que o território deles. Sabe, aquelas pessoas de quem lhe falei. O time adversário — explicou Vincent, erguendo os olhos para ter certeza de que Georgia não ouvia.
— O que podem eles fazer conosco ao ar livre, numa vizinhança movimentada, e junto com duas humanas? — perguntou Ambrose. Ele olhou fixo o espaço por um segundo e então se virou para mim. — Jules me pediu para lhe dizer “Oi, gata”.
— Ei, calma aí — alertou Vincent.
— Ele disse “E o que você pode fazer?” — devolveu Ambrose, cutucando Vincent.
— Jules está volant... aqui? Neste momento? — me espantei.
— Sim — confirmou Vincent. — Não estamos tratando de assuntos oficiais hoje, é claro, mas ele insistiu em vir junto. Disse que não queria perder a diversão.
— Posso falar com ele? — perguntei.
— No estado volant só podemos ser ouvidos por outros revenants, não por humanos. Jules pode ouvir o que você diz em voz alta, mas só pode responder por meio de mim ou de Ambrose. Mas você precisa ter cuidado.
Ele apontou para Georgia, que estava desligando o celular.
— Que pena — disse ela. — Convidei uns amigos para ir com a gente, mas eles não podem vir.
— Vamos, então? — perguntou Ambrose, oferecendo o braço com formalidade, para que Georgia o tomasse. Ela riu, deliciada, passando o braço pelo dele, e ambos desceram as escadas.
Assim que estavam fora de alcance auditivo, eu disse:
— Oi, Jules!
Vincent riu.
— Parece que tem alguém meio apaixonado por aqui.
— O que você quer dizer? — perguntei.
— Jules quer que eu lhe diga que é uma pena que você tenha se interessado por alguém chato como eu. Ele adoraria poder trocar de lugar comigo e mostrar como um homem mais velho trata bem uma dama. — Ele falou para o ar: — É, ok, parceiro. Você é mais velho do que eu, quanto, vinte e sete anos? Bom, no momento estamos os dois com dezenove, por isso deixa quieto.
Fiz um rápido cálculo mental. Jules tinha nascido no final do século XIX. Desse modo, Vincent devia ter nascido na década de 1920. Sorri enquanto registrava essa informação para mais tarde. Se Vincent não queria me contar nada, talvez eu pudesse descobrir por mim mesma.
Saímos do metrô perto do imenso cemitério de Montparnasse e tomamos uma rua só para pedestres, lotada de barzinhos e cafés. Paramos em frente a um restaurante que tinha uma multidão aglomerada do lado de fora.
— Chegamos! — exclamou Georgia, entusiasmada.
— Georgia, olha só quanta gente esperando. Vai levar uma eternidade até conseguirmos uma mesa.
— Tenha fé em sua irmã mais velha — ela respondeu. — Um amigo meu trabalha aqui. Aposto que posso conseguir uma mesa já.
— Vai lá. Esperamos aqui — retruquei, indo com Vincent e Ambrose para o outro lado da rua, para fora da agitação. Encostamos na fachada de uma loja fechada e ficamos olhando Georgia atravessar todo aquele povo.
— Sua descrição dela foi perfeita — Vincent sorriu, passando um braço ao redor de meus ombros e apertando com carinho.
— Minha irmã, o fenômeno — comentei, curtindo o abraço.
Parado junto a mim, do lado oposto a Vincent, Ambrose observava as pessoas e marcava com a cabeça algum ritmo que só ele ouvia, quando de repente se imobilizou e olhou para Vincent, sério.
— Vin, Jules diz que está vendo o Cara na vizinhança. A algumas quadras daqui.
— Ele sabe que estamos aqui? — perguntou Vincent.
— Acho que não.
Vincent afastou o braço e disse:
— Kate, temos que sair daqui. Agora.
— Mas e Georgia? — protestei, olhando para a porta de vidro. Eu via minha irmã lá dentro, conversando com a hostess.
— Vou buscá-la — decidiu Vincent, e começou a atravessar a multidão.
Na mesma hora, dois homens que iam passando se chocaram contra Ambrose, empurrando-o com violência contra a parede. Ele resmungou e tentou segurá-los, mas os homens se desviaram dele e se afastaram depressa, enquanto ele caía ao chão.
— Ei! Parem! — gritei, enquanto dobravam uma esquina. — Alguém pare aqueles sujeitos! — berrei para as pessoas do outro lado da rua. Algumas se viraram e olharam na direção que eu apontava, mas os homens tinham desaparecido de vista. Tudo aconteceu tão rápido que ninguém havia sequer notado.
— Vincent! — chamei, na direção da multidão.
Ele se virou e, me vendo alarmada, começou a voltar até nós.
— Ambrose, você está bem? — disse eu, me abaixando junto a ele. — Aquele cara... — comecei, mas parei, ao ver que sua camisa estava rasgada do pescoço ao peito e empapada de sangue. Ele não se movia.
Ah, por favor, que ele não esteja morto, pensei.
Eu havia visto mais violência no último ano do que em todo o resto da minha vida. Perguntei, não pela primeira vez, Por que eu?. Garotas adolescentes não deviam ter semelhante familiaridade com a morte, protestei amargamente, enquanto uma sensação de pânico subia pela boca do estômago. Ajoelhei-me ao lado do vulto imóvel.
— Ambrose, pode me ouvir?
Alguém começou a se aproximar, vindo do grupo de gente.
— Ei, ele está bem?
Bem naquela hora, Ambrose estremeceu e, inclinando-se para diante, apoiou-se nas duas mãos e começou a se erguer. Ao mesmo tempo, fechou a jaqueta, escondendo o sangue na camisa, embora uma grande poça já tivesse se formado no chão.
— Ah, meu Deus, Ambrose, o que aconteceu? — perguntei.
Estendi o braço para ampará-lo, e ele apoiou em mim o peso do corpo.
— Ambrose não. É Jules — as palavras vinham dos lábios de Ambrose, mas seus olhos estavam fixos e vidrados.
— O quê? — perguntei, confusa.
Por fim Vincent chegou até nós.
— É Ambrose — informei. — Ele foi esfaqueado ou recebeu um tiro, ou algo assim. E está delirando. Acabou de me dizer que é Jules.
— Temos que tirar ele daqui antes que voltem com reforços para levar o corpo dele — instruiu Vincent, em voz baixa, e então disse mais alto, para o grupinho de pessoas que vinha nos ajudar. — Ele está bem, ele está bem... obrigado!
Ele pegou um braço de Ambrose e passou-o ao redor de seus ombros.
— E quanto a Georgia? — exclamei.
— Quem quer que tenha feito isso viu você com Ambrose. É perigoso demais para você ficar aqui.
— Não posso deixar minha irmã — afirmei, disposta a ir buscá-la.
Vincent agarrou meu braço e me puxou para perto de si.
— Ela estava lá dentro quando eles atacaram, e está a salvo. Vem comigo! — ele ordenou.
Peguei o outro braço de Ambrose e o coloquei sobre meus ombros. Ele caminhava, mas parecia muito fraco. Fomos até o final do quarteirão; Vincent chamou um táxi, e nos acomodamos lá dentro. Vasculhei a rua ao partirmos. Nenhum sinal de Georgia.
— Ele está bem? — perguntou o motorista, olhando pelo retrovisor e analisando o homem grandalhão jogado em seu banco de trás.
— Bêbado — respondeu Vincent, seco, enquanto tirava seu suéter.
— Bom, não quero ninguém vomitando no meu carro — resmungou o homem, sacudindo a cabeça, desgostoso.
— Que aconteceu? — Vincent me perguntou baixinho, em inglês, erguendo os olhos para ver se o motorista entendia. Entregou o suéter para Ambrose, que abriu a jaqueta e o ajeitou sob ela. Apoiou a cabeça no encosto do banco a sua frente.
— Estávamos lá quando dois sujeitos o empurraram contra a parede. Eles saíram correndo antes que eu conseguisse entender o que estava acontecendo.
— Conseguiram ver quem fez isso? — perguntou ele.
Fiz que não com a cabeça.
— Eram dois deles — respondeu Ambrose. — Não consegui ver o ataque antes que acontecesse, ou eu teria alertado vocês.
— Está tudo bem, Jules — disse Vincent, pondo a mão nas costas de Ambrose para tranquilizá-lo.
— Por que você o chamou de Jules?
— Não é Ambrose que está aí. É Jules.
— O quê? Como? — fui invadida pelo terror e me afastei abruptamente do corpo largado a meu lado.
— Ambrose está inconsciente ou... morto.
— Morto — informou Ambrose.
— Ele vai... voltar à vida? — perguntei, horrorizada.
— O ciclo recomeça quando morremos. O primeiro dia da dormência tem início no instante em que morremos. Não se preocupe, Ambrose vai reanimar em três dias.
— E o que Jules está fazendo? É uma possessão?
— Sim. Ele quis tirar Ambrose de lá antes que nossos inimigos pudessem voltar para levar o corpo.
— Vocês conseguem fazer isso, quer dizer, possuir alguém?
— Outros revenants, sim, sob certas condições.
— Por exemplo?
— Por exemplo se o corpo ainda está em condições de se mover. — Vendo meu assombro, ele esclareceu. — Se o corpo está inteiro. E se o rigor mortis ainda não se instalou.
— Argh! — fiz uma careta.
— Você perguntou! — ele relanceou os olhos pelo motorista. A julgar pela falta de interesse, ele não tinha ideia do que falávamos.
— E quanto aos humanos?
— Se estão vivos, sim, mas só se permitirem que entremos neles. E levando em conta que é muito perigoso para a sanidade mental de um humano ter duas mentes ativas ao mesmo tempo aqui dentro... — ele tocou a testa — ... ele enlouqueceria se a situação se prolongasse por muito tempo.
Estremeci.
— Não pense nisso, Kate. É muito raro acontecer. Só fazemos isso em situações extremas. Como agora.
— O que... estou aterrorizando você, minha querida Kate? — as palavras saíram da boca de Ambrose.
— Sim, Jules — respondi, franzindo o nariz. — Posso afirmar, com sinceridade, que estou completamente aterrorizada neste instante.
— Legal — ele disse, formando um sorriso nos lábios de Ambrose.
— Jules, péssima hora para piadas — censurou Vincent.
— Desculpa aí, cara. Mas não é todo dia que posso fazer uns truques de mágica para humanos.
— Dá para se concentrar em diminuir, se possível estancar, o sangramento? O motorista vai ficar maluco se a gente sujar o banco de trás — sussurrou Vincent.
— Se já tinham matado Ambrose, por que os caras iriam voltar para pegar o corpo? E, de qualquer maneira, por que matá-lo, se sabem que ele simplesmente vai voltar à vida em três dias? — perguntei a Vincent, sem ligar para o quão surreal era aquela conversa.
Vincent pareceu avaliar se devia ou não me dizer. E então, olhando para o corpo de Ambrose meio caído por cima de mim, murmurou:
— É o único jeito de nos destruir. Se eles nos matam, e em seguida queimam o corpo, estamos acabados para sempre.
Georgia estava furiosa. E eu não a culparia.
Quando chegamos à casa de Vincent, já tínhamos brigado por torpedo.
Georgia: Onde vocês estão?
Eu: Ambrose passou mal. Tivemos que levá-lo para casa.
Georgia: Por que não entraram no restaurante para me pegar?
Eu: Tentamos. Não conseguimos atravessar a multidão.
Georgia: Estou te odiando muito neste instante, Kate Beaumont Mercier.
Eu: MIL PERDÕES.
Georgia: Encontrei uns amigos que me salvaram da humilhação total. Mas ainda te odeio.
Eu: Desculpa.
Georgia: Você NÃO está perdoada.
Vincent e eu tentamos ajudar Ambrose, mas ele se endireitou sozinho depois de sair do táxi e afastou nossas mãos.
— Já peguei o jeito. Droga, este cara é pesado. Como é que ele consegue se mover com esse monte de músculos gigantescos por todo canto?
Quando chegamos à porta, Vincent me olhou, parecendo estar dividido.
— Acho que vou para casa — falei, tomando a decisão por ele.
Ele pareceu aliviado.
— Posso acompanhar você se você esperar uns minutos, até que o acomodemos.
— Não, vou ficar bem, sério — garanti.
E, por incrível que pareça, era verdade. Depois de todo o horror e esquisitice daquela noite, eu me sentia estranhamente bem. Posso encarar tudo isso, pensei comigo mesma, enquanto atravessava os portões rumo à casa de meus avós.