O Livro III d’O capital, desde que foi submetido ao julgamento público, já experimentou numerosas e variadas interpretações. Não cabia esperar outra coisa. Ao publicá-lo, o que me interessava era sobretudo reproduzir o texto da maneira mais autêntica possível, apresentar os novos resultados obtidos por Marx, sempre que possível com as próprias palavras do autor, e interferir no texto somente quando fosse absolutamente inevitável, tomando o máximo cuidado para, mesmo nesse caso, não deixar ao leitor a menor dúvida sobre quem está falando. Criticaram-me por isso, disseram que eu deveria ter transformado o material de que dispunha num livro sistemático, en faire un livre [fazer disso um livro], como dizem os franceses, ou, em outras palavras, sacrificar a autenticidade do texto à comodidade do leitor. Mas não concebi assim minha tarefa. Faltava-me qualquer justificava para uma reelaboração desse tipo; um homem como Marx tem o direito de ser ouvido pessoalmente, de legar à posteridade suas descobertas científicas na autenticidade plena de sua própria exposição. Além disso, de modo nenhum eu pretendia ultrajar, segundo meu modo de ver, o legado de um homem tão preeminente; isso equivaleria a uma quebra de confiança. Em terceiro lugar, tal expediente teria sido inteiramente inútil. Para as pessoas que não sabem ou não querem ler, e que já no Livro I empenharam-se mais em entendê-lo mal do que em entendê-lo corretamente – a essas pessoas seria pura perda de tempo dedicar qualquer esforço. Mas, para aquelas interessadas numa real compreensão, o mais importante é justamente o texto original; para elas, minha reelaboração teria tido no máximo o valor de um comentário e, ainda por cima, de um comentário sobre um texto inédito e inacessível. Já na primeira controvérsia, teria sido necessário recorrer ao original e, na segunda e na terceira, teria se tornado imprescindível publicá-lo in extenso.
Tais controvérsias são evidentes quando se trata de uma obra que apresenta tantos aspectos novos, que nos chegam numa primeira elaboração rapidamente esboçada e parcialmente lacunar. É nesse contexto que minha intervenção pode ser útil para eliminar dificuldades de compreensão, acentuar aspectos cuja importância não se encontra suficientemente ressaltada no texto e, considerando que este foi escrito em 1865, adicionar-lhe alguns importantes dados complementares, ajustando-o assim ao estado de coisas de 1895. Com efeito, temos já aqui dois pontos, sobre os quais penso ser necessária uma breve explicação.
Era de esperar que a solução da aparente contradição entre esses dois fatores levaria a debates, tanto antes como depois da publicação do texto de Marx. Há até mesmo aqueles que esperavam assistir a um verdadeiro milagre e se viram frustrados porque, em vez da ansiada prestidigitação, depararam com uma solução simplesmente racional e prosaicamente sóbria da contradição. Quem se mostrou mais satisfeito com essa frustração foi, claro, o renomado e illustre Loria, que acabou por encontrar o ponto arquimediano a partir do qual mesmo um homúnculo de seu calibre pode erguer e mandar pelos ares a construção gigantesca e sólida de Marx. Mas – exclama ele indignado – isso pode ser chamado de solução? É, antes, pura mistificação! Pois os economistas, quando falam de valor, referem-se ao valor que se estabelece efetivamente na troca.
“Porém, ocupar-se com um valor pelo qual as mercadorias não são vendidas nem podem jamais ser vendidas (nè possono vendersi mai) é o que nunca fez nem fará qualquer economista que possua um mínimo de critério. […] Quando Marx diz que o valor pelo qual as mercadorias nunca são vendidas é proporcional ao trabalho nelas contido, que outra coisa faz senão repetir, de forma invertida, a tese dos economistas ortodoxos segundo a qual o valor pelo qual as mercadorias são vendidas não é proporcional ao trabalho nelas empregado? […] De nada adianta que Marx afirme que, apesar da divergência dos preços individuais em relação aos valores individuais, o preço total do conjunto das mercadorias coincide sempre com o valor total delas, quer dizer, com a quantidade de trabalho contida na totalidade das mercadorias. Pois, considerando-se que o valor nada mais é que a proporção em que uma mercadoria é trocada por outra, a mera ideia de um valor total é, por si só, um absurdo, um disparate, […] uma contradictio in adjecto [contradição nos termos].”
Já no começo do livro, Marx teria dito que a troca só pode equiparar duas mercadorias por intermédio de um elemento de igual natureza e grandeza contido em ambas – a saber, a quantidade igual de trabalho que elas contêm. E, agora, estaria desmentindo a si mesmo da maneira mais solene, ao afirmar que as mercadorias são trocadas numa proporção que não tem nenhuma relação com a quantidade de trabalho nelas contida.
“Quando já houve uma tão completa redução ad absurdum, maior bancarrota teórica? Quando já se cometeu um suicídio científico com maior pompa e solenidade?” (Nuova Antologia, 1º fev. 1895, p. 447-9)
Como vemos, nosso Loria está contentíssimo. Não tinha ele razão quando tratou Marx como seu igual, como um reles charlatão? Ora, vemos aí – Marx escarnece de seu público exatamente da mesma maneira que Loria e vive de mistificações tal como o mais insignificante dos professores italianos de economia. Mas enquanto Dulcamara pode permitir-se isso, porque conheceu seu ofício, Marx, esse grosseiro nórdico, dá mostras de uma série de debilidades, comete erros e disparates, de modo que, por fim, nada lhe resta senão um solene suicídio.
Deixemos para mais adiante a afirmação de que as mercadorias jamais se venderam nem se venderão pelos valores determinados pelo trabalho. Atenhamo-nos aqui apenas à afirmação do sr. Loria, de que “o valor nada mais é que a proporção em que uma mercadoria é trocada por outra e, por conseguinte, a simples ideia de um valor total das mercadorias é, por si só, um absurdo, um disparate etc.”. A proporção em que duas mercadorias são trocadas, o valor delas, é, portanto, algo puramente fortuito, que tem origem fora das mercadorias e que pode mudar de um dia para outro. Que um quintal métrico de trigo seja trocado por um grama ou um quilo de ouro não depende em absoluto de condições inerentes ao trigo ou ao ouro, mas de circunstâncias totalmente alheias a ambos. Pois, de outro modo, essas condições também teriam de impor-se na troca, regê-la por completo e, mesmo sem levar em conta a troca, ter uma existência autônoma, de maneira que seria possível falar de um valor global das mercadorias. Isso, diz o illustre Loria, é um absurdo. Seja qual for a proporção em que se possam trocar duas mercadorias, esse é o valor delas, e ponto final. O valor é, assim, idêntico ao preço, e toda mercadoria tem tantos valores quantos preços possa obter. O preço é determinado pela oferta e demanda, e quem segue a perguntar é um tolo se espera alguma resposta.
Mas a questão tem um pequeno inconveniente. Em condições normais, oferta e demanda coincidem. Dividamos, então, todas as mercadorias existentes no mundo em duas metades: no grupo da demanda e no grupo da oferta, ambos de igual grandeza. Suponhamos que cada grupo represente o preço de 1 bilhão de marcos, francos, libras esterlinas ou qualquer outra moeda. Segundo as regras da aritmética, a soma dos dois dará um preço ou valor de 2 bilhões. Disparate, absurdo, diz o sr. Loria. Os dois grupos em conjunto podem representar um preço de 2 bilhões. Mas isso não se aplica ao valor. Se falarmos de preço, teremos 1 + 1 = 2. Se falarmos de valor, 1 + 1 = 0. Pelo menos nesse caso, em que se trata da totalidade das mercadorias, pois aqui as mercadorias de cada grupo só valem 1 bilhão, uma vez cada um deles quer e pode dar essa soma pelas mercadorias do outro. Mas, se reunirmos a totalidade das mercadorias de ambos nas mãos de um terceiro, então o primeiro já não terá nenhum valor em suas mãos, tampouco o segundo, e menos ainda o terceiro; no final das contas, ninguém terá nada. Admiremos, uma vez mais, a superioridade com que nosso Cagliostro meridional depenou o conceito de valor de tal maneira que deste não restou o menor vestígio. Aí está a perfeição da economia vulgar[1]!
Em Archiv für soziale Gesetzgebung, de Braun, VII, caderno 4, Werner Sombart oferece uma exposição, excelente no conjunto, das linhas gerais do sistema marxiano. É a primeira vez que um professor universitário alemão consegue, de maneira aproximada, ver nos escritos de Marx o que neles foi realmente dito, declarando que a crítica ao sistema do autor não pode consistir em refutá-lo – “disso pode encarregar-se o arrivista político” –, mas apenas em continuar a desenvolvê-lo. Também Sombart, é evidente, ocupa-se de nosso tema. Investiga a importância que o valor desempenha no sistema marxiano e chega aos seguintes resultados: o valor não aparece na relação de troca das mercadorias produzidas ao modo capitalista; não vive na consciência dos agentes capitalistas da produção; não é um fato empírico, mas um fato mental, lógico; em Marx, o conceito de valor, em sua determinidade material, nada mais é que a expressão econômica do fato de que a força produtiva social do trabalho é a base da vida econômica; a lei do valor rege, em última instância, os processos econômicos numa ordem econômica capitalista e, de modo geral, tem para esse sistema econômico o seguinte conteúdo: o valor das mercadorias é a forma histórica específica em que se impõe, de maneira determinante, a força produtiva do trabalho, a qual, em último caso, rege todos os processos econômicos. É o que afirma Sombart; não se pode dizer que esteja incorreta essa concepção da importância da lei do valor para a forma de produção capitalista. Porém, parece-me que sua formulação é demasiadamente larga, suscetível de uma formulação mais restrita, mais precisa; a meu ver, ela não esgota de modo nenhum a importância completa da lei do valor para os estágios de desenvolvimento econômico da sociedade regidos por essa lei.
Em Sozialpolitisches Zentralblatt, de Braun, de 25 de fevereiro de 1895, n. 22, encontra-se um artigo, igualmente excelente, de Conrad Schmidt, sobre o Livro III d’O capital. Deve-se destacar especialmente o fato de o autor ter demonstrado que Marx, ao derivar o lucro médio do mais-valor, deu pela primeira vez uma resposta à pergunta – até então nem sequer formulada pela ciência econômica – de como se determina o nível dessa taxa média de lucro e de como se explica que ele seja, digamos, de 10% ou 15%, e não de 50% ou 100%. Essa questão se resolve por si mesma, a partir do momento em que sabemos que o mais-valor apropriado em primeira mão pelo capitalista industrial é a única e exclusiva fonte do lucro e da renda fundiária. Essa parte do artigo de Schmidt poderia ter sido escrita diretamente para economistas à la Loria, se não fosse inútil o esforço de abrir os olhos daqueles que não querem enxergar.
Também Schmidt apresenta ressalvas formais em relação à lei do valor. Chama-a de uma hipótese científica, proposta para a explicação do processo efetivo de troca e que, mesmo perante os fenômenos da concorrência dos preços, que parecem contradizê-la totalmente, conserva-se como ponto de partida teórico necessário, esclarecedor e incontornável; sem a lei do valor, cessa, a seu ver, toda e qualquer compreensão teórica do mecanismo econômico da realidade capitalista. Ademais, numa carta particular, que ele me permite mencionar, Schmidt declara que a lei do valor, no interior da forma capitalista de produção, é uma simples ficção, ainda que teoricamente necessária. Tal concepção é, em minha opinião, absolutamente falha. A lei do valor tem, para a produção capitalista, uma importância muito maior e mais definida que a de uma mera hipótese, que dirá o de uma ficção, mesmo que necessária.
Nem em Sombart nem em Schmidt – só menciono o illustre Loria para compor um divertido pano de fundo da economia vulgar – considera-se suficientemente a circunstância de que aí se trata não apenas de um processo puramente lógico, mas também de um processo histórico e seu reflexo explicativo no pensamento, da persecução lógica de seus nexos internos.
A passagem decisiva encontra-se no Livro III, capítulo 10, p. 154 [p. 209]:
“Toda a dificuldade provém do fato de que as mercadorias não se trocam simplesmente como mercadorias, mas como produtos de capitais, que requerem uma participação proporcional à sua grandeza na massa total do mais-valor, ou uma participação igual quando sua grandeza é igual.”
A título de ilustração dessa diferença, Marx supõe que os trabalhadores estejam de posse de seus meios de produção, trabalhem em média durante um igual período de tempo e com a mesma intensidade e troquem as mercadorias diretamente entre si. Nesse caso, dois trabalhadores, durante uma jornada, teriam agregado a seus produtos, com seus respectivos trabalhos, uma quantidade igual de um valor novo, mas o produto de cada um teria um valor distinto segundo o trabalho antes incorporado nos meios de produção. Essa última parte do valor representaria o capital constante da economia capitalista; a parte do novo valor empregada nos meios de subsistência do trabalhador constituiria o capital variável; e a parte restante do novo valor, o mais-valor, que aqui pertenceria, então, ao trabalhador. Assim, os dois trabalhadores receberiam, deduzida a reposição da parte “constante” do valor por eles adiantada, valores iguais; mas a proporção entre a parte que representa o mais-valor e o valor dos meios de produção – que corresponderia à taxa de lucro capitalista – seria diferente para ambos. No entanto, uma vez que, na troca, cada um deles é restituído do valor dos meios de produção, isso não teria importância nenhuma.
“[...] o intercâmbio de mercadorias por seus valores, ou aproximadamente por seus valores, requer um estágio muito inferior ao do intercâmbio a preços de produção, para o qual se faz necessário um nível determinado do desenvolvimento capitalista. [...] Ainda sem levar em conta o fato de que os preços e seu movimento são determinados pela lei do valor, é totalmente apropriado considerar os valores das mercadorias não só do ponto de vista teórico, mas também do histórico, como o prius [antecedente] dos preços de produção. Isso vale para casos em que os meios de produção pertencem ao trabalhador, o que ocorre tanto no mundo antigo como no moderno, tanto no caso do camponês que possui a terra na qual trabalha para si mesmo, como no do artesão. Isso também está de acordo com nossa opinião, que expressamos anteriormente, de que a transformação dos produtos em mercadorias resulta do intercâmbio entre diversas coletividades, e não entre membros de uma e mesma comunidade. E o que se aplica a esse estado de coisas originário aplica-se também a situações posteriores, fundadas na escravidão e na servidão, assim como às corporações artesanais, por todo o tempo em que os meios de produção imobilizados em cada ramo da produção só possam ser transferidos de uma esfera a outra com muita dificuldade e que, dentro de certos limites, as diferentes esferas da produção se relacionem entre si como o fariam países estrangeiros ou coletividades comunistas.” (Marx, III, I, p. 155-6 [p. 211-2])
Tivesse chegado a rever o Livro III, Marx teria certamente desenvolvido de maneira considerável essa passagem. Tal como se apresenta, ela dá apenas um esboço do que se deve dizer sobre o problema. Vejamos essa questão, portanto, em maiores detalhes. É sabido que, nos primórdios da sociedade, os produtos eram consumidos pelos próprios produtores e que estes se organizavam espontaneamente em comunidades geridas de maneira mais ou menos comunista; é sabido também que a troca do excedente desses produtos com estrangeiros, a qual leva à transformação dos produtos em mercadorias, é um fenômeno posterior, que de início ocorre apenas entre comunidades individuais de diferentes tribos, porém mais tarde tem lugar também dentro da comunidade e contribui essencialmente para a dissolução desta última em grupos familiares maiores ou menores. No entanto, mesmo após essa dissolução, os chefes de família, que realizam as trocas, continuam a ser camponeses que trabalham e, com a ajuda de sua família, produzem em suas próprias terras quase tudo de que têm necessidade, obtendo de fora apenas uma pequena parte dos objetos de que precisam em troca de seus próprios produtos excedentes. A família não se ocupa apenas da agricultura e da pecuária, mas também transforma os produtos dessas atividades em artigos prontos para o consumo, às vezes moendo ela mesma o trigo em moinho manual, assando o pão, fiando, tingindo, tecendo o linho e a lã, curtindo o couro, erigindo e consertando construções de madeira, fabricando ferramentas e utensílios e, não raro, fazendo trabalhos de marcenaria e forja; desse modo, a família ou o grupo familiar é, no essencial, autossuficiente.
Ora, mesmo até o início do século XIX na Alemanha, o pouco que tal família precisava obter de terceiros por meio da troca ou da compra resumia-se principalmente a objetos de produção artesanal, ou seja, a coisas cuja fabricação não era de modo nenhum estranha ao camponês e que ele mesmo só não produzia porque ou não dispunha da matéria-prima ou o artigo comprado era de melhor qualidade ou muito mais barato. O camponês da Idade Média tinha plena ciência, portanto, do tempo de trabalho requerido para produzir os objetos que recebia na troca. O ferreiro e o segeiro da aldeia trabalhavam diante de seus olhos; do mesmo modo, o alfaiate e o sapateiro, que em minha juventude circulavam entre nossos camponeses renanos, indo de casa em casa, e dos materiais produzidos por estes confeccionava roupas e calçados. Tanto o camponês como as pessoas de quem ele comprava eram trabalhadores, e os artigos que trocavam entre si eram os produtos do trabalho de cada um. Que despenderam eles na produção desses produtos? Trabalho, apenas trabalho: para repor as ferramentas, produzir a matéria-prima e elaborá-la, não despenderam mais que sua própria força de trabalho; como lhes seria possível, então, trocar seus produtos pelos de outros produtores diretos, a não ser na proporção do trabalho neles empregado? O tempo de trabalho despendido nesses produtos não era apenas o único padrão de medida adequado para determinar quantitativamente as grandezas a serem trocadas; mais que isso, não havia outro além dele. Ou quem acreditaria que o camponês e o artesão fossem estúpidos ao ponto de trocar o produto de dez horas de trabalho de um deles pelo produto de uma única hora de trabalho do outro? Durante todo o período da economia natural camponesa, a única troca possível era aquela em que as quantidades trocadas de mercadorias tendiam a medir-se cada vez mais conforme as quantidades de trabalho nelas incorporadas. A partir do momento em que o dinheiro penetra nesse sistema econômico, torna-se, por um lado, ainda mais explícita a tendência para a adequação à lei do valor (de acordo com a formulação de Marx, nota bene!), mas, por outro, tal tendência já se vê perturbada pela intervenção do capital usurário e da espoliação fiscal, alongando assim os períodos em que a média dos preços se aproxima dos valores, até que a diferença entre eles se torna desprezível.
O mesmo vale para a troca entre os produtos dos camponeses e os dos artesãos citadinos. Inicialmente, tal troca era direta, sem mediação do comerciante, em dias de feira nas cidades, quando o camponês vendia seus produtos e realizava suas compras. Também nesse caso, não só as condições de trabalho do artesão eram conhecidas pelo camponês, como também as deste último pelo artesão. Pois ele mesmo era ainda um pouco camponês; possuía não apenas horta e pomar, mas também, com muita frequência, uma pequena porção de terra, uma ou duas vacas, porcos, aves etc. Desse modo, as pessoas da Idade Média eram capazes de calcular, umas em relação às outras, com bastante exatidão, os custos de produção em matérias-primas, materiais auxiliares e tempo de trabalho, pelo menos no que diz respeito aos artigos de uso cotidiano e geral.
Mas como nessa troca medida pela quantidade de trabalho se conseguia calcular esses custos, ainda que apenas de modo indireto e relativo, para produtos que exigiam um período de trabalho mais longo, interrompido por intervalos irregulares e incerto quanto ao rendimento, como, por exemplo, o cereal ou o gado? Ainda mais em se tratando de pessoas que não sabiam calcular? É evidente que isso só era possível através de um demorado processo de aproximação em zigue-zague, frequentemente tateando aqui e ali na escuridão, processo no qual, como de costume, só se aprende errando. Mas a necessidade que cada um sentia de recuperar seus gastos sempre o ajudava a reencontrar a direção correta, e a variedade exígua de objetos que entrava em circulação, assim como o método de produzi-los, que muitas vezes se mantinha invariável por séculos, facilitavam a realização do objetivo. E que não tenha tardado até que se estabelecesse com muita aproximação a grandeza de valor relativa desses produtos fica demonstrado pelo fato de o gado, a mercadoria em que isso parecia mais difícil devido ao longo tempo de produção de cada cabeça, ter sido a primeira mercadoria-dinheiro reconhecida de forma bastante generalizada. Para que isso se consumasse, o valor do gado, sua relação de troca para com toda uma série de outras mercadorias, teve de alcançar uma fixidez relativamente incomum, reconhecida sem contestação no território de diversas tribos. E as pessoas da época eram decerto suficientemente espertas – tanto os criadores de gado como seus fregueses – para não dar em troca, sem equivalente, o tempo de trabalho que haviam despendido. Pelo contrário: quanto mais próximas as pessoas se encontram do estágio primitivo da produção de mercadorias – russos e orientais, por exemplo –, tanto mais tempo elas desperdiçam, ainda em nossos dias, para obter mediante um regateio longo e obstinado a plena recompensa do tempo de trabalho empregado num produto.
Foi a partir dessa determinação do valor pelo tempo de trabalho que se desenvolveu toda a produção de mercadorias e, com ela, as múltiplas relações em que se afirmam os diferentes aspectos da lei do valor, tal como expostos na seção I do Livro I d’O capital; ou seja, as condições sob as quais apenas o trabalho é criador de valor. E tais condições, que se impõem sem que os participantes tomem consciência delas e só podem ser abstraídas da prática cotidiana por meio de uma longa investigação teórica, atuam como se fossem leis naturais, o que, como Marx também demonstrou, é algo que decorre necessariamente da natureza da produção de mercadorias. O progresso mais significativo e mais decisivo foi a transição para o dinheiro metálico, a qual, porém, teve por consequência o fato de que, a partir de então, a determinação do valor pelo tempo de trabalho deixava de aparecer de forma visível na superfície da troca de mercadorias. O dinheiro converteu-se, do ponto de vista prático, na medida fundamental do valor, e isso tanto mais quanto mais diversas se tornavam as mercadorias comercializadas, quanto mais longínquos eram os países de onde provinham e, portanto, quanto menos se podia controlar o tempo de trabalho necessário para sua produção. De início, o próprio dinheiro vinha principalmente do exterior; mesmo quando o metal precioso era extraído no país, o camponês e o artesão em parte não eram capazes de estimar aproximadamente o trabalho empregado em sua produção, em parte a consciência da qualidade do trabalho de medir o valor já lhes estava bastante embotada devido ao hábito de calcular em dinheiro; o dinheiro começou a representar o valor absoluto no imaginário popular.
Em resumo: a lei marxiana do valor tem validade geral, desde que as leis econômicas valham para todo o período da produção simples de mercadorias, portanto, até o tempo em que esta experimenta uma modificação por meio da introdução da forma de produção capitalista. Até então, os preços variavam na direção dos valores determinados pela lei marxiana e gravitam em torno desses valores, de modo que, quanto mais desenvolvida a produção simples de mercadorias, tanto mais os preços médios de períodos mais longos, não interrompidos por crises violentas e de origem externa coincidem com os valores, podendo-se desprezar os pequenos desvios. Portanto, a lei marxiana do valor tem validade econômica geral para um período que se estende desde os primórdios da troca que transforma os produtos em mercadorias até o século XV de nossa era. Mas a troca de mercadorias tem origem numa época anterior a toda a história escrita; numa época que, no Egito, remonta a pelo menos 3.500, talvez 5.000, e na Babilônia, a 4.000, talvez 6.000 anos antes de nossa era; a lei do valor vigorou, pois, por um período de cinco a sete milênios. E agora admiremos a integridade do sr. Loria, que qualifica o valor, vigente de maneira geral e direta durante toda essa época, como um valor ao qual as mercadorias não se vendem nem poderão ser jamais vendidas e do qual nunca se poderá ocupar um economista que possua uma centelha de bom senso!
Até agora não falamos do comerciante. Pudemos deixar de considerar sua intervenção até o presente momento, em que passaremos à transformação da produção simples de mercadorias para a produção capitalista de mercadorias. O comerciante foi o elemento revolucionário nessa sociedade, na qual tudo o mais se mantinha estável, por assim dizer, hereditariamente; uma sociedade na qual o camponês recebia não somente sua parcela de terra, mas também sua posição de proprietário livre, de censatário livre ou sujeito à gleba ou de servo vinculado ao senhor, e o artesão citadino, por sua vez, recebia seu ofício e seus privilégios corporativos por herança e em caráter quase inalienável; e cada um deles, sua clientela e seu mercado, bem como sua habilidade, adestrada desde a juventude para a profissão herdada. Nesse mundo ingressou, então, o comerciante, que acabaria por revolucioná-lo. Não o faria na qualidade de revolucionário consciente, mas, pelo contrário, como carne de sua carne e sangue de seu sangue. O comerciante da Idade Média não era em absoluto um individualista, mas essencialmente membro de alguma associação, como todos os seus contemporâneos. No campo, reinava a associação para explorar as terras comuns, oriunda do comunismo primitivo. Cada camponês tinha originalmente uma parcela de mesmo tamanho, com iguais porções de terra de cada qualidade e uma correspondente participação igual nos direitos sobre as terras comuns. Desde que essa associação se tornou um sistema fechado e já não se distribuíam novas parcelas, ocorreram, mediante heranças etc., subdivisões das parcelas e correspondentes subdivisões dos direitos às terras comuns; mas a parcela completa continuou a ser a unidade, de modo que havia metades, quartos e oitavos de parcela com metades, quartos e oitavos de direitos às terras comuns. Todas as associações de produção posteriores se orientaram segundo o modelo dessas associações, especialmente as corporações urbanas, cujo ordenamento não era mais do que a aplicação desse modelo ao privilégio de um ofício, em vez de a um território delimitado. O centro de toda a organização era a participação igual de cada membro na totalidade das prerrogativas e dos benefícios assegurados à associação em seu conjunto, o que ainda se manifesta patentemente no privilégio do “abastecimento de fios” de Elberfeld e Barmen, em 1527 ([Alphons] Thun, Industrie am Niederrhein, v. 2, p. 164 e seg.). O mesmo vale para as corporações das minas, nas quais cada cota tinha igual participação e, tal como as parcelas do membro da associação rural, podia ser dividida juntamente com todos os seus direitos e os seus deveres. E o mesmo vale, não em menor grau, para as associações comerciais, que deram origem ao comércio ultramarino. Os venezianos e os genoveses no porto de Alexandria ou Constantinopla, cada “nação” em seu próprio fondaco – residência, taberna, armazém, salão de exposição e vendas, além de escritório central –, constituíam associações comerciais completas, fechadas aos concorrentes e aos clientes, vendiam a preços combinados entre si, suas mercadorias tinham uma qualidade determinada, garantida por inspeção pública e muitas vezes por um selo, decidiam conjuntamente os preços a pagar aos nativos pelos produtos deles etc. Do mesmo modo procediam os hanseáticos na Ponte Alemã (Tydske Bryggen) de Bergen, na Noruega, e também seus concorrentes holandeses e ingleses. Pobre daquele que tivesse vendido abaixo ou comprado acima do preço estabelecido! O boicote que se decretava contra ele significava, então, sua inevitável ruína, para não falar das penas diretas que a corporação impunha aos culpados. Mas também se fundaram associações ainda mais fechadas, para fins determinados, como a Maona de Gênova, que, nos séculos XIV e XV, dominou durante muitos anos as minas de alúmen de Foceia, na Ásia Menor, assim como da ilha de Quios, ou a grande sociedade comercial de Ravensberg, que desde o fim do século XIV comerciava com a Itália e a Espanha, fundando ali sucursais, e a sociedade alemã dos Fugger, Welser, Vöhlin, Höchstetter etc. de Augsburgo; os Hirschvogel de Nurembergue e outros, que, com um capital de 66 mil ducados e três navios, participaram da expedição portuguesa à Índia em 1505-1506, obtendo um lucro líquido de 150% ou, segundo outros, de 175% (Heyd, Levantehandel, v. II, p. 524) e toda uma série de sociedades Monopolia, que tanto irritavam Lutero.
Aqui encontramos pela primeira vez um lucro e uma taxa de lucro. Decerto, os esforços dos comerciantes voltavam-se intencional e conscientemente à equalização dessa taxa de lucro para todos os participantes. Os venezianos no Levante, os hanseáticos no Norte, cada um pagava os mesmos preços que os vizinhos por suas mercadorias, que tinham todas os mesmos custos de transporte, recebia por elas os mesmos preços e pagava o frete de retorno aos mesmos preços que qualquer outro comerciante de sua “nação”. A taxa de lucro era, assim, igual para todos. Nas grandes sociedades comerciais, a distribuição do lucro pro rata da parte investida do capital é algo evidente, exatamente do mesmo modo que a participação nos direitos sobre as terras comuns se distribui pro rata das parcelas legitimamente possuídas ou o lucro das minas pro rata das cotas acionárias de minas. A taxa uniforme de lucro, que em seu pleno desenvolvimento é um dos resultados da produção capitalista, revela-se aqui, portanto, em sua forma mais simples, como um dos pontos dos quais partiu historicamente o capital ou, mais ainda, como decorrência direta da sociedade de terras comuns, que, por sua vez, decorre diretamente do comunismo primitivo.
Essa taxa de lucro original era necessariamente elevada. Os negócios eram bastante arriscados, não apenas devido à crescente pirataria, mas também porque as nações concorrentes às vezes se permitiam todos os tipos de violência, quando se ofereciam condições para isso; por último, as vendas e as condições das vendas repousavam sobre privilégios de príncipes estrangeiros, que muito frequentemente as violavam ou revogavam. Portanto, o lucro tinha de incluir um alto prêmio de seguro. Ademais, o movimento comercial era lento, o desenvolvimento dos negócios, moroso e, nas melhores épocas, que raramente duravam muito, tratava-se de um comércio monopólico, com lucro monopólico. Que a taxa de lucro era, em média, muito alta é algo evidenciado também pelas altíssimas taxas de juros então vigentes, as quais, no entanto, deviam ser em geral menores que a porcentagem do lucro habitual do comércio.
Essa elevada taxa de lucro, igual para todos os participantes e resultado da ação coletiva da associação, tinha validade somente local, no interior da associação, ou seja, no caso presente, da “nação”. Venezianos, genoveses, hanseáticos e holandeses tinham, cada um em sua nação, uma taxa de lucro própria, e inicialmente, em maior ou menor grau, também uma taxa especial para cada um de seus mercados regionais. A equalização dessas diferentes taxas de lucro corporativas impôs-se pelo caminho inverso, pela concorrência. Num primeiro momento, [equalizaram-se] as taxas de lucro nos diferentes mercados para a mesma nação. Se Alexandria prometia para as mercadorias venezianas lucros maiores que Chipre, Constantinopla ou Trebizonda, Veneza mobilizava mais capital para Alexandria, deslocando-o do intercâmbio com outros mercados. E assim se chegava à equalização progressiva das taxas de lucro entre as diferentes nações que exportavam mercadorias iguais ou similares para os mesmos mercados, processo que, com frequência, acabava por esmagar algumas dessas nações, eliminando-as do comércio. Tal processo, no entanto, experimentou constantes interrupções por acontecimentos políticos, assim como todo o comércio do Levante acabou arruinado devido às invasões mongólicas e turcas, e as grandes descobertas geográficas e comerciais a partir de 1492 não fizeram mais que acelerar essa decadência e, mais tarde, torná-la definitiva.
Num primeiro momento, a súbita expansão que então se verificara nas áreas de mercado, assim como a consequente transformação das vias de tráfego, não gerou mudanças essenciais nas operações comerciais. Também com a Índia e a América, o tráfego ainda esteve inicialmente a cargo das corporações de comerciantes. Primeiro, atrás dessas corporações estavam nações maiores. Os catalães que comerciavam com o Levante cederam lugar, no comércio com a América, à Espanha inteira, grande e unificada, e, junto com ela, a dois grandes países: a Inglaterra e a França. Mesmo Holanda e Portugal, os menores, eram pelo menos tão grandes e fortes quanto Veneza, a maior e mais poderosa nação comercial da época anterior. Isso conferia ao mercador viajante, o merchant adventurer dos séculos XVI e XVII, um respaldo que tornava a corporação que protegia os membros, inclusive com as armas, cada vez mais supérflua, convertendo seus custos num fardo insuportável. A riqueza particular de certos indivíduos desenvolveu-se, então, muito mais rapidamente, de modo que logo tornou-se possível a alguns comerciantes isolados investir num empreendimento tantos fundos quanto anteriormente o podia uma associação inteira. As sociedades comerciais, onde ainda subsistiam, transformaram-se na maioria das vezes em corporações armadas, que sob a proteção e a autoridade da metrópole conquistavam países inteiros recém-descobertos e os exploravam monopolicamente. Quanto mais colônias se estabeleciam nos novos territórios, o que em geral ocorria também por iniciativa do Estado, tanto mais o comércio corporativo cedia lugar ao comerciante individual, convertendo a equalização da taxa de lucro cada vez mais numa questão exclusiva da concorrência.
Até aqui conhecemos uma taxa de lucro somente para o capital comercial, pois até então existira apenas o capital comercial e o capital usurário, já que o capital industrial ainda tinha de se desenvolver. A produção ainda se encontrava preponderantemente nas mãos de trabalhadores, que detinham a posse de seus próprios meios de produção, isto é, cujo trabalho não gerava mais-valor para capital nenhum. Se tinham de ceder uma parte de seu produto a terceiros sem nenhuma compensação em troca, era na forma de tributo a senhores feudais. Por isso, o capital comercial só podia obter seu lucro, pelo menos no princípio, dos compradores estrangeiros de produtos nacionais ou dos compradores nacionais de produtos estrangeiros; apenas no fim desse período – na Itália, portanto, com o ocaso do comércio levantino – a concorrência externa e a maior dificuldade para as vendas puderam obrigar o artesão produtor de mercadorias de exportação a cedê-las ao exportador abaixo de seu valor. E assim encontramos aqui o fenômeno de que na circulação varejista, interna, entre os diversos produtores entre si, as mercadorias eram vendidas, em média, a seus valores, o que, no entanto, não era a regra no comércio internacional, pelas razões expostas. Exatamente o contrário do que ocorre no mundo atual, em que os preços de produção têm validade no comércio internacional e no comércio atacadista, ao passo que no comércio urbano varejista a formação de preços é regulada por outras taxas de lucro totalmente distintas. De maneira que, por exemplo, a carne de boi experimenta hoje um acréscimo maior de preço em seu trajeto do atacadista de Londres até o consumidor individual da mesma cidade do que em seu caminho do atacadista de Chicago até o de Londres, incluído aí o transporte.
O instrumento que produziu gradualmente essa mudança na formação dos preços foi o capital industrial. Já na Idade Média se haviam constituído os princípios para isso, mais exatamente em três áreas: navegação, mineração e indústria têxtil. A navegação, na escala em que a praticaram as repúblicas marítimas italianas e hanseáticas, era impossível sem o emprego de marinheiros, isto é, sem trabalhadores assalariados (cuja relação salarial podia, contudo, estar disfarçada sob formas cooperativas, com participação nos lucros), e as galeras daquela época não podiam funcionar sem remadores, fossem eles assalariados ou escravos. As sociedades de exploração das minas, que consistiam originalmente de trabalhadores associados, já se haviam transformado, em quase todos os casos, em sociedades por ações para a exploração das minas mediante trabalhadores assalariados. E, na indústria têxtil, o comerciante começara a empregar diretamente os pequenos mestres tecelões, fornecendo-lhes o fio para que, em troca de salário, o transformassem em tecido, em suma, convertendo-se de simples comprador no que se convencionou chamar de contratador (Verleger).
Eis aí os primórdios da formação capitalista do mais-valor. Podemos deixar de lado as corporações mineiras, por serem corporações monopolistas fechadas. Quanto aos armadores, é evidente que seus lucros tinham de ser pelo menos os usuais do país, com um adicional para cobrir o seguro, o desgaste dos navios etc. Mas como era a situação dos contratadores têxteis, que foram os primeiros a levar ao mercado mercadorias produzidas diretamente por conta dos capitalistas e que agora passavam a concorrer com as mercadorias da mesma espécie produzidas por artesãos?
A taxa de lucro do capital comercial já existia. Também já se encontrava nivelada em torno de uma taxa média, pelo menos na respectiva localidade. O que podia, então, induzir o comerciante a encarregar-se desse negócio extra de contratador? Uma única coisa: a perspectiva de obter um lucro maior, vendendo ao mesmo preço dos outros. E essa perspectiva existia para ele. Pondo a seu serviço o pequeno mestre artesão, ele rompia com as barreiras tradicionais opostas à produção, dentro das quais o produtor vendia seu produto acabado e nada mais. O capitalista comercial comprava a força de trabalho, que, naquele momento, ainda possuía seus instrumentos de produção, mas não mais a matéria-prima. Ao assegurar desse modo uma ocupação regular ao tecelão, ele podia, em contrapartida, baixar o salário deste último a ponto de obter gratuitamente uma parte do trabalho efetuado. O contratador convertia-se, assim, em apropriador de mais-valor, além do lucro comercial que já obtivera até então. Porém, precisava empregar capital adicional para comprar fio etc. e pôr essa matéria-prima nas mãos do tecelão, até que este tivesse acabado o tecido, cujo preço total ele anteriormente só tinha de pagar no momento da compra. Ocorre que, em primeiro lugar, na maioria das vezes ele também já lançara mão de capital extra para fazer adiantamentos ao tecelão, que, via de regra, condenava-o à servidão das dívidas e a submeter-se às novas condições de produção. Em segundo lugar, mesmo sem levar em conta esse fator, o cálculo é feito de acordo com o esquema a seguir.
Suponhamos que, em seu negócio de exportação, o comerciante opere com um capital de 30.000 ducados, cequins, libras esterlinas ou qualquer outra moeda. Dessa soma, 10.000 sejam despendidos na compra de mercadorias nacionais, enquanto 20.000 sejam necessários para seu emprego nos mercados ultramarinos. Suponhamos que o capital efetue uma rotação em dois anos, e que a rotação anual seja = 15.000. Nosso comerciante quer agora mandar tecer somente por conta própria, tornar-se contratador. Quanto capital ele terá de adiantar para isso? Digamos que o tempo de produção da peça de tecido, assim como a que ele vende, seja, em média, de dois meses, o que é certamente muito elevado. Digamos, além disso, que tudo tenha de ser pago à vista. Ele terá, então, de adiantar capital suficiente para abastecer seus tecelões de fio para dois meses de produção. Como faz rodar 15.000 ao ano, em dois meses ele terá comprado 2.500 de tecido. Suponhamos que, desse montante, 2.000 representem o valor do fio, e 500, os salários dos tecelões; nesse caso, nosso comerciante precisa investir um capital suplementar de 2.000. Digamos, agora, que o mais-valor que extrai dos tecelões com o novo método seja de apenas 5% do valor do tecido, o que significa que a taxa de mais-valor, decerto muito modesta, é de 25% (2.000c + 500v + 125m; m‘ = 125/500 = 25%, p‘ = 125/2.500 = 5%). Então nosso homem obterá, sobre sua rotação anual de 15.000, um lucro extra de 750, o que significa que em 2⅔ anos ele terá recuperado seu capital adicional investido.
Mas, a fim de acelerar sua venda e, com isso, sua rotação, obtendo desse modo, com o mesmo capital e num intervalo menor de tempo, o mesmo lucro, isto é, um lucro maior num intervalo de tempo igual, ele presenteará ao comprador uma pequena parte de seu mais-valor, vendendo mais barato que seus concorrentes. Estes também se converterão paulatinamente em contratadores, e então o lucro extra se reduzirá para todos ao lucro habitual, ou inclusive a um lucro menor que este, para o capital acrescentado por todos eles. A uniformidade da taxa de lucro será restabelecida, ainda que possivelmente em outro nível, pelo fato de uma parte do mais-valor obtido dentro do país ter sido cedida aos compradores estrangeiros.
O próximo passo na submissão da indústria ao capital é a introdução da manufatura. Esta também permite ao manufatureiro, que nos séculos XVII e XVIII – na Alemanha, de modo geral, até 1850, e em alguns lugares até os dias de hoje – é seu próprio exportador, a produzir mais barato que seu concorrente antiquado, o artesão. Repete-se o mesmo processo; o mais-valor apropriado pelo capitalista manufatureiro permite a ele – ou, dependendo do caso, ao comerciante exportador, com quem ele reparte esse mais-valor – vender mais barato que seus concorrentes, até que a generalização do novo modo de produção acarrete uma nova equalização. A taxa de lucro comercial preexistente, inclusive quando só se encontra nivelada localmente, continua a ser o leito de Procusto no qual se amputa sem piedade o mais-valor industrial excedente.
Se a manufatura conseguiu impor-se graças ao barateamento dos produtos, isso vale ainda mais para a grande indústria, que, com suas revoluções sempre renovadas da produção, abate cada vez mais os custos de produção das mercadorias, eliminando inexoravelmente todos os modos de produção anteriores. E é também a grande indústria que, em virtude desse processo, conquista definitivamente o mercado interno para o capital, liquida a pequena produção e a economia natural da família camponesa autossuficiente, elimina o intercâmbio direto entre os pequenos produtores e põe a nação inteira a serviço do capital. Do mesmo modo, nivela as taxas de lucro dos diversos ramos comerciais e industriais numa única taxa geral de lucro e, por fim, garante à indústria a supremacia que lhe corresponde nessa equalização, uma vez que remove a maior parte dos obstáculos que até então se opunham à transferência de capital de um ramo para outro. Assim se realiza, de maneira geral, para o intercâmbio global, a transformação dos valores em preços de produção. Essa transformação se efetua, portanto, de acordo com leis objetivas, que independem da consciência ou das intenções dos participantes. Que a concorrência reduz ao nível geral os lucros que excedem a taxa geral, subtraindo assim ao primeiro apropriador industrial o mais-valor que ultrapassa a média, é algo que não oferece nenhuma dificuldade teórica. Na prática, porém, isso ocorre porque as esferas de produção que possuem mais-valor excedente, isto é, que apresentam um elevado capital variável e um baixo capital constante, isto é, com um capital de composição inferior, são precisamente, por sua natureza, aquelas que só se submetem tardiamente ao sistema capitalista, e mesmo assim da maneira mais incompleta – sobretudo, a agricultura. Em contrapartida, no que diz respeito à elevação dos preços de produção acima dos valores das mercadorias, a qual é necessária para elevar o mais-valor deficitário contido nos produtos da esfera com capital de composição superior ao nível da taxa média de lucro, isso apresenta enormes dificuldades teóricas, mas na prática, como vimos, realiza-se com extrema facilidade e rapidez. Pois as mercadorias dessa classe, quando são produzidas pela primeira vez de maneira capitalista e ingressam no comércio capitalista, entram em concorrência com mercadorias do mesmo tipo, fabricadas segundo métodos pré-capitalistas e, por isso, mais caras. Por conseguinte, o produtor capitalista pode, inclusive renunciando a uma parte do mais-valor, continuar a obter a taxa de lucro vigente em sua localidade, taxa que originalmente não guardava uma relação direta com o mais-valor, uma vez que surgira do capital comercial muito antes de haver qualquer produção capitalista, isto é, antes que fosse possível a taxa industrial de lucro.
Naquela época, portanto, a Bolsa era um lugar onde os capitalistas trocavam entre si seus capitais acumulados e que só interessava diretamente aos trabalhadores como nova prova do efeito desmoralizador geral da economia capitalista e como confirmação da doutrina calvinista, segundo a qual a predestinação – aliás, o acaso – decide já nesta vida acerca da salvação ou da perdição eternas, da riqueza, isto é, o gozo e o poder, ou da pobreza, isto é, a penúria e a servidão.
O mesmo vale para o comércio. Leafs, Parsons, Morleys, Morrison, Dillon, todas fundadas. E isso também se aplica ao comércio varejista, e não apenas sob a aparência de cooperação à la “stores” [grandes lojas].
O mesmo com relação aos bancos e outras instituições de crédito, também na Inglaterra. Uma infinidade de novas instituições, todas por ações delimited [de responsabilidade limitada]. Inclusive bancos antigos, como Glyns etc., converteram-se em limited [sociedades limitadas], com sete acionistas privados.
(Conforme o manuscrito.)
[a] O presente trabalho de Engels foi escrito após a publicação do Livro III d’O capital. Como se depreende da carta de Engels a Kautsky, de 21 de maio de 1895, o suplemento ao Livro III deveria aparecer na forma de dois artigos na revista Die Neue Zeit. O primeiro, “Lei do valor e taxa de lucro”, surgiu como réplica a afirmações, presentes na bibliografia econômica burguesa, segundo as quais haveria uma suposta contradição entre os Livros I e III d’O capital. O trabalho foi publicado logo após a morte de Engels, na revista Die Neue Zeit (n. 1-2, 1895-1896, p. 6-11 e 37-44). A tradução italiana apareceu, em versão um pouco reduzida, na revista Critica Sociale, n. 21-4, de 1º e 16 de novembro, bem como de 1º e 16 de dezembro de 1895. No segundo artigo, Engels pretendia examinar o papel significativamente modificado da Bolsa de Valores a partir de 1865. No entanto, jamais chegou a escrevê-lo; existe somente um plano contendo sete pontos. Esse manuscrito é intitulado “A Bolsa. Comentários suplementares ao Livro II d’O capital”. (N. E. A.)
[1] Pouco tempo depois, esse mesmo senhor, “conhecido por sua fama” (para usar as palavras de Heine), também achou oportuno responder a meu prefácio ao Livro III, logo após este ter sido publicado em italiano, em 1895, no primeiro fascículo da revista Rassegna. A resposta se encontra na Riforma Sociale de 25 de fevereiro de 1895. Depois de ter-me cumulado de adulações, que nele são inevitáveis e, por isso mesmo, duplamente asquerosas, declara que jamais tivera a intenção de surrupiar os méritos de Marx quanto à concepção materialista da história. Ele já os teria reconhecido em 1885, isto é, muito de passagem, num artigo de revista. Em contrapartida, insiste em silenciar sobre eles justamente onde mais cabia mencioná-los, a saber, em seu livro sobre o tema, no qual Marx só é citado pela primeira vez na p. 129 e, mesmo assim, apenas a propósito da pequena propriedade fundiária na França. Agora declara, com audácia, que Marx nem sequer seria o autor dessa teoria; se Aristóteles já não a havia insinuado, Harrington sem dúvida nenhuma já teria proclamado em 1665, e, muito antes de Marx, ela já teria sido desenvolvida por uma plêiade de historiadores, políticos, juristas e economistas. Tudo isso se pode ler na edição francesa da obra de Loria. Em suma, Marx seria o plagiador perfeito. Depois de eu ter-lhe impossibilitado que continuasse a jactar-se com seus plágios de Marx, ele afirma arrogantemente que este também se adornava com plumas alheias, tal como ele mesmo. De meus outros ataques, Loria só retoma aquele em que, segundo ele, Marx nunca se propusera escrever um segundo livro d’O capital, muito menos um terceiro. “E agora responde Engels triunfante, jogando contra mim os Livros II e III […] Magnífico! Alegro-me tanto com esses volumes, aos quais devo tantas satisfações intelectuais, que nunca uma vitória me foi tão cara quanto essa derrota de hoje – na hipótese de ter sido uma derrota. Mas o foi, de fato? Será mesmo verdade que Marx tenha escrito, com a intenção de publicar, esse monte de notas desconexas, que Engels coligiu com uma amizade plena de veneração? É realmente lícito supor que Marx […] tenha confiado a essas páginas o coroamento de sua obra e de seu sistema? Será mesmo que Marx teria publicado aquele capítulo sobre a taxa média de lucro, no qual a solução há tantos anos prometida se reduz às mistificações mais desoladoras, ao jogo de frases mais vulgar? É ao menos permitido duvidar disso. […] Isso demonstra, ao que me parece, que Marx, após a publicação de seu esplêndido (splendido) livro, não pretendia dar-lhe um sucessor ou pelo menos tinha a intenção de deixar a seus herdeiros, e fora de sua própria responsabilidade, o acabamento de sua obra gigantesca.”
Assim está escrito na p. 267. Heine não podia falar de seu público de filisteus alemães com maior desprezo do que ao dizer: o autor acaba acostumando-se com seu público, como se este fosse um ser racional. Pelo que deve, então, o illustre Loria tomar seu público?
Por fim, uma nova carga de encômios, que desaba sobre mim, este infeliz. E, então, nosso Sganarelle compara-se ao Balaão, que teria vindo para amaldiçoar, mas de cujos lábios, contra sua vontade, borbulhavam apenas “palavras de bênção e de amor”. O bom Balaão se fazia notar sobretudo por cavalgar um burro mais inteligente que o dono. Dessa vez, é evidente que Balaão deixou seu burro em casa.
[b] Isto é, como “sociedade por ações”. (N. T.)