Os juros, como vimos nos dois capítulos anteriores, são originalmente, e, na realidade, continuam a ser, apenas uma parte do lucro, isto é, do mais-valor que o capitalista ativo, industrial ou comerciante, que não investe capital próprio, mas capital emprestado, precisa pagar ao proprietário e prestamista desse capital. Se ele só emprega capital próprio, não se efetua tal repartição do lucro, que pertence inteiramente a ele. Com efeito, quando os proprietários do capital o empregam por si mesmos no processo de reprodução, eles não concorrem para a determinação da taxa de juros, e nisso já se revela como a categoria dos juros – impossível sem a determinação de uma taxa – é em si mesma alheia ao movimento do capital industrial.
“The rate of interest may be defined to be that proportional sum which the lender is content to receive, and the borrower to pay, for a year or for any longer or shorter period for the use of a certain amount of moneyed capital [...] when the owner of capital employs it actively in reproduction, he does not come under the head of those capitalists, the proportion of whom, to the number of borrowers, determines the rate of interest.”[a] (T. Tooke, Hist.[ory] of Prices etc., from 1793 to 1837, t. 2, Londres, 1857, p. 355)
É a separação dos capitalistas em capitalistas monetários e capitalistas industriais que, na realidade, converte uma parte do lucro em juros e cria, em geral, a categoria dos juros; e a taxa de juros nasce exclusivamente da concorrência entre esses dois tipos de capitalistas.
Enquanto o capital funciona dentro do processo de reprodução – mesmo pressupondo-se que ele pertença ao mesmo capitalista industrial, sem que este tenha de devolvê-lo a nenhum prestamista –, o capitalista industrial não dispõe, como agente privado, desse capital mesmo, mas apenas do lucro que ele pode investir como renda. Enquanto seu capital funciona como capital, ele pertence ao processo de reprodução, encontra-se imobilizado neste último. O capitalista é, com efeito, seu proprietário, mas essa sua condição não lhe permite dispor desse capital de outro modo, enquanto o emprega como capital para a exploração de trabalho. O mesmo ocorre com o capitalista monetário. Enquanto seu capital está emprestado e, portanto, atua como capital monetário, ele lhe rende juros, uma parte do lucro, mas o capitalista não pode dispor dessa parte. Isso se vê perfeitamente quando, tendo emprestado o dinheiro, digamos, por um ou vários anos, ele obtém os juros em certos prazos, mas sem que o capital lhe seja restituído. No entanto, mesmo a devolução deste último é aqui absolutamente indiferente. Quando o prestamista o recebe de volta, ele tem de emprestá-lo novamente, por todo o tempo em que o capital deve funcionar – nesse caso, como capital monetário. Enquanto se encontra em suas mãos, ele não rende juros nem funciona como capital; enquanto rende juros e funciona como capital, ele não se encontra em suas mãos. Disso deriva a possibilidade de emprestar capital por tempo indeterminado. As seguintes observações de Tooke contra Bosanquet são, por isso, completamente falsas. Ele cita [James Whatman] Bosanquet (Metallic, Paper, and Credit Currency, [Londres, P. Richardson, 1842,] p. 73): “Se a taxa de juros fosse rebaixada a 1%, o capital emprestado se encontraria quase no mesmo plano (on a par) do capital próprio”. Tooke comenta essa afirmação com a seguinte anotação marginal:
“Dizer que um capital emprestado a essa taxa de juros ou a uma taxa de juros ainda mais baixa deve ser considerado situado quase no mesmo plano que um capital próprio é uma afirmação tão incomum que não mereceria ser examinada seriamente, se não procedesse de um escritor tão inteligente e tão versado em alguns pontos singulares do tema. Por acaso perdeu ele de vista ou considera pouco importante o fato de que seu pressuposto implica a condição do reembolso do capital?” (T.[homas] Tooke, An Inquiry into the Currency Principle, 2. ed., Londres, [Longman, Brown, Green, and Longmans,] 1844, p. 80)
Fossem os juros = 0, o capitalista industrial que toma capital emprestado não se diferenciaria em nada daquele que trabalha com capital próprio. Ambos embolsariam o mesmo lucro médio, e o capital, seja emprestado, seja próprio, só funciona como tal quando produz lucro. A condição da restituição do capital não alteraria os termos do problema. Quanto mais a taxa de juros se aproxima de zero, caindo, por exemplo, até 1%, mais o capital emprestado se aproxima do capital próprio. O capital monetário, enquanto existe como tal, tem de ser sempre emprestado de novo, a uma taxa de juros vigente no mercado, digamos, de 1%, e sempre à mesma classe dos capitalistas industriais e comerciais. Enquanto estes funcionam como capitalistas, a diferença entre os que trabalham com capital emprestado e os que o fazem com capital próprio consiste apenas no fato de que os primeiros pagam juros e os segundos, não; isto é, que os primeiros embolsam o lucro integral l e os segundos, apenas l - j, o lucro menos os juros; quanto mais j se aproxima de 0, mais l - j tende a ser = l, ou seja, mais os dois capitais se aproximam. O primeiro tem de restituir o capital e tomá-lo novamente emprestado; o segundo, por todo o tempo em que funcione seu capital, tem de investi-lo sempre de novo no processo de produção, sem poder dispor dele à margem desse processo. A única diferença que ainda resta é o fato evidente de que o primeiro é proprietário de seu capital, e o segundo, não.
A questão que agora se coloca é a seguinte: como explicar que essa divisão puramente quantitativa do lucro em lucro líquido e juros se transforme numa divisão qualitativa? Em outras palavras, como explicar que também o capitalista que emprega capital próprio, e não capital emprestado, inclua uma parte de seu lucro bruto na categoria especial dos juros e, como tal, a calcule separadamente? E que, portanto, todo capital, emprestado ou não, distinga-se conforme seja portador de juros ou renda um lucro líquido?
Compreende-se que nem toda divisão quantitativa fortuita do lucro converte-se, desse modo, numa divisão qualitativa. Suponhamos, por exemplo, que alguns capitalistas industriais se associem para explorar um negócio, distribuindo entre si os lucros de acordo com normas juridicamente estabelecidas. E suponhamos que outros explorem seus respectivos negócios separadamente, sem se associar a ninguém. Esses não calculam seus lucros separando-os em duas categorias, uma parte como lucro individual e outra como lucro da empresa para os sócios inexistentes. Nesse caso, a divisão quantitativa não se converte em qualitativa. Isso só ocorre quando o proprietário consiste casualmente em diversas pessoas jurídicas, mas não quando essa circunstância não se apresenta.
Para responder à pergunta, temos de nos deter um pouco mais no verdadeiro ponto de partida da formação dos juros, isto é, temos de partir do pressuposto de que o capitalista monetário e o capitalista produtivo confrontam-se realmente, não só como pessoas distintas no âmbito jurídico, mas como personagens que representam papéis diferentes no processo de reprodução ou em cujas mãos o mesmo capital percorre de fato um movimento duplo e completamente distinto. Um deles apenas empresta o capital, enquanto o outro o investe produtivamente.
Para o capitalista produtivo que investe capital emprestado, o lucro bruto se divide em duas partes: os juros, que ele precisa pagar ao prestamista, e o excedente sobre os juros, que forma sua própria participação no lucro. Dada a taxa geral de lucro, essa participação se encontra determinada pela taxa de juros; dada a taxa de juros, ela se encontra determinada pela taxa geral de lucro. Além disso, por mais que o lucro bruto, a grandeza efetiva de valor do lucro total, possa diferir do lucro médio em cada caso, a parte que pertence ao capitalista ativo encontra-se determinada pelos juros, já que estes estão fixados pela taxa de juros geral (abstraindo de estipulações jurídicas particulares) e pressupostos como recebidos de antemão, antes de iniciar-se o processo de produção e, portanto, antes que se obtenha seu resultado, o lucro bruto. Vimos que o produto verdadeiramente específico do capital é o mais-valor, que, de maneira mais concreta, é o lucro. Para o capitalista que trabalha com capital emprestado, esse produto não é o lucro, mas o lucro menos os juros, isto é, a parte do lucro que resta para ele após o pagamento dos juros. Essa parte do lucro, portanto, aparece para ele necessariamente como produto de um capital, pelo tempo em que este funciona; e é, para ele, de fato produto de um capital, pois o capitalista só representa o capital como capital em funcionamento. Ele é a personificação do capital na medida em que este funciona, e este só funciona enquanto é investido na indústria ou no comércio para obter um lucro, ou seja, enquanto com ele, e por meio de quem o emprega, realizam-se as operações necessárias a cada ramo de negócios. Diferentemente dos juros, que o capitalista tem de pagar ao prestamista a partir do lucro bruto, a parte restante do lucro que cabe ao capitalista assume necessariamente a forma do lucro industrial ou comercial ou, para designá-lo com uma expressão alemã que engloba ambos, a forma do ganho empresarial [Unternehmergewinn]. Se o lucro bruto equivale ao lucro médio, a grandeza desse ganho empresarial se determina exclusivamente pela taxa de juros. Se o lucro bruto difere do lucro médio, a diferença entre ambos (depois de descontados os juros em ambos os casos) se determina por todas as circunstâncias acidentais que provocam um desvio temporário, seja da taxa de lucro num ramo particular da produção em relação à taxa geral de lucro, seja do lucro obtido por um capitalista isolado em determinada esfera em relação ao lucro médio dessa esfera particular. Ora, vimos que a taxa de lucro dentro do mesmo processo de produção não depende somente do mais-valor, mas de muitas outras circunstâncias: dos preços de compra dos meios de produção, de métodos mais produtivos que a média, da economia do capital constante etc. Saber se – e em que medida – o capitalista compra ou vende acima ou abaixo do preço de produção e, assim, apropria uma porção maior ou menor do mais-valor total no processo de circulação é algo que depende não só do preço de produção, mas de circunstâncias particulares e, em cada transação, do maior ou do menor grau de astúcia e engenho do capitalista. De todo modo, no entanto, a divisão quantitativa do lucro bruto se converte aqui numa divisão qualitativa, e isso tanto mais quanto a própria divisão quantitativa depende daquilo que deve ser dividido, da maneira como o capitalista ativo emprega o capital e do lucro bruto que este lhe rende como capital em funcionamento, isto é, graças a suas funções como capitalista ativo. O capitalista ativo é aqui pressuposto como não proprietário do capital. A propriedade de capital aparece para ele representada pelo prestamista, o capitalista monetário. Por conseguinte, os juros que ele paga a este último aparecem como a parte do lucro bruto reservada à propriedade do capital como tal. Em oposição a isso, a parte do lucro que compete ao capitalista ativo aparece agora como ganho empresarial, derivado exclusivamente das operações ou das funções que ele realiza no processo de reprodução com esse capital e, especialmente, portanto, das funções que ele efetua como empresário na indústria ou no comércio. Para ele, pois, os juros aparecem como mero fruto da propriedade do capital, do capital em si mesmo, abstraído do processo de reprodução do capital, na medida em que este não “trabalha”, não funciona; ao passo que o lucro do empresário aparece para ele, ao contrário, como fruto exclusivo do movimento e da atuação do capital, uma atuação que se lhe apresenta agora como sua própria atividade, em oposição à inatividade, à não participação do capitalista monetário no processo de produção. Essa separação qualitativa entre as duas partes do lucro bruto, que faz com que os juros sejam fruto do capital em si mesmo, da propriedade do capital, sem levar em conta o processo de produção, e o ganho empresarial seja fruto do capital atuante, do capital que atua dentro do processo de produção e, portanto, do papel ativo que o aplicador do capital desempenha no processo de reprodução – essa separação qualitativa não constitui de modo nenhum um entendimento puramente subjetivo do capitalista monetário, de um lado, e do capitalista industrial, de outro. Ela está fundada num fato objetivo, uma vez que os juros fluem para o capitalista monetário, o prestamista, que é mero proprietário do capital e que, portanto, apenas representa a propriedade do capital diante do processo de produção e fora desse processo, ao passo que o ganho empresarial flui para o capitalista ativo, que é não proprietário do capital.
A divisão meramente quantitativa do lucro bruto entre duas pessoas que possuem títulos distintos sobre o mesmo capital – e, portanto, sobre o lucro engendrado por ele – converte-se, assim, numa divisão qualitativa tanto para o capitalista industrial que trabalha com capital emprestado como para o capitalista monetário que não investe diretamente seu capital. Uma parte do lucro se apresenta agora como fruto que, como tal, pertence ao capital na qualidade de juros; a outra parte se apresenta como fruto específico do capital numa forma oposta, isto é, como ganho empresarial. Uma aparece como simples fruto da propriedade do capital, a outra, como fruto da mera operação com o capital, como fruto do capital em ação ou das funções que o capitalista ativo desempenha. Essa ossificação e essa autonomização das duas partes do lucro bruto uma em relação à outra, como se elas emanassem de duas fontes essencialmente distintas, têm agora de fixar-se para toda a classe capitalista e para o capital inteiro. De fato, independentemente de o capital empregado pelo capitalista ativo ser emprestado ou não e de o capital pertencente ao capitalista monetário ser empregado por ele mesmo ou não. O lucro de todo capital, inclusive o lucro médio estabelecido pela compensação dos capitais entre si, divide-se, ou melhor, é separado em duas partes qualitativamente diferentes, autônomas entre si e independentes uma em relação à outra: os juros e o ganho empresarial, ambos determinados por leis especiais. Tanto o capitalista que trabalha com capital próprio quanto o que trabalha com capital emprestado dividem seu lucro bruto nos juros que lhe correspondem como proprietário do capital, como seu próprio prestamista, e no ganho empresarial, que lhe corresponde como capitalista ativo, como capitalista no desempenho de sua função. Para essa divisão, como divisão qualitativa, é indiferente se o capitalista tem realmente de repartir seu lucro bruto com outro ou não. O empregador do capital, ainda que trabalhe com capital próprio, desdobra-se em dois personagens: o simples proprietário do capital e o empregador do capital. Seu próprio capital, com relação aos tipos de lucro que ele gera, decompõe-se em propriedade do capital, capital fora do processo de produção, que rende juros por si só, e capital dentro do processo de produção, que, como capital em ação, gera o ganho empresarial.
Os juros se consolidam, pois, de modo tal que já não se apresentam como uma divisão do lucro bruto indiferente à produção, divisão que só se dá ocasionalmente quando o industrial trabalha com capital alheio. Mesmo que trabalhe com capital próprio, seu lucro se divide em juros e ganho empresarial. Com isso, a divisão puramente quantitativa se converte em divisão qualitativa: ela ocorre independentemente da circunstância fortuita de o industrial ser proprietário ou não proprietário de seu capital. Não se trata simplesmente de alíquotas do lucro distribuídas entre diversas pessoas, mas de duas categorias distintas de lucro, que se encontram numa relação distinta com o capital e, portanto, numa relação com diferentes determinidades do capital.
Ora, é muito simples descobrir as razões pelas quais, tão logo essa divisão do lucro bruto em juros e ganho empresarial se converte numa divisão qualitativa, ela assume esse caráter para o capital total e para a classe capitalista em seu conjunto.
Em primeiro lugar, isso já deriva da circunstância meramente empírica de que a maioria dos capitalistas industriais, ainda que em proporções numéricas distintas, trabalha com capital próprio e emprestado e de que as proporções entre um e outro variam segundo os diferentes períodos.
Em segundo lugar, a conversão de uma parte do lucro bruto na forma dos juros converte sua outra parte em ganho empresarial. Este último é, na verdade, apenas a forma antitética que assume o excedente do lucro bruto sobre os juros, tão logo estes existem como categoria própria. Toda a investigação de como o lucro bruto se desdobra em juros e ganho empresarial reduz-se pura e simplesmente à investigação de como uma parte do lucro bruto se ossifica e se autonomiza como juros. Mas o capital portador de juros existe historicamente como uma forma pronta, dada de antemão, e os juros, portanto, como subforma pronta do mais-valor produzido pelo capital, muito antes de existirem o modo de produção capitalista e as ideias de capital e lucro que lhe correspondem. Isso explica por que, na concepção popular, considera-se o capital monetário, o capital portador de juros, o capital como tal, o capital par excellence. Também explica, por outro lado, a ideia dominante até a época de Massie, de que o que se paga nos juros é o dinheiro. O fato de que o capital emprestado produz juros, seja ele realmente empregado como capital ou não – e mesmo que só seja emprestado para fins de consumo –, reforça a ideia da autonomia dessa forma do capital. A melhor prova da autonomia que, nos primeiros períodos do modo de produção capitalista, os juros apresentam em relação ao lucro, e o capital portador de juros em relação ao capital industrial, é que só a partir de meados do século XVIII descobriu-se (por Massie e, depois dele, por Hume) o fato de que os juros são simplesmente uma parte do lucro bruto e de que tal descoberta se fazia necessária.
Em terceiro lugar, se o capitalista industrial trabalha com capital próprio ou com capital emprestado não altera em nada a circunstância de que ele tem de enfrentar a classe dos capitalistas monetários como uma categoria particular de capitalistas, o capital monetário como uma categoria independente de capital e os juros como a forma autônoma do mais-valor correspondente a esse capital específico.
Considerados qualitativamente, os juros são o mais-valor gerado pela mera propriedade do capital; o mais-valor lançado pelo capital em si mesmo – ainda que seu proprietário se mantenha à margem do processo de reprodução –, ou seja, o mais-valor lançado pelo capital independentemente de seu processo.
Considerada quantitativamente, a parte do lucro que forma os juros não aparece em referência ao capital industrial e comercial como tal, mas ao capital monetário, e a taxa dessa parte do mais-valor, o nível ou a taxa de juros, reafirma essa relação. Pois, em primeiro lugar, a taxa de juros – apesar de sua dependência em relação à taxa geral de lucro – é determinada de maneira independente e, em segundo lugar, porque, tal como o preço de mercado das mercadorias, ela aparece frente à inapreensível taxa de lucro como uma proporção que, apesar de todas as variações, permanece fixa, uniforme, tangível e sempre dada. Se todo o capital se encontrasse nas mãos dos capitalistas industriais, não existiriam juros nem taxa de juros. A forma autônoma que assume a distribuição quantitativa do lucro bruto engendra a distribuição qualitativa. Se compararmos o capitalista industrial com o capitalista monetário, veremos que ele se distingue deste último apenas por seu ganho empresarial, pelo excedente de seu lucro bruto sobre os juros médios, que, em virtude da taxa de juros, aparecem como grandeza empiricamente dada. Se, por outro lado, o compararmos com o capitalista industrial que trabalha com capital próprio, e não com capital emprestado, veremos que ele se diferencia deste último apenas como um capitalista monetário, que embolsa os juros, em vez de pagá-los a outrem. Em ambos os casos, a parte do lucro bruto que se distingue dos juros aparece para ele como ganho empresarial, e os próprios juros aparecem como um mais-valor que o capital gera por si só e que, por conseguinte, ele geraria ainda que não fosse investido produtivamente.
Isso está correto, do ponto de vista prático, para o capitalista individual. Ele pode optar por usar seu capital – não importando se este existe desde o início como capital monetário ou se ainda deve ser convertido em capital monetário – emprestando-o como capital portador de juros ou valorizando-o diretamente como capital produtivo. Mas generalizar esse aspecto, referindo-o a todo o capital da sociedade, como o fazem alguns economistas vulgares, e inclusive defini-lo como fundamento do lucro, é naturalmente um disparate. A ideia de converter o capital total da sociedade em capital monetário, sem que existam pessoas que comprem e valorizem os meios de produção – sob cuja forma se encontra a totalidade do capital, com exceção de uma porção relativamente pequena existente em dinheiro –, é evidentemente absurda. E nela vai implícita uma ideia ainda mais absurda, a de que, com base no modo de produção capitalista, o capital poderia gerar juros sem funcionar como capital produtivo, isto é, sem criar mais-valor, do qual os juros não são mais que uma parte; a ideia de que o modo de produção capitalista poderia mover-se sem a produção capitalista. Se um número desproporcionalmente grande de capitalistas resolvesse converter seu capital em capital monetário, a consequência disso seria uma enorme desvalorização do capital monetário e uma enorme queda da taxa de juros; muitos se veriam imediatamente na impossibilidade de viver de seus juros e, portanto, forçados a reconverter-se em capitalistas industriais. Mas, como já foi dito, isso é, em relação ao capitalista individual, um fato. Por isso, mesmo quando opera com seu capital próprio, a parte de seu lucro médio que equivale aos juros médios é por ele considerada necessariamente fruto de seu capital como tal, separado do processo de produção; e, em oposição a essa parte autonomizada nos juros, ele considera o restante de seu lucro bruto simples ganho empresarial.
Em quarto lugar {lacuna no manuscrito}.
Vimos, pois, que a parte do lucro que o capital ativo tem de pagar ao simples proprietário do capital emprestado converte-se na forma autônoma de uma parte do lucro que, sob o nome de juros, é lançada por todo capital como tal, emprestado ou não. A grandeza dessa parte depende da grandeza da taxa média de juros. Sua origem se revela apenas no fato de que o capitalista ativo, quando é proprietário de seu capital, não contribui – pelo menos de forma ativa – para a determinação da taxa de juros. A divisão puramente quantitativa do lucro entre duas pessoas portadoras de diferentes títulos jurídicos sobre ele converteu-se numa divisão qualitativa, que parece decorrer da própria natureza do capital e do lucro. Pois, como vimos, tão logo uma parte do lucro assume em geral a forma dos juros, a diferença entre o lucro médio e os juros, ou a parte do lucro que excede os juros, converte-se numa forma antitética aos juros, a forma dos juros empresariais. Essas duas formas, os juros e o ganho empresarial, só existem em antítese mútua. Nenhuma das duas se refere, portanto, ao mais-valor, do qual elas não são mais do que partes fixadas em categorias, rubricas ou nomes distintos; referem-se, antes, uma à outra. É porque uma parte do lucro se converte em juros que a outra parte aparece como ganho empresarial.
Por lucro entendemos, aqui, sempre o lucro médio, uma vez que as flutuações, sejam do lucro individual, sejam do lucro em diferentes esferas de produção – e, portanto, as variações quanto à distribuição do lucro médio ou do mais-valor, as quais oscilam de acordo com a luta concorrencial e outras circunstâncias –, são totalmente indiferentes para o caso presente. Isso vale para toda a nossa investigação.
Ora, os juros, como os define Ramsay, são o lucro líquido que a propriedade do capital como tal gera, seja para o simples prestamista que permanece à margem do processo de reprodução, seja para o proprietário que investe produtivamente seu próprio capital. Também neste último caso o lucro líquido é gerado para o proprietário não como capitalista ativo, mas como capitalista monetário, como prestamista de seu próprio capital, como capital portador de juros, a si mesmo como capitalista ativo. Assim como a conversão do dinheiro – e do valor em geral – em capital é o resultado constante do processo de produção capitalista, também sua existência como capital é a condição permanente desse processo. Por meio de sua capacidade de converter-se em meios de produção, ele dispõe constantemente de trabalho não pago e, por isso, converte o processo de produção e circulação das mercadorias em produção de mais-valor para seu possuidor. Os juros são, pois, a expressão do fato de que o valor – o trabalho objetivado em sua forma social geral –, isto é, o valor que no processo efetivo de produção assume a forma de meios de produção, confronta-se como uma potência autônoma com a força viva de trabalho e constitui o meio para se apropriar de trabalho não pago; e de que ele é esse poder na medida em que se confronta com o trabalhador como propriedade alheia. Por outro lado, na forma dos juros apaga-se essa antítese em relação ao trabalho assalariado, pois o capital portador de juros não tem como termo antagônico o trabalho assalariado, mas o capital ativo; o capitalista prestamista confronta-se como tal diretamente com o capitalista que atua de fato no processo de reprodução, mas não com o trabalhador assalariado, que se encontra expropriado dos meios de produção justamente com base na produção capitalista. O capital portador de juros é o capital como propriedade diante do capital como função. Enquanto o capital não funciona, ele não explora os trabalhadores nem assume uma posição antitética em relação ao trabalho.
Por outro lado, o ganho empresarial não se encontra em oposição ao trabalho assalariado, somente aos juros.
Em primeiro lugar, pressupondo o lucro médio como dado, a taxa do ganho empresarial não é determinada pelo salário, mas pela taxa de juros. Ela é alta ou baixa na proporção inversa desta última[72].
Em segundo lugar, o capitalista ativo não deriva seu direito ao ganho empresarial – e, portanto, o próprio ganho empresarial – de sua propriedade sobre o capital, mas da função do capital distinta de sua determinidade como mera propriedade inerte. Isso aparece como antítese diretamente existente tão logo o capitalista opera com capital emprestado, isto é, quando juros e ganho empresarial competem a duas pessoas distintas. O ganho empresarial deriva da função do capital no processo de reprodução, ou seja, das operações, da atividade por meio da qual o capitalista ativo medeia essas funções do capital industrial e do capital-mercadoria. Mas ser representante do capital em funcionamento não constitui uma sinecura, como no caso do representante do capital portador de juros. Sobre a base da produção capitalista, o capitalista dirige tanto o processo de produção como o processo de circulação. A exploração do trabalho produtivo custa um esforço, seja ela realizada pelo próprio capitalista, seja por outrem, em seu nome. Em oposição aos juros, o ganho empresarial se apresenta para o capitalista como independente da propriedade do capital e, mais ainda, como resultado de suas funções de não proprietário, como... trabalhador.
Assim se desenvolve necessariamente em seu cérebro a ideia de que seu ganho empresarial, longe de achar-se em qualquer oposição com o trabalho assalariado e de ser apenas trabalho alheio não pago, representa, antes, seu próprio salário, um salário de supervisão do trabalho, wages of superintendance of labour; um salário maior que o do assalariado comum, 1) por ser um trabalho mais complexo e 2) porque ele mesmo paga seu próprio salário. Que sua função como capitalista consiste em produzir mais-valor, isto é, trabalho não pago, e, além disso, em produzi-lo nas condições mais econômicas é algo que fica completamente esquecido diante do fato antitético de que os juros competem ao capitalista, ainda que ele não desempenhe nenhuma função como capitalista, que seja mero proprietário do capital, e de que, pelo contrário, o ganho empresarial compete ao capitalista ativo, ainda que seja não proprietário do capital com que opera. A forma antagônica das duas partes em que se decompõe o lucro e, portanto, o mais-valor faz com que esqueçamos que ambas não são mais do que partes do mais-valor e de que sua divisão não pode alterar em nada sua natureza, sua origem e suas condições de existência.
No processo de reprodução, o capitalista ativo representa o capital como propriedade alheia diante dos trabalhadores assalariados, e o capitalista monetário, representado pelo capitalista ativo, participa da exploração do trabalho. O fato de que somente como representante dos meios de produção diante dos trabalhadores é possível ao capitalista ativo fazer com que os trabalhadores trabalhem para ele, ou que os meios de produção funcionem como capital, é esquecido na antítese entre a função do capital no processo de reprodução e a mera propriedade do capital fora do processo de reprodução.
Com efeito, nas formas que as duas partes do lucro – i.e., do mais-valor – assumem, as formas dos juros e do ganho empresarial, não está expressa nenhuma relação com o trabalho, uma vez que essa relação só existe entre ele e o lucro ou, antes, entre ele e o mais-valor, como a soma, o todo, a unidade dessas duas partes. A proporção em que o lucro é repartido e os diferentes títulos jurídicos que servem de base a essa repartição pressupõem o lucro como algo dado, pressupõem sua existência. Se, portanto, o capitalista é proprietário do capital com que opera, ele embolsa o lucro ou o mais-valor integral; para o trabalhador, é absolutamente indiferente se o capitalista procede desse modo ou se é obrigado a ceder uma parte a um terceiro como proprietário legal do capital. Os fundamentos que regem a divisão do lucro entre duas classes de capitalistas transformam-se, assim, nos fundamentos da existência do lucro – ou do mais-valor – que tem de ser dividido e que o capital como tal extrai do processo de reprodução, independentemente de toda divisão ulterior. Do fato de que os juros se contrapõem ao ganho empresarial, e este, por sua vez, contrapõe-se aos primeiros, e do fato de que eles se contrapõem apenas um ao outro, mas não ao trabalho, segue-se que o ganho empresarial mais os juros, isto é, o lucro e, mais amplamente, o mais-valor, baseia-se em quê? Nessa forma antitética de suas duas partes! Mas o lucro é produzido antes que nele se opere essa divisão e antes que se possa falar dela.
O capital portador de juros só se conserva pelo tempo em que o capital emprestado se transforma realmente em capital e produz um excedente, do qual os juros são uma parte. Isso não anula o fato de que a capacidade de produzir juros, independentemente do processo de produção, é algo inerente a esse capital. A força de trabalho só conserva sua qualidade criadora de valor quando atua e se realiza no processo de trabalho; e isso não exclui o fato de que uma tal força, em si mesma, é potencialmente uma atividade criadora de valor e de que, como tal, ela não deriva do processo de produção, mas o antecede. Ela é comprada como capacidade de criar valor. Também pode ocorrer que alguém a compre e não a coloque para trabalhar produtivamente; por exemplo, empregando-a para fins puramente pessoais, para o serviço doméstico etc. O mesmo ocorre com o capital. Compete ao prestamista decidir se ele o empregará ou não como capital, ou seja, se colocará ou não efetivamente em ação sua qualidade inerente de produzir mais-valor. O que ele paga é, em ambos os casos, o mais-valor potencial contido no capital-mercadoria.
* * *
Passemos agora ao exame mais detalhado do ganho empresarial.
Uma vez que o atributo social específico do capital no interior do modo de produção capitalista – ser propriedade que permite dispôr do trabalho alheio – é fixado, de modo que os juros aparecem como a parte do mais-valor gerada pelo capital nessa inter-relação, a outra parte do mais-valor – o ganho empresarial – aparece necessariamente como algo que não provém do capital como tal, mas do processo de produção, separado de seu atributo social específico, cujo modo particular de existência já está expresso no termo “juros de capital”. O processo de produção, separado do capital, é simplesmente processo de trabalho. O capitalista industrial, como personagem distinto do proprietário do capital, não aparece, portanto, como capital operante, mas como funcionário, independentemente do capital, ou como um simples agente do processo de trabalho em geral, como um trabalhador e, de fato, um trabalhador assalariado.
Os juros, por si, expressam precisamente a existência capitalista das condições de trabalho como capital, em sua antítese social com o trabalho e em sua transformação num poder pessoal, diante do trabalho e sobre o trabalho. Eles representam a mera propriedade do capital como meio de se apropriar de produtos do trabalho alheio. Mas apresentam esse caráter do capital como algo que lhe corresponde fora do processo de produção e que não é de modo nenhum resultado da determinidade especificamente capitalista desse processo de produção. Eles o representam não em contraposição direta ao trabalho, mas sem nenhuma relação com o trabalho, como mera relação de um capitalista com outro. Portanto, como uma determinação externa e indiferente à relação entre o capital e o trabalho. Por isso, nos juros, na forma específica de lucro em que o caráter antitético do capital assume uma expressão autônoma, isso se dá de tal maneira que essa antítese é totalmente apagada e abstraída. Os juros são uma relação entre dois capitalistas, não entre capitalista e trabalhador.
Por outro lado, essa forma de juros confere à outra parte do lucro a forma qualitativa do ganho empresarial e, além disso, do salário de supervisão. As funções específicas que o capitalista como tal tem de desempenhar, e que lhe competem em contraste com os trabalhadores e em oposição a eles, são apresentadas como meras funções do trabalho. Ele cria mais-valor não porque trabalha como capitalista, mas porque, abstraindo de sua qualidade como capitalista, ele também trabalha. Essa parte do mais-valor não é mais, portanto, mais-valor, mas seu oposto: um equivalente pelo trabalho realizado. Como o caráter estranhado do capital, sua oposição ao trabalho, é relegado a um lugar externo ao processo efetivo de exploração, mais precisamente, ao capital portador de juros, esse mesmo processo de exploração aparece como mero processo de trabalho em que o capitalista atuante apenas desempenha um trabalho distinto daquele do trabalhador, de modo que o trabalho do explorador e o trabalho que é explorado aparecem de maneira idêntica, ambos como trabalho. O trabalho do explorador é tão trabalho quanto o trabalho que é explorado. A forma social do capital recai sobre os juros, porém expressa numa forma neutra e indiferente; a função econômica do capital recai sobre o ganho empresarial, porém abstraída do específico caráter capitalista dessa função.
Na consciência do capitalista, produz-se aqui o mesmo fenômeno que vimos na seção II deste livro, ao tratarmos das razões para a compensação que serve de base à formação do lucro médio. Essas razões para a compensação, que entram como fatores determinantes na distribuição do mais-valor, são distorcidas na mente do capitalista, onde aparecem como razões do surgimento e razões justificadoras (subjetivas) do lucro.
A concepção do ganho empresarial como salário do trabalho de supervisão, que tem origem na antítese entre o ganho empresarial e os juros, é reforçada pelo fato de que uma parte do lucro pode ser separada como salário – e, na realidade, é – ou, ao contrário, pelo fato de que uma parte do salário aparece sobre a base do modo de produção capitalista como parte integrante do lucro. Essa parte, como A. Smith demonstrou corretamente, apresenta-se de forma pura, independente e totalmente separada, por um lado, do lucro (como soma de juros e ganho empresarial) e, por outro lado, daquela parte do lucro que, depois de deduzidos os juros, resta como o assim chamado ganho empresarial no salário do dirigente naqueles ramos de negócio cuja extensão etc. permite uma divisão do trabalho suficientemente ampla para justificar um salário especial para o dirigente.
O trabalho de supervisão e gerência é naturalmente requerido onde quer que o processo direto de produção assuma a forma de um processo socialmente combinado, e não a de um trabalho isolado de produtores independentes[73]. Mas ele tem uma dupla natureza.
Por um lado, todo trabalho que envolve a cooperação de muitos indivíduos exige que uma vontade organizadora coordene e unifique o processo, além de funções que se apliquem não a operações parciais, mas à atividade total da oficina, de modo muito semelhante à função do maestro de uma orquestra. Esse é um trabalho produtivo, que tem de ser executado em todo modo de produção combinado.
Por outro lado – abstraindo de todo departamento comercial –, esse trabalho de supervisão necessariamente surge nos modos de produção que repousam sobre o antagonismo entre o trabalhador como produtor direto e o proprietário dos meios de produção. Quanto maior é esse antagonismo, maior é o papel desempenhado pela supervisão[b]. Por isso, ela atinge seu auge no sistema escravista[74]. Ela também é imprescindível no modo de produção capitalista, uma vez que nele o processo de produção é, ao mesmo tempo, um processo de consumo da força de trabalho pelos capitalistas. Exatamente como nos Estados despóticos, o trabalho de supervisão e a intervenção do governo envolvem tanto a realização de atividades comuns, que derivam da natureza de todas as comunidades, quanto as funções específicas decorrentes do antagonismo entre o governo e a massa popular.
Nos escritores antigos, que tinham diante de si o sistema escravista, os dois lados do trabalho de supervisão encontram-se inseparavelmente unidos na teoria, do mesmo modo como eram na prática, e tão intimamente combinados quanto nos economistas modernos, que concebem o modo de produção capitalista como o modo de produção absoluto. Por outro lado, como mostrarei a seguir com a ajuda de um exemplo, os apologistas do sistema escravista moderno se servem do trabalho de supervisão como justificativa da escravidão tanto quanto os outros economistas o utilizam para justificar o trabalho assalariado.
O villicus, na época de Catão:
“No auge da escravidão rural[c] (familis rustica), o agricultor (villicus, derivado de villa [fazenda]), que ganha e despende, compra e vende, recebe instruções do patrão e, na ausência deste último, dá ordens e aplica punições […]. O agricultor desfrutava naturalmente de uma liberdade de ação maior que a dos demais servos; os livros de Magão aconselhavam que ao agricultor fosse permitido casar-se, criar filhos e ter seus próprios fundos, e Catão recomendava que ele se casasse com a agricultora; apenas ele podia almejar a liberdade de seu senhor, em caso de bom comportamento. De resto, formavam todos um estamento doméstico comum […]. Cada escravo, incluindo o próprio agricultor, obtinha seus meios de subsistência à custa de seu senhor, em prazos determinados, e com esses meios ele tinha de sobreviver […]. A quantidade variava de acordo com o trabalho, razão pela qual o agricultor, cujo trabalho era mais leve que o dos demais servos, recebia uma ração menor que a destes últimos.” ([Theodor] Mommsen, Römische Geschichte, 2. ed., [Berlim, Weidmann,] 1856, p. 808-10)
Aristóteles: “Ο γὰρ δεσπότης οὐκ ἐν τῷ κτᾶσϑαι τοὺς δούλους, ἀλλ᾿ἐν τῷ χρῆσϑαι δούλοις” (“Pois o senhor” – o capitalista – “não atua como tal na aquisição de escravos” – na propriedade do capital que lhe permite comprar trabalho – “mas na utilização dos escravos” – na utilização de trabalhadores, que hoje são assalariados, no processo de produção). “Εστι δ᾿ αὕτη ἡ ἐπιστήμη οὐδὲν μέγα ἔχουσα οὐδὲ σεμνόν” (“Mas essa ciência não tem nada de grandioso ou sublime”) “ἅ γὰρ τὸν δοῦλον ἐπίστασϑαι δεῖ ποιεῖν, ἐκεῖνον δεῖ ταῦτα ἐπίστασϑαι ἐπιτάττειν”. (“Mas o que o escravo tem de ser capaz de fazer, o senhor tem de ser capaz de ordenar.”) “Διὸ ὅσοιςἐξουσία μὴ αὐτοὺς κακοπαϑεῖν, ἐπίτροποσ λαμβάνει ταύτην τὴν τιμήν, αὐτοὶ δὲ πολιτεύονται ἢ φιλοσοφοῦθσιν” (“Onde quer que os senhores não estejam obrigados a cumprir eles mesmos essa tarefa, o agricultor assume essa honra, enquanto os senhores dedicam-se aos assuntos do Estado ou a filosofar”). (Aristóteles, Respubl.[ica] [Política], Bekker, lib. I, 7.)
Que a supremacia nos terrenos político e econômico reserva aos detentores do poder as funções do governo e que, portanto, no terreno econômico, eles têm de saber consumir a força de trabalho é o que Aristóteles diz em tão poucas palavras, acrescentando que não se deve conceder demasiada importância a esse trabalho de supervisão, já que o senhor, se dispõe de riqueza suficiente, concede a um supervisor a “honra” dessa faina.
O trabalho de direção e supervisão – quando não é uma função especial, determinada não pela natureza de todo trabalho social combinado, mas pelo antagonismo entre o proprietário dos meios de produção e o proprietário da simples força de trabalho, sendo indiferente se esta é comprada juntamente com o próprio trabalhador, como é o caso no sistema escravista, ou se o próprio trabalhador vende sua força de trabalho, de modo que o processo de produção aparece também como um processo mediante o qual o capital consome seu trabalho –, função surgida da servidão dos produtores diretos, foi frequentemente usado como justificativa desse mesmo regime de servidão, e a exploração, a apropriação de trabalho alheio, não pago, foi apresentada com a mesma frequência como o salário correspondente ao proprietário do capital. Nesse âmbito, ninguém conseguiu superar um defensor da escravidão nos Estados Unidos, o advogado O’Connor, que num comício em Nova York, no dia 19 de dezembro de 1859, disse, sob a bandeira: “Justiça para o Sul!”.
“Now, gentlemen” [“Ora, cavalheiros”], dizia, entre grandes aplausos. “A essa condição de servidão o negro está destinado por natureza [...]. Ele é forte e vigoroso para o trabalho, mas a natureza que lhe deu esse vigor privou-o ao mesmo tempo tanto da inteligência para governar quanto da vontade de trabalhar.” (Aplauso.) “Ambas lhe foram negadas. E a mesma natureza que o privou da vontade de trabalhar deu a ele um senhor, encarregado de coagi-lo e fazer dele – no clima ao qual ele estava adaptado – um servidor útil tanto para si mesmo como para o senhor que o governa [...]. Afirmo que não constitui injustiça nenhuma deixar o negro na condição em que a natureza o colocou e dar a ele um senhor que o governe [...], tampouco significa privá-lo de quaisquer de seus direitos se o obrigamos a trabalhar em retribuição, a pagar a seu senhor uma justa compensação pelo trabalho e pelo talento que este empregou em governá-lo e torná-lo útil para si mesmo e para a sociedade.”
Ora, o trabalhador assalariado, assim como o escravo, também necessita de um senhor que o faça trabalhar e que o governe. Estando pressuposta essa relação de domínio e servidão, é justo que o trabalhador assalariado se veja obrigado a produzir seu próprio salário e, além disso, também o salário de supervisão, uma compensação pelo trabalho de governo e vigilância sobre ele, e pague “a seu senhor uma justa compensação pelo trabalho e pelo talento que este empregou em governá-lo e torná-lo útil para si mesmo e para a sociedade”.
O trabalho de supervisão e direção, na medida em que deriva do caráter antagônico, da supremacia do capital sobre o trabalho, e, por conseguinte, sendo comum a todos os modos de produção que, tal como o capitalista, se baseiam no antagonismo de classes, encontra-se direta e inseparavelmente vinculado às funções produtivas que todo o trabalho social combinado impõe a determinados indivíduos como um trabalho especial. O salário de um epítropos[d], ou do régisseur, como era chamado na França feudal, separa-se completamente do lucro e assume também a forma do salário que remunera o trabalho qualificado, tão logo a atividade é realizada numa escala suficientemente grande para poder pagar um tal diretor (manager), ainda que, nem por isso, nossos capitalistas industriais se dediquem “aos assuntos do Estado ou a filosofar”.
Que “a alma de nosso sistema industrial” não são os capitalistas industriais, mas os managers, é algo que o sr. Ure já nos havia dito[75]. Quanto à parte comercial do negócio, já dissemos o que devia ser dito na seção anterior [p. 330-2].
A própria produção capitalista fez com que o trabalho de supervisão, apartado da propriedade do capital, se tornasse facilmente disponível. Tornou-se portanto inútil que o capitalista se ocupasse desse trabalho de supervisão. Um maestro não necessita de modo nenhum ser o proprietário dos instrumentos da orquestra, tampouco entre suas funções de maestro se encontra a de determinar o “salário” dos demais músicos. As fábricas cooperativas fornecem a prova de que o capitalista tornou-se tão supérfluo como funcionário na produção quanto ele mesmo, do alto de sua superioridade, considera supérfluo o grande proprietário fundiário. Na medida em que o trabalho do capitalista não deriva do processo de produção como processo puramente capitalista e, portanto, [não] se extingue por si só juntamente com o capital; na medida em que ele não se limita à função de explorar trabalho alheio; portanto, na medida em que ele resulta da forma do trabalho como trabalho social, da combinação e da cooperação de muitos para a obtenção de um resultado comum, o trabalho do capitalista é tão independente do capital quanto o é essa forma mesma, tão logo ela rompe o envólucro capitalista. Dizer que esse trabalho é necessário como trabalho capitalista, como função do capitalista, é o mesmo que dizer que o vulgo é incapaz de conceber as formas que vão se desenvolvendo no curso do modo de produção capitalista, separadas e libertas de seu caráter capitalista antagônico. Comparado ao capitalista monetário, o capitalista industrial é um trabalhador, mas um trabalhador no sentido de capitalista, isto é, um explorador do trabalho alheio. O salário que ele reivindica e recebe por esse trabalho é exatamente igual à quantidade de trabalho alheio apropriada e, na medida em que ele realiza o esforço requerido para a exploração, depende diretamente do grau de exploração desse trabalho, e não do grau de esforço que essa exploração exige e que ele pode transferir a um diretor em troca de uma remuneração moderada. Depois de cada crise, encontra-se nos distritos fabris ingleses um bom número de ex-fabricantes que, por baixos salários, supervisionam as mesmas fábricas das quais antes eram os donos, mas agora como diretores dos novos proprietários, que são frequentemente seus credores[76].
O salário de administração, tanto para os diretores comerciais como para os diretores industriais, aparece completamente separado do ganho empresarial, tanto nas fábricas cooperativas dos trabalhadores como nas empresas capitalistas por ações. A separação entre o salário de administração e o ganho empresarial, que nos demais casos aparece como algo fortuito, é aqui constante. Na fábrica cooperativa desaparece o caráter antagônico do trabalho de supervisão, uma vez que o diretor da fábrica é pago pelos trabalhadores, em vez de representar o capital perante eles. As empresas por ações – que se desenvolvem com o sistema de crédito – tendem a separar cada vez mais esse trabalho administrativo, como função, da posse do capital, seja próprio, seja emprestado, do mesmo modo que, com o desenvolvimento da sociedade burguesa, as funções judiciais e administrativas separam-se da propriedade fundiária, da qual eram atributos na época do feudalismo. Enquanto, de um lado, o capitalista ativo se confronta com o simples proprietário do capital, com o capitalista monetário, e, mediante o desenvolvimento do crédito, esse mesmo capital monetário assume um caráter social, sendo concentrado em bancos e emprestado por estes últimos, e não por seus proprietários diretos, e enquanto, por outro lado, o simples diretor de uma empresa, que não possui o capital sob título nenhum, nem como empréstimo nem sob qualquer outra forma, desempenha todas as funções reais que correspondem ao capitalista ativo como tal, quem permanece no processo de produção é apenas o funcionário; o capitalista desaparece como personagem supérfluo.
Pelos balanços[77] das fábricas cooperativas na Inglaterra, vemos que – depois de deduzido o salário do diretor, que, tal como o salário dos demais trabalhadores, constitui uma parte do capital variável desembolsado – o lucro por eles obtido é superior ao lucro médio, apesar de, às vezes, eles pagarem juros muito mais altos que os fabricantes privados. A causa do lucro mais alto reside, em todos esses casos, na maior economia na aplicação do capital constante. Mas o que nos interessa é que o lucro médio (= juros + ganho empresarial) apresenta-se aqui, de modo fático e palpável, como uma grandeza totalmente independente do salário de administração. Por ser o lucro, nesse caso, superior ao lucro médio, também o ganho empresarial é maior que o normal.
Esse mesmo fato se revela em algumas empresas capitalistas por ações – por exemplo, nos bancos por ações (Joint Stock Banks). O London and Westminster Bank pagou, em 1863, 30% de dividendos anuais; o Union Bank of London e outros, 15%. Do lucro bruto descontam-se aqui, além dos salários dos gerentes, os juros pagos pelos depósitos. O alto lucro se explica, nesse caso, pela pequena proporção do capital desembolsado em relação aos depósitos. Por exemplo, no London and Westminster Bank, 1863: capital desembolsado, £1.000.000; depósitos, £14.540.275. No Union Bank of London, 1863: capital desembolsado, £600.000; depósitos, £12.384.173.
A confusão entre ganho empresarial e salário de supervisão ou de administração derivou da forma antagônica que o excedente do lucro sobre os juros assume em oposição a este último. Subsequentemente, desenvolveu-se a partir da tendência apologética de apresentar o lucro não como mais-valor, isto é, não como trabalho não pago, mas como salário que o próprio capitalista recebe pelo trabalho que realiza. Diante disso, os socialistas logo passaram a exigir que o lucro fosse reduzido ao que ele teoricamente deveria ser, isto é, a um simples salário de supervisão. Essa reivindicação resultava mais desagradável para a apologética teórica à medida que, por um lado, esse salário de supervisão, como todos os outros salários, encontrava seu nível determinado e seu preço de mercado em consequência da formação de uma numerosa classe de diretores industriais e comerciais[78]; por outro lado, à medida que, como todo salário pago ao trabalho especializado, ele decrescia em consequência do desenvolvimento geral que faz baixar os custos de produção da força de trabalho especificamente qualificada[79]. Com o desenvolvimento da cooperação da parte dos trabalhadores, das empresas por ações da parte da burguesia, desapareceu o último pretexto para a confusão do lucro do empresário com o salário de administração, e o lucro revelou ser também na prática aquilo que ele já era indiscutivelmente na teoria: simples mais-valor, valor pelo qual não se paga equivalente nenhum, trabalho realizado e não pago; de maneira que o capitalista atuante explora realmente o trabalho e, quando opera com capital emprestado, divide o fruto de sua exploração em juros e lucro do empresário, que é o excedente do lucro sobre os juros.
Sobre a base da produção capitalista desenvolve-se nas empresas por ações uma nova especulação com o salário de administração, que cria, ao lado e acima dos verdadeiros diretores, toda uma série de conselhos de administração e supervisão e, assim, faz com que a administração e a inspeção se convertam em mero pretexto para o saqueio dos acionistas e o autoenriquecimento. Sobre isso, encontramos detalhes muito curiosos em The City or the Physiology of London Business; with Sketches on Change, and the Coffee Houses, Londres, 1843.
“Quanto ganham os banqueiros e os comerciantes pela direção de oito ou nove companhias distintas pode ser constatado com base no seguinte exemplo: o balanço privado do senhor Timothy Abraham Curtis, apresentado ao tribunal de falências por ocasião de sua bancarrota, exibia uma renda entre £800 e £900 anuais, obtida com o cargo de direção. Como o senhor Curtis fora diretor do Banco da Inglaterra e da Companhia das Índias Orientais, qualquer sociedade por ações considerava como um prêmio tê-lo como diretor.” (p. 82)
A remuneração dos diretores dessas sociedades é no mínimo um guinéu (21 marcos) por sessão semanal. Os debates perante o tribunal de falências mostram que esse salário de supervisão costuma ser inversamente proporcional à supervisão realmente realizada por esses diretores nominais.
[a] “A taxa de juros pode ser definida como aquela soma proporcional que o prestamista deve receber e que o prestatário deve pagar pelo uso de certa quantidade de capital monetário durante um ano ou um período mais longo ou mais curto […]. Quando o proprietário do capital o emprega ativamente na reprodução, ele não conta entre aqueles capitalistas, cuja proporção em relação ao número de prestatários determina a taxa de juros.” (N. T.)
[72] “The profits of enterprise depend upon the net profits of capital, not the latter upon the former” [“O ganho empresarial depende do lucro líquido do capital, e não o inverso”] ([George] Ramsay, [An Essay on the Distribution of Wealth, Edimburgo, Adam and Charles Black, 1836,] p. 214. Para ele, net profits são sempre = juros).
[73] “Superintendence is here [...] completely dispensed with” [“A supervisão é, aqui” (no proprietário da fazenda), “inteiramente dispensável”] (J.[ohn] E.[lliott] Cairnes, The Slave Power, Londres, [Parker, Son, and Bourn,] 1862, p. 48).
[b] Na primeira edição, “trabalhador-supervisão”. Alterado de acordo com o manuscrito de Marx. (N. E. A.)
[74] “If the nature of the work requires that the workmen [...] should be dispersed over an extended area, the number of overseers, and, therefore, the cost of the labour which requires this supervision, will be proportionately increased” [“Se a natureza do trabalho exigir que os trabalhadores” (especialmente os escravos) “sejam distribuídos sobre uma extensa área, isso provocará um aumento do número de supervisores e, com isso, o custo do trabalho que exige essa supervisão aumentará na mesma proporção”] ([John Elliott] Cairnes, The Slave Power, cit., p. 44).
[c] Na primeira edição e no manuscrito de Marx, “economia escravista rural”. (N. E. A.)
[d] Na Grécia Antiga, capataz ou vigilante do trabalho. (N. T.)
[75] A.[ndrew] Ure, Philos.[ophy] of Manufactures, v. 1, tradução francesa, 1836, p. 68, onde esse Píndaro dos fabricantes dá ao mesmo tempo o testemunho de que a maior parte dos fabricantes não tem a menor noção do mecanismo que põe em movimento.
[76] Num caso de que tomei conhecimento, ocorrido após a crise de 1868, um fabricante falido tornou-se empregado assalariado de seus antigos trabalhadores. Após a falência, a fábrica passou a ser operada por uma cooperativa de trabalhadores, e seu antigo dono foi empregado como diretor. (F. E.)
[77] Os balanços aqui citados não ultrapassam o ano de 1864, uma vez que o balanço seguinte foi escrito em 1865. (F. E.)
[78] “Masters are labourers as well as their journeymen. In this character their interest is precisely the same as that of their men. But they are also either capitalists, or the agents of capitalists, and in this respect their interest is decidedly opposed to the interest of the workmen” [“Os mestres são tão trabalhadores quanto seus oficiais. Nesse sentido, seu interesse é exatamente o mesmo que o de seus homens. Além disso, eles também são capitalistas, ou agentes de capitalistas, e, sob esse aspecto, seus interesses são frontalmente opostos ao interesse dos trabalhadores”] ([Thomas] Hodgskin, Labour Defended against the Claims of Capital etc., Londres, 1825, p. 27). “The wide spread of education among the journeymen mechanics of this country diminishes daily the value of the labour and skill of almost all masters and employers by increasing the number of persons who possess their peculiar knowledge” [“A ampla difusão da cultura entre os operários industriais deste país reduz diariamente o valor do trabalho e da perícia de quase todos os mestres e empresários, ao aumentar o número de pessoas que possuem o conhecimento peculiar destes últimos”] (ibidem, p. 30).
[79] “The general relaxation of conventional barriers, the increased facilities of education tend to bring down the wages of skilled labour instead of raising those of the unskilled” [“O relaxamento geral das barreiras convencionais e as maiores facilidades de educação tendem a abaixar os salários dos trabalhadores qualificados, em vez de aumentar aqueles dos trabalhadores não qualificados”] (J.[ohn] S.[tuart] Mill, Princ.[iples] of Pol.[itical] Econ.[omy], v. 1, 2. ed., Londres, 1849, p. 463).