As únicas dificuldades que temos de abordar aqui, em relação ao sistema de crédito, são as seguintes:
Primeira: a acumulação do capital monetário. Até que ponto ela é um signo de acumulação efetiva de capital, isto é, de reprodução em escala ampliada, e até que ponto não o é? A assim chamada pletora de capital, termo que só se utiliza com referência ao capital portador de juros, isto é, ao capital monetário, não é mais que um modo especial de designar a superprodução industrial ou constitui um fenômeno particular ao lado dela? Coincide essa pletora, esse excesso de oferta de capital monetário, com a existência de massas de dinheiro estagnado (lingotes, moedas de ouro e cédulas bancárias), de modo que essa superabundância de dinheiro real seja expressão e forma externa daquela pletora de capital de empréstimo?
Segunda: até que ponto a escassez de dinheiro, isto é, de capital de empréstimo, expressa uma escassez de capital real (de capital-mercadoria e capital produtivo)? Até que ponto ele coincide, por outro lado, com a escassez de dinheiro como tal, com a escassez de meios de circulação?
Em nossa análise da forma peculiar da acumulação do capital monetário e da riqueza monetária em geral, vimos que ela se reduziu à acumulação de títulos de propriedade sobre o trabalho. A acumulação do capital da dívida pública revelou-se como sendo apenas um aumento na classe de credores do Estado, que detêm o privilégio de retirar antecipadamente para si certas somas sobre a massa dos impostos públicos[6]. Por meio desses fatos, nos quais até uma acumulação de dívidas pode aparecer como acumulação de capital, é revelado a que extremo de distorção chega o sistema de crédito. Esses títulos de dívida, que são emitidos sobre o capital originalmente emprestado e gasto há muito tempo, essas duplicatas de papel de um capital já consumido, servem para seus possuidores como capital na medida em que são mercadorias que podem ser vendidas e, com isso, reconvertidas em capital.
Como também vimos, os títulos de propriedade sobre sociedades por ações, ferrovias, minas etc., com efeito, dão direito a um capital real, mas não conferem a quem os possui nenhum poder de dispor desse capital; esse capital não pode ser retirado de onde está. Tais títulos apenas dão direito a reclamar uma parte do mais-valor a ser produzido por esse mesmo capital. Mas esses títulos se convertem também em duplicatas de papel do capital real, como se o conhecimento de carga obtivesse um valor separado do da carga e concomitantemente a ele. Convertem-se em representantes nominais de capitais inexistentes. O capital real existe ao lado deles e não muda de mãos pelo fato de essas duplicatas mudarem de mãos. Esses papéis se convertem em formas do capital portador de juros, não só por garantirem certos rendimentos, mas porque, além disso, podem ser vendidos e reembolsados como valores-capitais. Na medida em que a acumulação desses títulos expressa a acumulação de ferrovias, minas, navios a vapor etc., ela representa a ampliação do processo real de reprodução, do mesmo modo que, por exemplo, a ampliação de uma lista de impostos sobre a propriedade imobiliária representa a expansão dessa propriedade. Porém, como duplicatas que, em si mesmas, podem ser negociadas como mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais, elas são ilusórias, e seu montante de valor pode diminuir ou aumentar com absoluta independência do movimento de valor do capital real, sobre o qual são títulos. Seu montante de valor, isto é, sua cotação na Bolsa, tende a subir com a queda da taxa de juros, na medida em que esta, independentemente dos movimentos peculiares do capital monetário, é simples consequência da queda tendencial da taxa de lucro, de modo que essa riqueza imaginária, de acordo com a expressão de valor de cada uma das alíquotas de determinado valor nominal originário, só por essa razão se expande no curso do desenvolvimento da produção capitalista[7].
Ganhar ou perder em virtude das flutuações de preço desses títulos de propriedade e de sua centralização nas mãos dos reis das ferrovias etc. converte-se cada vez mais em obra do acaso, que agora toma o lugar do trabalho como modo original de aquisição da propriedade do capital, e também o lugar da violência direta. Esse tipo de riqueza monetária imaginária constitui uma parte considerável não só da riqueza monetária dos particulares, mas também, como já dissemos, do capital dos banqueiros.
Por acumulação do capital monetário seria possível também entender – mencionamos isso apenas de passagem para liquidar rapidamente o tema – a acumulação da riqueza nas mãos dos banqueiros (prestamistas de dinheiro por profissão), como mediadores entre os capitalistas monetários privados, de um lado, e o Estado, os municípios e os prestamistas reprodutivos, de outro; porque toda a enorme expansão do sistema de crédito, todo o crédito em geral, é explorada por eles como se fosse seu capital privado. Esses sujeitos possuem o capital e a receita sempre em forma de dinheiro ou de direitos que versam diretamente sobre o dinheiro. A acumulação da fortuna dessa classe pode ter lugar de maneira muito distinta da acumulação real, mas, em todo caso, demonstra que essa classe embolsa uma parcela considerável desta última.
Limitemos ainda mais o problema de que tratamos: os títulos estatais, assim como ações e outros títulos de todas as espécies, são esferas de investimento para o capital de empréstimo, para o capital destinado a produzir juros. São formas de empréstimo desse capital. Mas não são, eles mesmos, o capital de empréstimo que se investe neles. Por outro lado, na medida em que o crédito desempenha um papel direto no processo de reprodução, aquilo de que o industrial ou o comerciante necessitam quando querem que se desconte uma letra ou se lhe conceda um empréstimo não são ações nem títulos estatais. Eles precisam é de dinheiro. Por isso, quando não podem obter o dinheiro de outro modo, o que fazem é vender ou penhorar aqueles papéis. É a acumulação desse capital de empréstimo que temos de examinar aqui, em especial a do capital-monetário emprestável. Nesse caso, não se trata de empréstimos de casas, maquinaria ou outro capital fixo. Tampouco se trata dos adiantamentos que os industriais e os comerciantes se fazem reciprocamente em mercadorias, dentro da órbita do processo de reprodução, embora tenhamos de examinar esse ponto em detalhe adiante. Trata-se exclusivamente dos empréstimos em dinheiro que os banqueiros, como intermediários, fazem a industriais e comerciantes.
* * *
Iniciemos, portanto, com o exame do crédito comercial, isto é, do crédito que os capitalistas ocupados na reprodução concedem uns aos outros. Ele forma a base do sistema de crédito. Seu representante é a letra de câmbio, um certificado de dívida com prazo fixo de vencimento, document of deferred payment [documento de pagamento diferido]. Cada um concede crédito com uma das mãos e o obtém com a outra. Abstraiamos, por enquanto, do crédito bancário que constitui um fator completamente distinto, essencialmente diverso. Quando essas letras de câmbio voltam a circular entre os próprios comerciantes como meios de pagamento, mediante endosso de um para o outro, mas sem interferência do desconto, trata-se simplesmente de uma transferência do título de crédito de A para B, que não altera em nada o processo. O que ocorre é apenas a substituição de uma pessoa por outra. Mesmo nesse caso, a liquidação pode operar-se sem que o dinheiro intervenha. O fiandeiro A, por exemplo, tem de pagar uma letra ao corretor de algodão B, e este, ao importador C. Se agora C também se dedica a exportar fios, o que ocorre com bastante frequência, ele pode comprar fio de A pagando-lhe com letras, e o fiandeiro A pode cobrir o corretor B com a própria letra deste último, recebida de C em pagamento, caso em que restará apenas, por fim, um saldo em dinheiro a ser pago. Toda essa transação não faz mais do que mediar a troca de algodão por fios. O exportador representa somente o fiandeiro, o corretor, o plantador de algodão.
Ora, examinando o ciclo desse crédito puramente comercial, cabem duas observações:
Primeira: a liquidação desses débitos recíprocos depende do refluxo do capital, isto é, da operação M-D, que aqui está simplesmente suprimida. Se o fiandeiro recebeu uma letra do fabricante de chita, então este poderá pagar-lhe se, nesse ínterim, vendeu a chita por ele lançada no mercado. Se o especulador de trigo deu uma letra de câmbio a seu agente, então este poderá pagar o dinheiro se, nesse ínterim, conseguiu vender o trigo pelo preço esperado. Esses pagamentos dependem, portanto, da fluidez da reprodução, isto é, dos processos de produção e de consumo. Mas, como os créditos são mútuos, a solvência de cada um depende ao mesmo tempo da solvência dos outros, pois, ao emitir a letra de câmbio, cada um deles confia, seja no retorno do capital em seu próprio negócio, seja no retorno no negócio de um terceiro que tem de lhe pagar uma letra. Abstraindo da perspectiva de retornos do capital, a possibilidade do pagamento dependerá exclusivamente do capital de reserva de que o emissor da letra disponha para poder cumprir seus compromissos, no caso de se retardar o retorno esperado.
Segunda: esse sistema de crédito não exclui a necessidade de pagamentos monetários em espécie. Por um lado, uma grande parte das despesas deve ser sempre paga em espécie, como ocorre com os salários, os impostos etc. Além disso, é possível que B, a quem C pagou com uma letra de câmbio, tenha, antes que essa letra vença, de pagar a A uma letra vencida e, para isso, necessite de dinheiro em espécie. Um ciclo completo de reprodução como o descrito antes, que vai do plantador de algodão até o fiandeiro de algodão, e vice-versa, pode constituir apenas uma exceção e será constantemente interrompido em muitos pontos. Vimos, ao tratar do processo de reprodução (Livro II, seção III), que os produtores de capital constante trocam entre si, em parte, capital constante. Nessas operações, eles podem compensar mais ou menos suas letras de câmbio. O mesmo acontece na linha ascendente da produção, em que o corretor de algodão tem de sacar sobre o fiandeiro; este, sobre o fabricante de chita; este, sobre o exportador; e este, sobre o importador (talvez, novamente, de algodão). Nem sempre ocorre um ciclo das transações e, portanto, uma reversão da linha de créditos. O crédito do fiandeiro contra o tecelão, por exemplo, não é liquidado pelo crédito do fornecedor de carvão contra o fabricante de máquinas; em seu negócio, o fiandeiro jamais tem de conceder créditos compensatórios ao fabricante de máquinas, pois seu produto, o fio, nunca entra como elemento no processo de reprodução deste último. Por isso, esses créditos têm de ser saldados em dinheiro.
Os limites desse crédito comercial, considerados em si mesmos, são: 1) a riqueza dos industriais e comerciantes, isto é, sua possibilidade de dispor de capital de reserva, no caso de haver atraso nos refluxos de capital; 2) esses próprios refluxos, que podem apresentar um atraso temporário. Também pode ocorrer que, nesse ínterim, caia o preço das mercadorias ou que elas se tornem momentaneamente invendáveis pela paralisação dos mercados. Quanto maior for o prazo de vencimento da letra, maior terá de ser o capital de reserva e maior também será a possibilidade de redução ou atraso do refluxo como consequência da queda de preços ou da saturação dos mercados. E, além disso, os retornos serão tanto mais incertos quanto mais a transação inicial tiver sido determinada pela especulação sobre o aumento ou diminuição do preço das mercadorias. Mas é evidente que, com o desenvolvimento da força produtiva do trabalho e, portanto, da produção em grande escala, 1) os mercados se expandem e se distanciam dos centros de produção; 2) por isso, os créditos têm de prolongar-se; e 3) o elemento especulativo tende a dominar cada vez mais as transações. A produção em grande escala e com destino a mercados mais remotos lança o produto total nas mãos do comércio, mas é impossível que o capital da nação se duplique, fazendo com que o comércio por si só seja capaz de comprar e revender, com seu próprio capital, todo o produto nacional. Nesses casos, portanto, o crédito é indispensável; crédito cujo volume cresce ao crescer o montante de valor da produção e cuja duração se prolonga ao aumentar a distância dos mercados. Tem-se aqui um efeito recíproco. O desenvolvimento do processo de produção expande o crédito, e este último leva à expansão das operações industriais e comerciais.
Ao examinarmos esse crédito separadamente do crédito do banqueiro, fica claro que ele aumenta com o volume do próprio capital industrial. Capital de empréstimo e capital industrial são, aqui, idênticos. O capital emprestado é capital-mercadoria, que se destina ou ao consumo individual final, ou à reposição dos elementos constantes do capital produtivo. Por conseguinte, o que aqui aparece como capital emprestado é sempre capital que se encontra em determinada fase do processo de reprodução, mas que muda de mãos mediante a compra e a venda, enquanto o equivalente dele só é pago [pelo] comprador posteriormente, dentro do prazo estipulado. Por exemplo, o algodão é transferido às mãos do fiandeiro mediante uma letra de câmbio; o fio também passa às mãos do fabricante de chita mediante uma letra; a chita é adquirida em troca de uma letra pelo comerciante, e de suas mãos ela passa, mediante o mesmo instrumento de crédito, às mãos do exportador, que as transfere nas mesmas condições a um comerciante da Índia, que a vende para comprar índigo etc. Durante essa transferência de uma mão a outra, efetua-se a transformação do algodão em chita, que, por fim, é transportada para a Índia e trocada por índigo, o qual, por sua vez, é embarcado para a Europa e ali volta a entrar no processo de reprodução. O crédito serve aqui de mediador das diversas fases do processo de reprodução, sem que o fabricante de fios tenha de pagar o algodão, o fabricante de chita, o fio, o comerciante, a chita etc. Nos primeiros estágios do processo, a mercadoria – o algodão – percorre suas distintas fases de produção, e esse trajeto é mediado pelo crédito. Porém, assim que o algodão recebe na produção sua forma final de mercadoria, esse capital-mercadoria passa somente pelas mãos de diversos comerciantes, que efetuam seu transporte a mercados distantes, até que o último elemento dessa cadeia de comerciantes vende, por fim, a mercadoria ao consumidor e, em troca, compra outra mercadoria destinada ao consumo ou ao processo de reprodução. É preciso distinguir aqui, pois, dois estágios: no primeiro, o crédito medeia as fases reais que se sucedem na produção do mesmo artigo; na segunda, ele medeia apenas a transferência do artigo produzido das mãos de um comerciante às mãos de outro, aí incluindo o transporte, isto é, o ato M-D. Também aqui, no entanto, vemos que a mercadoria se encontra sempre, no mínimo, na esfera da circulação, portanto numa das fases do processo de reprodução.
O que aqui se empresta não é jamais um capital inativo, mas capital que nas mãos de seu possuidor tem de mudar de forma, que existe numa forma em que, para ele, é simples capital-mercadoria, isto é, que tem de ser novamente transformado e, pelo menos num primeiro momento, convertido em dinheiro. Portanto, o crédito serve aqui de mediador da metamorfose da mercadoria; não só M-D, mas também D-M e o processo real de produção. Abundância de crédito dentro do ciclo da reprodução – abstraindo do crédito bancário – não significa abundância de capital desocupado, que se oferece para empréstimo e procura um investimento rentável, mas uma grande ocupação de capital no processo da reprodução. O crédito medeia aqui, portanto: 1) na medida em que se consideram os capitalistas industriais, a transição do capital industrial de uma fase a outra, a conexão entre esferas vinculadas da produção; 2) na medida em que se consideram os comerciantes, o transporte e a transferência das mercadorias de mãos, até sua venda definitiva por dinheiro ou sua troca por outras mercadorias.
O máximo de crédito equivale aqui ao investimento mais pleno do capital industrial, isto é, à máxima atividade de sua força de reprodução, sem levar em conta os limites do consumo. Esses limites do consumo são ampliados pela própria atividade do processo de reprodução; esta aumenta, por um lado, o consumo das rendas pelos trabalhadores e pelos capitalistas e, por outro, é idêntica ao esforço do consumo produtivo.
Enquanto o processo de reprodução é contínuo e, com isso, assegura o refluxo do capital, esse crédito perdura e se expande, e sua expansão se baseia na expansão do próprio processo de reprodução. Quando ocorre uma paralisação em consequência de atrasos nos retornos de capital, mercados saturados ou preços em queda, tem-se um excesso de capital industrial, mas numa forma em que não pode desempenhar sua função. Há uma massa de capital-mercadoria, porém invendável. Uma massa de capital fixo, porém em grande parte ociosa, em virtude do estancamento da reprodução. O crédito contrai-se 1) porque esse capital está desocupado, isto é, paralisado numa das fases de sua reprodução, já que não pode completar sua metamorfose; 2) porque foi perdida a confiança na fluidez do processo de reprodução; 3) porque diminui a demanda desse crédito comercial. O fiandeiro que restringe sua produção e tem em seu estoque uma grande massa não vendida de fios não precisa comprar algodão a crédito; o comerciante não precisa comprar mercadorias a crédito, porque as que tem são mais que suficientes.
Por conseguinte, no caso de algum distúrbio nessa expansão, ou mesmo na atividade normal do processo de reprodução, ocorre com isso também uma escassez de crédito, isto é, a obtenção de mercadorias a crédito fica mais difícil. No entanto, a exigência de pagamento à vista e as precauções que se observam nas vendas a crédito são particularmente características daquela fase do ciclo industrial que se segue ao crash. É em plena crise, quando todos têm de vender e não conseguem fazê-lo e, ainda assim, são obrigados a vender para pagar, que a massa, não do capital inativo, à procura de investimento, mas do capital estagnado no processo de reprodução, é a maior, justamente quando a escassez de crédito também é maior que nunca (e, por isso, a taxa de desconto, no crédito bancário, encontra-se em seu nível máximo). O capital já investido está então, de fato, desocupado em grandes quantidades, pois o processo de reprodução está estagnado. As fábricas deixam de funcionar, as matérias-primas se acumulam, os produtos acabados inundam, como mercadorias, o mercado. Nada é mais errôneo, pois, do que culpar a escassez de capital produtivo por essa situação. É justamente nessas épocas que se apresenta uma superabundância de capital produtivo, em parte com relação à escala normal, porém temporariamente reduzida, da reprodução, em parte com relação ao consumo paralisado.
Imaginemos que toda a sociedade seja formada apenas por capitalistas industriais e trabalhadores assalariados. Abstraiamos, além disso, das mudanças de preços, que impedem que grandes porções do capital total da sociedade se reponham em suas proporções médias e que, devido às inter-relações das esferas do processo global de reprodução, tal como o crédito as desenvolve, têm sempre de acarretar paralisações gerais de natureza temporária. Façamos abstração também dos negócios fictícios e das operações especulativas que o sistema de crédito estimula. Nessas condições, uma crise só seria explicável por uma desproporção entre os diversos ramos da produção e por uma desproporção entre o consumo dos próprios capitalistas e sua acumulação. Porém, tal como as coisas se apresentam na realidade, a reposição dos capitais investidos na produção depende, em grande parte, da capacidade de consumo das classes não produtivas, ao passo que a capacidade de consumo dos trabalhadores está limitada, em parte, pelas leis salariais e, em parte, pela circunstância de que essas leis só se aplicam se for em benefício da classe capitalista. A razão última de todas as crises reais é sempre a pobreza e a restrição ao consumo das massas em contraste com o ímpeto da produção capitalista a desenvolver as forças produtivas como se estas tivessem seu limite apenas na capacidade absoluta de consumo da sociedade.
Uma escassez real de capital produtivo, pelo menos entre nações capitalistas desenvolvidas, só pode existir em épocas de fracassos gerais de colheitas, seja dos víveres principais, seja das matérias-primas industriais mais importantes.
No entanto, a esse crédito comercial se acrescenta agora o crédito monetário propriamente dito. Os adiantamentos dos industriais e dos comerciantes entre si se combinam com os adiantamentos de dinheiro feitos a eles por banqueiros e prestamistas. No desconto de letras de câmbio, o adiantamento de dinheiro é puramente nominal. Um fabricante vende seu produto contra letra de câmbio e desconta essa letra num bill-broker. Na realidade, este se limita a adiantar o crédito de seu banqueiro, que, por sua vez, adianta ao bill-broker o capital monetário de seus depositantes. Estes são os próprios industriais e os comerciantes, mas também os trabalhadores (por meio de caixas de poupança), os rentistas fundiários e as demais classes improdutivas. Desse modo, cada fabricante ou comerciante individual contorna a necessidade de manter um forte capital de reserva e de ser dependente dos refluxos reais. Por outro lado, o processo inteiro se torna tão complicado, em parte devido à simples emissão de letras frias, em parte a negócios de mercadorias realizados com a única finalidade de fabricar letras, que a aparência de negócios sólidos e de refluxos rápidos do capital pode facilmente persistir, uma vez que os refluxos, na realidade, já estão realizados à custa da espoliação fraudulenta, seja de prestamistas, seja de produtores. Por isso, às vésperas da crise os negócios parecem sólidos até demais. A melhor prova disso é fornecida, por exemplo, pelos Reports on Bank Acts, de 1857 e 1858, em que todos os diretores de bancos e comerciantes, ou seja, todos os peritos intimados a depor, com lorde Overstone à frente deles, congratulam-se uns aos outros pela prosperidade e solidez dos negócios, apenas um mês antes de estourar a crise de agosto de 1857. É curioso que o próprio Tooke, em sua History of Prices, compartilhe uma vez mais, como historiador, dessa ilusão. Os negócios estão sempre sólidos, e o campo, em plena prosperidade, até que de repente, da noite para o dia, estoura a crise.
* * *
Retornamos agora à acumulação do capital monetário.
Nem todo aumento do capital monetário emprestável é sinal de uma acumulação real de capital ou uma ampliação do processo de reprodução. Isso se revela com maior evidência na fase do ciclo industrial imediatamente posterior à superação de uma crise, quando grandes massas de capital de empréstimo permanecem inativas. Nesses momentos, quando o processo de produção se encontra restringido (depois da crise de 1847, a produção nos distritos industriais ingleses caiu em ⅓), quando os preços das mercadorias atingem seu nível mais baixo, quando o espírito empreendedor se paralisa, a taxa de juros é baixa, o que, nesse caso, significa apenas o aumento do capital emprestável, justamente como resultado da contração e paralisação do capital industrial. É evidente que, ao cair o preço das mercadorias, diminuir as transações e contrair-se o capital investido em salários, menos meios de circulação são necessários; que, por outro lado, ao se liquidarem as dívidas externas, em parte por exportação de ouro e em parte por falências, já não se necessita mais de dinheiro adicional para cumprir a função de dinheiro mundial; e que, finalmente, o volume do negócio de desconto de letras diminui com o número e os montantes dessas próprias letras. Assim, diminui a demanda de capital monetário emprestado, seja para meio de circulação, seja para meio de pagamento (pois ainda não temos o que falar de novos investimentos de capital), com o que esse capital monetário se torna relativamente abundante. Nessas circunstâncias, no entanto, também aumenta de modo positivo a oferta de capital monetário emprestável, como veremos adiante.
Assim, a situação depois da crise de 1847 era de “restrição das transações e um excesso de dinheiro” (Commercial Distress, 1847-1848, evid. n. 1.664). A taxa de juros era muito baixa por causa da “destruição quase completa do comércio e da ausência quase total da possibilidade de investir dinheiro” (ibidem, p. 45. Depoimento de Hodgson, diretor do Royal Bank de Liverpool). A seguinte passagem oferece uma amostra dos absurdos a que chegam esses senhores (e Hodgson ainda é um dos melhores) ao explicar isso: “Os apuros” (1847) “surgiram de uma diminuição real do capital monetário dentro do país, causada em parte pela necessidade de pagar em ouro as importações de todas as regiões do mundo e em parte pela transformação do capital de circulação (floating capital) em capital fixo” (ibidem, p. 63). Não é fácil compreender como a transformação de capital de circulação em capital fixo pode diminuir o capital monetário dentro do país, uma vez que, por exemplo, no caso das ferrovias – que, à época, eram as empresas em que se investia mais capital –, não se usa ouro nem papel na construção de viadutos ou instalação de trilhos, e o dinheiro para as ações ferroviárias, na medida em que era depositado simplesmente em pagamento, funcionava como qualquer outro dinheiro depositado nos bancos, inclusive aumentava momentaneamente, como já mostramos, o capital monetário emprestável; na medida em que era desembolsado realmente em obras, circulava pelo país como meio de compra e de pagamento. O capital monetário só poderia ser afetado na medida em que o capital fixo não fosse um artigo exportável, isto é, na medida em que, com a impossibilidade de exportação, desaparecesse também o capital disponível, reunido mediante os retornos por artigos exportados, e, portanto, os retornos em espécie ou em lingotes. Também os artigos ingleses de exportação estavam estocados em massa como artigos invendáveis nos mercados estrangeiros. Para os comerciantes e os fabricantes de Manchester etc., que haviam imobilizado uma parte de seu capital operacional normal em ações ferroviárias e, logo, dependiam do capital de empréstimo para operar seus negócios, seu floating capital convertera-se em capital fixo, e portanto tinham de arcar com as consequências. O mesmo teria ocorrido se o capital pertencente a seu negócio, porém retirado deste último, fosse investido não em ferrovias, mas, por exemplo, em minas, cujo produto, por sua vez, é floating capital, ferro, carvão, cobre etc. A redução real do capital monetário disponível em consequência de colheitas malogradas, importações de cereais e exportações de ouro constituía naturalmente um evento sem qualquer relação com a fraude ferroviária. “Quase todas as casas comerciais tinham começado a restringir em maior ou menor proporção seus negócios, para investir em ferrovias.” [Ibidem, p. 42] “Os adiantamentos tão extensos, concedidos às ferrovias pelas casas comerciais, moveram as primeiras a apoiar-se demasiadamente nos bancos, por meio dos descontos de letras, para assim continuar operando suas operações comerciais.” (Ainda Hodgson, ibidem, p. 67) “Em Manchester, houve perdas imensas pela especulação com ferrovias.” (R. Gardner, já citado no Livro I, capítulo 13, item 3, subitem c, e em outras partes desta obra, depoimento n. 4.884, cit.)
Uma das principais causas da crise de 1847 foi a gigantesca saturação dos mercados e a fraude ilimitada no comércio de mercadorias com as Índias Orientais, mas outras circunstâncias também contribuíram para levar à falência estabelecimentos muito ricos que se dedicavam a esses negócios:
“Dispunham de abundantes recursos, mas não havia meio de pô-los em circulação. Todo o seu capital estava imobilizado em propriedades territoriais nas ilhas Maurício ou em fábricas de índigo e açúcar. Quando, então, contraíram obrigações até a soma de £500.000 ou £600.000, eles dispunham de recursos líquidos para pagar suas letras, até que, por último, demonstrou-se que, para pagá-las, deviam se basear inteiramente em seu crédito.” (Ch. Turner, grande comerciante das Índias Orientais em Liverpool, n. 730, cit.)
No mesmo sentido, Gardner (n. 4.872, cit.): “Imediatamente após o tratado com a China, abriram-se ao país tão grandes perspectivas de uma extensão formidável de nosso comércio com aquela nação que muitas grandes fábricas foram construídas expressamente para esse negócio, para fabricar os tecidos de algodão que tinham melhor saída no mercado chinês, e estas se somaram a todas as nossas fábricas já existentes”. 4.874. “Como se desenvolveu esse negócio? – De um modo tão ruinoso que é quase impossível descrever; não creio que de todos os embarques feitos para a China em 1844 e 1845 se tenham reembolsado mais de ⅔, e como o chá é o principal artigo de reexportação da China e nos haviam oferecido tão grandes expectativas, nós fabricantes contávamos seguramente com uma grande redução das tarifas de importação desse artigo.” E agora vem, expresso com ingenuidade, o credo característico do fabricante inglês: “Nosso comércio com um mercado externo não está limitado por sua capacidade de compra de mercadorias, mas por nossa capacidade de consumir os produtos obtidos em troca de nossos artigos industriais”. (Os países relativamente pobres, com os quais a Inglaterra comercia, são naturalmente capazes de pagar e consumir todos os artigos industriais ingleses que lhes sejam enviados, mas infelizmente a rica Inglaterra não pode absorver os produtos que lhe são enviados em troca.) 4.876. “Num primeiro momento, enviei para o exterior algumas mercadorias, que foram vendidas com cerca de 15% de prejuízo, com a plena convicção de que o preço a que meus agentes poderiam comprar chá deixaria aqui um lucro tão grande que permitiria cobrir as perdas; mas, em vez de lucro, o que obtive foi uma perda de, às vezes, 25% e até 50%.” 4.877. “Exportavam os fabricantes por conta própria? – Quase sempre; porém, ao que parece, os comerciantes logo perceberam que por esse caminho não conseguiam nada e animaram os fabricantes a exportar por consignação em vez de se envolverem eles mesmos no negócio.” Em 1857, ao contrário, as perdas e as falências recaíram principalmente sobre os comerciantes, pois dessa vez os fabricantes deixaram a seu encargo a tarefa de abarrotar os mercados estrangeiros “por conta própria”.
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Uma expansão do capital monetário, surgida do fato de que, em virtude da difusão do sistema bancário (veja-se, adiante, o exemplo de Ipswich, em que, em poucos anos, imediatamente anteriores a 1857, quadruplicaram-se os depósitos dos arrendatários), o que antes era tesouro privado ou reserva monetária converte-se sempre, por um determinado período, em capital de empréstimo, indica tão pouco um aumento do capital produtivo quanto os depósitos crescentes nos bancos por ações de Londres, a partir do momento em que estes começaram a pagar juros sobre depósitos. Enquanto a escala de produção permanece inalterada, essa expansão conduz apenas à abundância do capital monetário emprestável comparado ao capital produtivo. Isso explica a baixa taxa de juros.
Quando o processo de reprodução volta a alcançar aquele nível de prosperidade que precede à fase de hiperatividade, o crédito comercial alcança uma extensão muito grande; isso reconstitui, de fato, a base “sólida” para o fluxo fácil de retornos e a produção ampliada. Em situações como essa, a taxa de juros continua a ser baixa, ainda que esteja acima de seu mínimo. Esse é, de fato, o único momento em que se pode dizer que a baixa taxa de juros e, portanto, a relativa abundância do capital de empréstimo coincidem com uma expansão real do capital industrial. O fluxo fácil e a regularidade dos retornos, combinados com um crédito comercial extenso, asseguram a oferta de capital de empréstimo, não obstante o crescimento da demanda, e impedem o aumento da taxa de juros. Por outro lado, é precisamente nesses momentos que entram em cena, em número considerável, os cavalheiros que operam sem capital de reserva ou mesmo sem capital de nenhum tipo e que, portanto, baseiam-se exclusivamente no crédito monetário. A isso se acrescentam agora a grande expansão do capital fixo sob todas as suas formas e a abertura de uma vasta quantidade de novas empresas de grande alcance. Os juros atingem, agora, seu nível médio. E voltam a alcançar seu nível máximo tão logo estoura a nova crise; o crédito desaparece de repente, os pagamentos se interrompem, paralisa-se o processo de reprodução e, com as exceções indicadas anteriormente, produz-se, ao lado de uma falta quase absoluta de capital de empréstimo, uma abundância de capital industrial inativo.
Em geral, o movimento do capital de empréstimo, tal como se reflete na taxa de juros, vai na direção inversa à do capital industrial. A fase em que a baixa taxa de juros, superior ao mínimo, coincide com o “alívio” e a confiança crescente que se produzem depois da crise, especialmente a fase em que ela alcança seu nível médio, o ponto central, equidistante do mínimo e do máximo, são os únicos momentos que expressam a coincidência entre abundância de capital de empréstimo e grande expansão do capital industrial. Porém, ao iniciar o ciclo industrial, a baixa taxa de juros coincide com a contração do capital industrial, e, no fim do ciclo, a alta taxa de juros coincide com a superabundância de capital industrial. A baixa taxa de juros, que acompanha o “alívio”, expressa o fato de que o crédito comercial só necessita do crédito bancário numa medida muito pequena, pois ainda é capaz de se apoiar sobre seus próprios pés.
Esse ciclo industrial é de tal natureza que, uma vez dado o primeiro impulso, o mesmo ciclo precisa reproduzir-se periodicamente[8]. Na fase de redução da atividade, a produção cai abaixo do nível alcançado no ciclo anterior e para o qual se criou agora a base técnica. Na época de prosperidade – no período intermediário –, ela continua a se desenvolver sobre essa base. No período de superprodução e de especulação, ela ativa ao máximo as forças produtivas, até exceder os limites capitalistas do processo de produção.
Está claro que em épocas de crise ocorre escassez de meios de pagamento. A conversibilidade das letras de câmbio substitui a metamorfose das próprias mercadorias, e tão mais exatamente nessas épocas quanto maior é o número de firmas que operam puramente com base no crédito. Uma legislação bancária ignorante e equivocada como a de 1844-1845 pode intensificar essa crise. Mas nenhum tipo de legislação bancária é capaz de eliminá-la.
Num sistema de produção em que toda a rede de conexões do processo de reprodução se baseia no crédito, quando este cessa de repente e só se admitem pagamentos à vista, tem de se produzir evidentemente uma crise, uma demanda violenta de meios de pagamento. À primeira vista, a crise se apresenta como uma simples crise de crédito e crise monetária. E, com efeito, trata-se apenas da conversibilidade das letras de câmbio em dinheiro. Mas a maioria dessas letras representa compras e vendas reais, cuja extensão, que vai muito além das necessidades sociais e acaba servindo de base a toda a crise. Ao mesmo tempo, há uma massa enorme dessas letras que representa apenas negócios fraudulentos, que agora vêm à luz e estouram como bolhas de sabão; além disso, há especulações feitas com capital alheio, porém malogradas; e, por fim, capitais-mercadorias desvalorizados, ou até mesmo invendáveis, ou refluxos de capitais que jamais se realizam. Esse sistema artificial inteiro de expansão forçada do processo de reprodução não pode naturalmente ser remediado fazendo com que um banco, por exemplo, o Banco da Inglaterra, conceda a todos os especuladores, com suas cédulas, o capital que lhes falta e compre todas as mercadorias depreciadas a seus antigos valores nominais. Além disso, aqui tudo aparece distorcido, pois nesse mundo de papel jamais se manifestam o preço real e seus fatores reais; o que se vê são apenas barras, dinheiro metálico, cédulas bancárias, letras de câmbio e títulos. Principalmente nos centros em que se concentra todo o negócio monetário do país, como Londres, nota-se claramente essa distorção; todo o processo se torna incompreensível, mas em menor medida nos centros de produção.
Acerca da superabundância do capital industrial, que se revela nas crises, é preciso observar o seguinte: o capital-mercadoria é em si mesmo, simultaneamente, capital monetário, isto é, uma soma de valor expressa no preço da mercadoria. Como valor de uso, é uma quantidade de determinados objetos úteis, que existem em excesso no momento da crise. Porém, como capital monetário em si mesmo, como capital monetário potencial, ele está sujeito a constantes expansão e contração. Na véspera da crise, e durante esta, produz-se uma contração do capital-mercadoria em sua qualidade de capital monetário potencial. Este representa, para seu possuidor e os credores deste último (e também como garantia de letras e empréstimos), menos capital monetário que no momento em que foi comprado, quando se celebraram os descontos e as penhoras baseados nele. Se é isso o que se quer dizer quando se afirma que o capital monetário de um país diminui em tempos de crises, então isso equivale a falar que cai o preço das mercadorias. Além disso, tal colapso dos preços não faz mais que compensar sua inflação anterior.
A receita das classes improdutivas e dos que vivem de renda fixa permanece na maior parte estacionária durante a inflação dos preços que sempre acompanha a superprodução e a especulação excessiva. Isso provoca uma queda relativa em sua capacidade de consumo e, com ela, também em sua capacidade de repor a parte da reprodução total que normaliter [normalmente] teria de entrar em seu consumo. Mesmo quando sua demanda permanece nominalmente inalterada, ela na realidade diminui.
Quanto à importação e à exportação, devemos assinalar que todos os países se veem sucessivamente arrastados para a crise e que logo se evidencia que todos, com pouquíssimas exceções, importaram e exportaram mais que o devido, que a balança de pagamentos se tornou desfavorável para todos e que, de fato, o problema não está na balança de pagamentos. A Inglaterra, por exemplo, padece pela evasão de ouro. Ela importou mais do que devia. Ao mesmo tempo, todos os outros países estão saturados de mercadorias inglesas. Portanto, eles também importaram em excesso ou foram excessivamente importados. (Existe, é claro, uma diferença entre o país que exporta a crédito e os que exportam pouco ou absolutamente nada dessa forma. Mas também estes últimos importam a crédito; e isso só não ocorre quando as mercadorias lhes são enviadas em consignação.) Pode ocorrer que a crise estoure primeiro na Inglaterra, no país que concede o maior crédito e toma o mínimo, porque a balança de pagamentos, a balança de pagamentos vencidos que têm de ser imediatamente liquidados, é desfavorável a ela, embora a balança comercial geral lhe seja favorável. Isso se explica, em parte, pelo crédito que esse país concede e, em parte, pela massa de capitais emprestados ao exterior, de modo que flui para ela uma massa de refluxos em mercadorias, além dos retornos comerciais propriamente ditos. (Às vezes a crise se manifesta antes nos Estados Unidos, país que pega da Inglaterra a maior quantidade de crédito comercial e de capital.) O crash produzido na Inglaterra, iniciado e acompanhado pela drenagem de ouro, salda a balança de pagamentos desse país, em parte pela falência de seus importadores (voltaremos a isso adiante), em parte pela expulsão de uma parcela de seu capital-mercadoria a preços baixos ao exterior, em parte pela venda de títulos estrangeiros, a compra de títulos ingleses etc. Logo chega a vez de outro país. A balança de pagamentos era momentaneamente favorável a ele; agora o prazo que em tempos normais existia entre a balança de pagamentos e a balança comercial, devido à crise, desaparece ou se encurta; nesse caso, exige-se que todos os pagamentos sejam efetuados de imediato. E a mesma coisa se repete aqui. Na Inglaterra, produz-se agora um refluxo de ouro, e em outro país, uma drenagem desse metal. O que numa nação aparece como excesso de importações, aparece em outra como excesso de exportações, e vice-versa. A realidade é que em todos os países se produz um excesso de importações e de exportações (não nos referimos a más colheitas etc., mas a uma crise geral), ou seja, superprodução, provocada pelo crédito e pela inflação geral dos preços que o acompanha.
Em 1857, a crise estourou nos Estados Unidos. Seguiu-se a evasão de ouro da Inglaterra para a América. Depois, tão logo disparou a inflação nos Estados Unidos, sobreveio a crise na Inglaterra e o ouro foi drenado da América para a Inglaterra. O mesmo se deu entre a Inglaterra e o continente. A balança de pagamentos, em tempos de crise geral, é desfavorável a todas as nações, pelo menos àquelas comercialmente desenvolvidas, mas sempre a uma após a outra, como disparos sucessivos de um pelotão, tão logo chega sua vez de efetuar os pagamentos; e a crise, uma vez instalada, por exemplo, na Inglaterra, comprime num período muito curto toda a série desses prazos de pagamento. Então se revela que todas essas nações exportaram e importaram excessivamente (portanto, produziram em excesso) e importaram excessivamente (portanto, comerciaram em excesso), que em todas elas os preços foram inflados e o crédito foi demasiadamente ampliado. E em todas sobrevém o mesmo colapso. O fenômeno da drenagem de ouro atinge, então, todas essas nações sucessivamente, e demonstra, justamente por seu caráter geral, 1) que a drenagem de ouro é mero fenômeno da crise, e não sua causa; 2) que a sequência em que se apresenta nas diversas nações é apenas um sinal de que chegou a vez de cada uma delas ajustar suas contas com os céus, que nelas se deu o momento de crise e em seu interior despertaram os elementos latentes desta.
Entre os escritores ingleses da área econômica – e a literatura econômica inglesa digna de menção desde 1830 se reduz, em essência, a obras sobre currency, crédito e crises –, é característico considerar a exportação de metais preciosos em tempos de crise, apesar da variação das taxas de câmbio, do ponto de vista da Inglaterra, como um fenômeno apenas nacional, fechando decididamente os olhos para o fato de que, se o Banco da Inglaterra aumenta a taxa de juros nesses momentos, todos os demais bancos europeus fazem o mesmo e que, se hoje se ouve em seu país o grito de socorro devido à evasão de ouro, amanhã ele será ouvido na América e depois de amanhã na Alemanha e na França.
Em 1847, “as obrigações correntes na Inglaterra tinham de ser liquidadas” {em sua maior parte, por trigo}. “Infelizmente, elas foram liquidadas, em grande parte, mediante falências.” {A rica Inglaterra obteve um alívio por meio de falências perante o continente e a América.} “Porém, quando não liquidou suas obrigações por meio de falências, o fez recorrendo à exportação de metais preciosos” (Report of Committee of Bank Acts, 1857). Portanto, na medida em que as crises na Inglaterra se veem agravadas pela legislação bancária, essa legislação constitui um meio para, em tempos de fome, espoliar as nações exportadoras de cereais, primeiro de seu trigo e, em seguida, do dinheiro devido por ele. Nessas épocas, uma proibição da exportação de trigo constitui, quando se trata de países que sofrem mais ou menos de escassez, um meio muito racional contra esse plano do Banco da Inglaterra de “liquidar obrigações” mediante a importação de trigo “por meio de falências”. Nessas condições, é bem melhor que os produtores de trigo e os especuladores percam uma parte dos lucros para o bem de seu país do que todo seu capital para o bem da Inglaterra.
Do que foi dito, depreende-se que, em épocas de crise e de paralisação dos negócios, o capital-mercadoria perde em grande parte sua capacidade de representar capital monetário potencial. O mesmo ocorre com o capital fictício, com os títulos portadores de juros, na medida em que circulam na Bolsa como capitais monetários. Seu preço cai à medida que aumenta a taxa de juros. Ele cai, além disso, pela escassez geral de créditos, que obriga seus possuidores a lançá-los em massa no mercado a fim de conseguir dinheiro. Finalmente, em se tratando de ações, ele cai, em parte pela diminuição das rendas a que dão direito, em parte graças ao caráter fraudulento dos empreendimentos que tão frequentemente representam. Esse capital monetário fictício diminui enormemente em épocas de crises, e, com ele, cai o poder de seus possuidores de obter dinheiro no mercado. A queda da cotação desses títulos nos boletins da Bolsa não tem nenhuma relação com o capital real que representam, mas sim com a solvência de seus proprietários.
[6] “Os títulos públicos não são mais que o capital imaginário, que representa a parte da receita anual destinada ao pagamento das dívidas. Um capital de mesma grandeza foi dissipado; este serve como denominador para o empréstimo, mas não é o que o título público representa, pois o capital já não existe em absoluto. Nesse ínterim, novas riquezas devem surgir do trabalho da indústria; uma parte anual dessas riquezas é destinada, de antemão, àqueles que emprestaram as riquezas dissipadas; essa parte é subtraída, por meio de impostos, daqueles que produzem as riquezas para ser dada aos credores do Estado, e, de acordo com a proporção entre capital e juros habitual no país, supõe-se um capital imaginário, com a mesma grandeza do capital de que poderia surgir a renda anual que os credores têm a receber” (Sismondi, Nouveaux principes [d’économie politique], v. 2, [Paris, Chez Delaunay,], p. 230).
[7] Uma parte do capital monetário acumulado e emprestável é, na realidade, mera expressão de capital industrial. Quando, por exemplo, a Inglaterra, por volta de 1857, investiu £80 milhões em ferrovias americanas e outros empreendimentos, essa aplicação foi quase exclusivamente mediada pela exportação de mercadorias inglesas, pelas quais os americanos não tiveram de pagar nada. Contra essas mercadorias, o exportador inglês emitia letras de câmbio sobre a América, as quais eram compradas pelos acionistas ingleses e enviadas à América como pagamento dos montantes em ações.
[8] Conforme já observei em outra passagem [Livro I, p. 104], desde a última grande crise geral ocorreu aqui uma mudança. A forma aguda do processo periódico, com seu ciclo, até hoje, de dez anos, parece ter cedido lugar a uma alternância mais crônica, mais prolongada, que se distribui entre os diversos países industriais, em tempos diferentes, a uma melhoria relativamente curta e fraca dos negócios, acompanhada de uma pressão relativamente longa e indecisa. Talvez se trate apenas de um prolongamento da duração do ciclo. Na infância do comércio mundial, de 1815 a 1847, podem-se comprovar ciclos [na primeira edição, “crises” (N. E. A.)] de aproximadamente cinco anos; de 1847 a 1867, os ciclos são decididamente de dez anos; será que nos encontramos no período preparatório de um novo crash mundial de veemência inédita? Alguns indícios apontam nessa direção. Desde a última crise geral de 1867, ocorreram grandes mudanças. A expansão colossal dos meios de transporte – navios a vapor transatlânticos, ferrovias, telégrafos elétricos, canal de Suez – criou, pela primeira vez, de fato, o mercado mundial. Vários países industriais passaram a competir com a Inglaterra, que antes monopolizava a indústria; ao investimento do capital excedente europeu abriram-se, em todas as partes do mundo, campos infinitamente maiores e mais diversificados, permitindo que ele fosse distribuído com maior amplitude e que a superespeculação local fosse superada com mais facilidade. Por tudo isso, conseguiu-se eliminar ou enfraquecer consideravelmente a maior parte dos focos de crises e das oportunidades de formação de crises anteriores. Ao mesmo tempo, a concorrência no mercado interno recua diante de cartéis e trustes, ao mesmo tempo que é limitada no mercado externo pelas tarifas protecionistas de que lançam mão todos os grandes países industriais, com exceção da Inglaterra. Mas essas próprias tarifas protecionistas não passam de um armamento para a batalha final e geral da indústria, que deverá decidir o domínio do mercado mundial. Assim, cada um dos elementos que se opõem à repetição das velhas crises traz em si o germe de uma crise futura muito mais violenta. (F. E.)