O capital portador de juros, ou, para empregar o termo antigo, capital usurário, figura com seu irmão gêmeo, o capital comercial, entre as formas antediluvianas do capital, que precedem por longo tempo o modo de produção capitalista e podem ser encontradas nas mais diversas formações econômicas da sociedade.
A existência do capital usurário requer tão somente que pelo menos uma parcela dos produtos tenha se convertido em mercadorias e que o dinheiro tenha se desenvolvido em suas diversas funções, juntamente com o comércio de mercadorias.
O desenvolvimento do capital usurário está ligado ao desenvolvimento do capital comercial e, especialmente, ao do capital do comércio de dinheiro. Na Roma Antiga, a começar pelos últimos tempos da República, em que a manufatura se encontrava muito abaixo de seu nível médio de desenvolvimento no mundo antigo, o capital comercial, o capital de comércio de dinheiro e o capital usurário haviam chegado ao ponto máximo de desenvolvimento dentro da forma antiga.
Vimos como o dinheiro está necessariamente vinculado ao entesouramento. No entanto, o entesourador profissional só adquire importância quando se transforma em usurário.
O comerciante pega dinheiro emprestado para, com ele, obter algum lucro, empregá-lo como capital, isto é, investi-lo. Nas formas mais antigas, igualmente, ele se confronta com o prestamista de dinheiro, tal como ocorre com o capitalista moderno. Essa relação específica foi também percebida pelas universidades católicas.
“As universidades de Alcalá, Salamanca, Ingolstadt, Freiburg am Breisgau, Mainz, Colônia e Trier reconheceram sucessivamente a licitude dos juros quando se trata de empréstimos comerciais. As cinco primeiras aprovações desse tipo foram recolhidas nos arquivos do consulado da cidade de Lyon e impressas no apêndice ao Traité de l’usure et des intérêts, Lyon, Bruyset-Ponthus.” (M.[arie] Augier, [Du] crédit public etc., Paris, [Guillaumin,] 1842, p. 206)
Em todas as formas em que a economia escravista (não a patriarcal, mas como a dos últimos tempos na Grécia e em Roma) existe como meio de enriquecimento, em que o dinheiro é, portanto, o meio para apropriar-se do trabalho alheio mediante a compra de escravos, terra etc., o dinheiro torna-se portador de juros, e isso justamente porque pode ser investido desse modo, valorizando-se como capital.
No entanto, são duas as formas características em que o capital usurário existe nos períodos que antecedem o modo de produção capitalista. Digo, formas características. Essas mesmas formas voltam a aparecer sobre a base da produção capitalista, mas como puramente secundárias. Já não são mais aqui as formas que determinam o caráter do capital portador de juros. Essas duas são: primeira, a usura por meio de empréstimos de dinheiro feitos aos grandes dilapidadores da época, principalmente proprietários de terra; segunda, a usura por meio de empréstimos de dinheiro feitos aos pequenos produtores, possuidores das próprias condições de trabalho, entre os quais se inclui o artesão, especialmente o camponês, uma vez que, em geral, em todas as condições pré-capitalistas, na medida em que deixam margem à existência de pequenos produtores isolados e independentes, é a classe camponesa que constitui sua imensa maioria.
Tanto a ruína dos ricos proprietários rurais ocasionada pela usura como o empobrecimento dos pequenos produtores conduzem à formação e à concentração de grandes somas de capitais monetários. Mas em que medida esse processo suprassume o antigo modo de produção, como ocorreu na Europa moderna, para pôr em seu lugar o modo de produção capitalista, é algo que depende inteiramente do estágio de desenvolvimento histórico e das circunstâncias a ele relacionadas.
O capital usurário, como forma característica do capital portador de juros, corresponde ao predomínio da produção em pequena escala, dos camponeses autônomos e dos pequenos mestres artesãos. Quando o trabalhador é confrontado pelas condições de trabalho e pelo produto do trabalho na forma de capital, como no modo de produção capitalista já desenvolvido, ele não precisa pegar dinheiro nenhum emprestado como produtor. Se o pega, ele o faz recorrendo à casa de penhores a fim de atender a suas necessidades pessoais mais urgentes. Em contrapartida, se o trabalhador é proprietário, real ou nominal, de suas condições de trabalho e de seu produto, ele aparece como produtor em relação ao capital do prestamista de dinheiro, que se confronta com ele como capital usurário. Newman expressa isso de modo bastante trivial quando diz que o banqueiro é respeitado, ao passo que o usurário é odiado e desprezado, porque aquele empresta aos ricos, e este, aos pobres ([F.] W. Newman, Lectures on Pol.[itical] Econ.[omy], Londres, 1851, p. 44). Ele ignora que entre um e outro se interpõe a diferença entre dois modos sociais de produção e suas ordens sociais correspondentes, sem que o problema seja passível de resolver invocando o contraste entre pobres e ricos. Poderíamos, pelo contrário, dizer que a usura que espolia os pequenos produtores pobres é sempre acompanhada da usura que espolia os proprietários fundiários ricos. Uma vez que a usura dos patrícios romanos arruinou por completo os plebeus romanos, os pequenos agricultores, essa forma de exploração chegou ao fim, e a economia escravista pura tomou o lugar da produção pequeno-burguesa.
O usurário pode embolsar aqui, sob a forma dos juros, todo o excedente, deixando apenas os meios mais elementares de subsistência (que, mais tarde, formarão o salário) aos produtores (excedente que, depois, reaparece como lucro e renda fundiária); por isso, é extremamente absurdo comparar a grandeza desses juros que abrangem, com a única exceção da parte que cabe ao Estado, o mais-valor inteiro e a grandeza da taxa moderna, em que os juros, pelo menos os normais, só constituem uma parte desse mais-valor. Ao apresentar o problema desse modo, esquece-se de que o assalariado produz e cede ao capitalista que o emprega o lucro, os juros e a renda fundiária, isto é, o mais-valor inteiro. Carey faz essa comparação absurda para mostrar o quão vantajoso para os trabalhadores é o desenvolvimento do capital e a conseguinte queda da taxa de juros. Além disso, se o usurário, não contente em sugar de sua vítima o mais-trabalho, adquire pouco a pouco os títulos de propriedade de suas próprias condições de trabalho, da terra, da casa etc., e dedica-se continuamente a expropriá-lo desse modo, volta a esquecer-se, em face disso, de que essa expropriação completa do trabalhador com relação a suas condições de trabalho não é um resultado que o modo de produção capitalista procura alcançar, mas uma premissa da qual ele parte. O escravo do salário, do mesmo modo que o verdadeiro escravo, está excluído da possibilidade da escravidão por dívidas, pelo menos em sua condição de produtor; só pode sê-lo, quando muito, como consumidor. O capital usurário, sob essa forma, na qual se apropria, de fato, de todo o mais-trabalho dos produtores diretos, sem alterar o modo de produção; sob a forma, portanto, na qual a propriedade ou a posse dos produtores sobre as condições de trabalho – e o sistema de pequenos produtores isolados que a ela corresponde – constitui uma premissa essencial; em que, por conseguinte, o capital não impera diretamente sobre o trabalho e, assim, não o confronta como capital industrial; esse capital usurário empobrece o modo de produção, paralisa as forças produtivas em vez de desenvolvê-las e, ao mesmo tempo, perpetua esse estado de coisas deplorável, em que a produtividade social do trabalho não se desenvolve, como na produção capitalista, à custa do próprio trabalho.
Assim, a usura exerce, por um lado, uma influência nociva e destrutiva sobre a riqueza e a propriedade antigas e feudais. Por outro lado, solapa e arruína a produção de pequenos camponeses e pequenos burgueses – numa palavra, todas as formas em que o produtor ainda aparece como o proprietário de seus meios de produção. No modo de produção capitalista desenvolvido, o trabalhador não é proprietário das condições de produção, do campo que cultiva, das matérias-primas que processa etc. Mas essa separação do produtor com relação aos meios de produção reflete aqui um revolucionamento real do próprio modo de produção. Os trabalhadores isolados são reunidos em grandes oficinas, nas quais desenvolvem atividades separadas, porém articuladas; a ferramenta se converte em máquinas. O próprio modo de produção não permite mais a dispersão dos instrumentos de produção característica da pequena propriedade, tampouco o isolamento dos próprios trabalhadores. Na produção capitalista, a usura não pode mais implantar o divórcio entre as condições de trabalho e o produtor, pela simples razão de que esse divórcio já existe.
Onde os meios de produção estão dispersos, a usura centraliza fortunas em dinheiro. Ela não altera o modo de produção, mas suga sua substância como um parasita e o arruína. Ela o exaure, enerva-o e obriga a reprodução a desenvolver-se sob condições cada vez mais deploráveis. Isso explica o fato de o ódio popular contra a usura ter sido mais intenso no mundo antigo, quando a propriedade dos meios de produção pelo produtor era ao mesmo tempo a base das relações políticas e da autonomia do cidadão.
Na medida em que prevalece a escravidão ou em que o mais-produto é consumido pelo senhor feudal e por seu séquito, e que o dono de escravos ou o senhor feudal caem nas garras da usura, o modo de produção continua a ser o mesmo; torna-se somente mais duro para o trabalhador. O dono de escravos ou o senhor feudal endividados espoliam mais porque são mais espoliados. Ou, então, acabam cedendo lugar ao usurário, que se converte ele próprio, por sua vez, em proprietário fundiário ou dono de escravos, como os cavaleiros da Roma Antiga. O antigo explorador, cuja exploração tinha um caráter mais ou menos patriarcal, porque era, em grande parte, um meio de poder político, é substituído por um arrivista implacável, ávido de dinheiro. No entanto, o próprio modo de produção não se altera.
A usura tem um efeito revolucionário em todos os modos de produção pré-capitalistas apenas na medida em que destrói e dissolve as formas de propriedade que, reproduzindo-se constantemente na mesma forma, constituem a base firme da organização política. A usura pode perdurar por longo tempo dentro das formas asiáticas sem provocar mais que a decadência econômica e a degeneração política. É apenas onde e quando estão presentes as demais condições do modo de produção capitalista que a usura aparece como um dos meios constitutivos do novo modo de produção – por um lado, mediante a ruína dos senhores feudais e da pequena produção e, por outro, pela centralização das condições de trabalho, que são convertidas em capital.
Na Idade Média, em nenhum país imperava uma taxa geral de juros. A Igreja proibia de antemão toda e qualquer transação com juros. As leis e os tribunais davam poucas garantias para os empréstimos. Isso fazia com que, na prática, a taxa de juros fosse elevadíssima. A escassa circulação monetária e a necessidade de efetuar em espécie a maior parte dos pagamentos implicavam o empréstimo de dinheiro, tanto mais quanto menos desenvolvido estivesse o negócio de letras de câmbio. Havia uma grande disparidade tanto na taxa de juros quando no conceito de usura. Na época de Carlos Magno, usurário era alguém que emprestava dinheiro a 100%. Em 1348, em Lindau, no lago de Constança, cidadãos cobravam, por ano, juros de 216⅔%. Em Zurique, o Conselho Municipal fixou os juros legais em 43⅓%. Na Itália, às vezes era obrigatório pagar 40%, ainda que, do século XII ao XIV, a taxa habitual de juros não excedesse 20%. Em Verona, vigoravam juros legais de 12½%. O imperador Frederico II fixou a taxa de 10%, mas somente para os judeus. Para os cristãos, ele não quis determinar. No século XIII, 10% já era o normal nos territórios da Alemanha renana (Hüllmann, Geschichte des Städtewesens, t. II, p. 55-7).
O capital usurário emprega o modo de exploração do capital, mas sem seu modo de produção. Essa relação também se repete no interior da economia burguesa, em ramos industriais atrasados ou naqueles que resistem a transitar para o modo moderno de produção. Se, por exemplo, compararmos a taxa de juros vigente na Inglaterra com a que vigora na Índia, não devemos tomar como norma a primeira delas, mas sim a taxa de juros que os prestamistas de pequenas máquinas aplicam aos pequenos produtores da indústria doméstica.
A usura, em si um processo de surgimento do capital, é historicamente importante diante da riqueza consumidora. O capital usurário e a fortuna comercial promovem a formação de uma fortuna monetária independente da propriedade fundiária. Quanto menos os produtos assumem o caráter de mercadoria, e quanto menos o valor de troca domina intensiva e extensivamente a produção, mais o dinheiro aparece como riqueza propriamente dita, como a riqueza geral diante da representação limitada da riqueza em valores de uso. Nisso repousa o entesouramento. Abstraindo de sua forma como dinheiro mundial e como Tesouro, é como meio de pagamento que o dinheiro aparece na forma absoluta da mercadoria. E é especialmente sua função como meio de pagamento que desenvolve os juros e, com isso, o capital monetário. O que a riqueza pródiga e corruptora deseja é o dinheiro como tal, o dinheiro como meio para comprar tudo (e também pagar dívidas). O pequeno produtor necessita de dinheiro, principalmente para comprar. (Aqui desempenha um grande papel a transformação dos serviços e das contribuições in natura aos proprietários fundiários e ao Estado em renda monetária e impostos monetários.) Em ambos os casos, o dinheiro se torna necessário como dinheiro. Por outro lado, é na usura que o entesouramento se torna real, realiza seu sonho. O que é exigido do proprietário de tesouro não é capital, mas dinheiro como tal; mediante os juros, no entanto, ele transforma esse tesouro monetário em capital para si mesmo – num meio pelo qual ele se apodera total ou parcialmente do mais-trabalho e, com isso, de uma parte das próprias condições de produção, ainda que elas continuem nominalmente a existir para ele como propriedade alheia. A usura vive, ao que parece, nos poros da produção, como deuses nos intermúndios de Epicuro. Quanto menos a forma mercadoria é a forma geral do produto, mais difícil se torna obter dinheiro. Daí que o usurário não conhece outra limitação além da capacidade de pagar ou de resistir dos necessitados de dinheiro. Na produção pequeno-camponesa ou pequeno-burguesa, o dinheiro é requerido fundamentalmente como meio de compra, quando o trabalhador (que, nesses tipos de produção, continua a ser predominantemente seu proprietário) se vê privado das condições de produção por motivo de contingências fortuitas ou por abalos extraordinários ou quando, pelo menos, essas condições não são repostas no curso normal da reprodução. Os meios de subsistência e as matérias-primas constituem parte essencial dessas condições de produção. Se se tornam mais caros, isso pode impossibilitar sua reposição a partir do importe obtido com a venda do produto, do mesmo modo como uma simples má colheita pode impedir o camponês de repor in natura suas sementes. As mesmas guerras por meio das quais os patrícios romanos arruinavam os plebeus, compelindo-os a prestar serviço militar, que os impediam de reproduzir suas condições de trabalho e, assim, os empobreciam (e o empobrecimento, a mutilação ou a perda dos pré-requisitos da reprodução é aqui a forma predominante), essas mesmas guerras enchiam os celeiros e os porões dos patrícios com o cobre saqueado, que era o dinheiro daquela época. Em vez de entregar diretamente aos plebeus as mercadorias de que eles necessitavam, trigo, cavalos, gado, os patrícios lhes emprestavam esse cobre, que para eles mesmos era inútil, e aproveitavam a situação para arrancar-lhes enormes juros usurários, por meio dos quais faziam deles escravos por dívidas. Sob o reinado de Carlos Magno, também os camponeses francos foram arruinados por guerras, não lhes restando alternativa senão a de converter-se de devedores em servos. Sabemos que, no Império Romano, a fome costumava obrigar os pobres livres a vender seus filhos ou a vender a si mesmos como escravos. Isso basta quanto às grandes mudanças de caráter geral. Observando o problema mais detalhadamente, a conservação ou a perda das condições de produção depende de mil contingências, e cada uma dessas contingências ou perdas representa empobrecimento e abre uma brecha para que o parasita da usura possa instalar-se. A simples morte de uma de suas vacas é suficiente para tornar o pequeno produtor incapaz de retomar sua reprodução na escala anterior. Com isso, ele cai nas garras da usura e, uma vez que ali se encontra, jamais volta a libertar-se.
No entanto, a função do dinheiro como meio de pagamento é o domínio realmente importante e característico da usura. Todo pagamento em dinheiro, toda renda fundiária, tributo, imposto etc. que vence num determinado prazo coloca a necessidade de se dispor de certa soma em dinheiro. Assim se explica que a usura em grande escala tenha se desenvolvido, desde os antigos romanos até os tempos modernos, em conexão com os coletores de impostos, fermiers généraux [coletores gerais], receveurs généraux [recebedores gerais]. Em seguida, com o comércio e a generalização da produção de mercadorias, desenvolve-se a separação temporal entre a compra e o pagamento. O dinheiro precisa ser entregue num prazo determinado. As modernas crises monetárias demonstram como isso pode conduzir a circunstâncias em que as figuras do capitalista monetário e do usurário ainda hoje se confundem. Mas a própria usura torna-se o meio principal para continuar a desenvolver a necessidade do dinheiro como meio de pagamento, na medida em que endivida cada vez mais o produtor e elimina seus meios comuns de pagamento, impondo-lhe uma carga de juros que impossibilita até mesmo sua reprodução regular. Nesse ponto, a usura brota do dinheiro como meio de pagamento e amplia essa função do dinheiro como seu domínio mais peculiar.
O sistema de crédito completa seu desenvolvimento como reação contra a usura. Mas isso não deve ser mal entendido, e de forma nenhuma interpretado ao modo dos autores antigos, dos padres da Igreja, de Lutero ou dos antigos socialistas. O sistema de crédito não significa nada além da submissão do capital portador de juros às condições e às necessidades do modo de produção capitalista.
Em geral, o capital portador de juros, sob o sistema moderno de crédito, encontra-se adaptado às condições próprias da produção capitalista. A usura como tal não só continua a existir, como, nos povos de produção capitalista desenvolvida, é liberada dos grilhões que lhe haviam sido impostos por toda a legislação prévia. O capital portador de juros conserva a forma de capital usurário em relação a pessoas e classes ou em circunstâncias tais que empréstimos não se realizam nem podem ser realizados no sentido correspondente ao modo de produção capitalista; em condições que, por razões de penúria individual, pega-se emprestado na casa de penhores, empresta-se dinheiro a ricos para a dissipação ou quando o produtor é um produtor não-capitalista, um pequeno camponês, artesão etc., ou seja, alguém que, como produtor direto, ainda detém as próprias condições de produção; por fim, quando o próprio produtor capitalista opera numa escala tão pequena que ele se aproxima daqueles produtores que trabalham para si mesmos.
A diferença entre o capital portador de juros – na medida em que ele constitui um elemento essencial do modo de produção capitalista – e o capital usurário não está de modo nenhum na natureza ou no caráter desse capital em si, mas apenas nas condições modificadas sob as quais ele funciona e, portanto, também no caráter totalmente transformado do mutuário, que se confronta com o prestamista de dinheiro. Mesmo quando um homem carente de meios obtém crédito como industrial ou comerciante, isso ocorre na confiança de que ele atuará como capitalista, ou seja, de que empregará o dinheiro emprestado para apropriar-se de trabalho não pago. O crédito lhe é concedido como capitalista potencial. O fato de que, desse modo, um homem sem fortuna, mas com energia, seriedade, capacidade e conhecimento dos negócios, possa tornar-se um capitalista – e o valor comercial de cada indivíduo é estimado mais ou menos corretamente sob o modo de produção capitalista em geral – é bastante admirado pelos economistas apologéticos, embora esse mesmo fato produza um número indesejado de novos cavaleiros da fortuna, que entram em competição com os diversos capitalistas individuais já existentes, e reforce a dominação do próprio capital, ampliando sua base e permitindo-o recrutar sem interrupção forças novas do substrato da sociedade. Do mesmo modo, o fato de que na Idade Média a Igreja católica formasse sua hierarquia com os melhores cérebros do povo, sem levar em conta estamento, nascimento ou patrimônio, foi um dos principais meios de consolidação do domínio eclesiástico e da supressão do laicismo. O domínio de uma classe é tanto mais sólido e perigoso quanto maior é a capacidade de essa classe dominante assimilar os homens mais importantes das classes dominadas.
Os iniciadores do moderno sistema de crédito não partem da condenação do capital portador de juros em geral, mas, ao contrário, de seu expresso reconhecimento.
Não nos referimos aqui à reação contra a usura, voltada a proteger os pobres contra essa prática, como as de Monts-de-piété (fundados em Sarlins, no Franco-Condado, em 1350, e em Perúgia e Savona, na Itália, em 1400 e 1479). Essas instituições só são dignas de nota porque revelam a ironia da história, de como desejos piedosos, ao se realizar, transformam-se em seu exato oposto. Numa estimativa moderada, a classe trabalhadora inglesa paga às casas de penhores, as sucessoras dos Monts-de-piété, juros de 100%[21]. Tampouco nos referimos às fantasias sobre o crédito de um dr. Hugh Chamberlayne ou de John Briscoe, que, na última década do século XVII, tentaram livrar a aristocracia inglesa da usura mediante um banco rural que emitisse um papel-moeda baseado na propriedade fundiária[22].
As associações de crédito estabelecidas em Veneza e Gênova nos séculos XII e XIV respondiam à necessidade do comércio marítimo e do comércio atacadista nele baseado de se emanciparem do domínio da usura anacrônica e da monopolização do comércio de dinheiro. Se os bancos fundados nessas cidades-repúblicas assumiram ao mesmo tempo a forma de instituições de crédito público, das quais o Estado recebia adiantamentos por conta de impostos a arrecadar, não se deve esquecer que os próprios comerciantes que formavam as associações eram os cidadãos mais proeminentes daqueles Estados e estavam interessados em se emancipar dos usurários[23] tanto o governo quanto a si mesmos, ao mesmo tempo que buscavam obter um controle maior e mais seguro sobre o Estado. Assim, quando chegou o momento de fundar o Banco da Inglaterra, os tories protestaram: “Os bancos são instituições republicanas. Bancos prósperos existiram em Veneza, Gênova, Amsterdã e Hamburgo. Quem já ouviu falar de um banco da França ou da Espanha?”.
O banco de Amsterdã, em 1609, designa tão pouco quanto o de Hamburgo (1619) uma época no desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Ele era um banco exclusivamente de depósitos. Os cheques emitidos pelo banco não eram, na realidade, mais do que recibos pelo metal precioso, amoedado ou não, que nele estava depositado e só circulavam com o endosso de seus receptores. Na Holanda, no entanto, o comércio e a manufatura desenvolveram o crédito comercial e o comércio de dinheiro, e o capital portador de juros, no curso de seu próprio desenvolvimento, foi subordinado ao capital industrial e comercial. Isso já se revelava no baixo nível da taxa de juros. Mas, no século XVII, a Holanda era considerada o modelo de desenvolvimento econômico, tal como a Inglaterra atualmente. Naquele país, o monopólio da antiquada usura, que se baseia na pobreza, desfez-se por si mesmo.
Ao longo de todo o século XVIII, ouve-se o grito, apoiado no exemplo da Holanda, pelo rebaixamento forçado da taxa de juros (e a legislação é alterada nesse sentido), a fim de subordinar o capital portador de juros ao capital comercial e industrial, e não o inverso. O principal porta-voz desse movimento era sir Josiah Child, o pai da banca privada inglesa ordinária. Ele clamava contra o monopólio dos usurários da mesma maneira como os alfaiates do ramo de confecção em massa Moses & Son o faziam quando lideravam a luta contra o monopólio dos “alfaiates privados”. Esse mesmo Josiah Child é também o pai da especulação acionária na Inglaterra. Assim, esse autocrata da Companhia das Índias Orientais defende seu monopólio em nome da liberdade do comércio. E diz, contra Thomas Manley (Interest of Money Mistaken [Londres, 1668]):
“Como paladino do tímido e trêmulo bando de usurários, ele instala sua bateria principal no ponto que declarei ser o mais fraco de todos [...], nega abertamente que a baixa taxa de juros seja a causa da riqueza e assegura que ela é apenas seu efeito.” (Traités sur le Commerce etc., 1669. Tradução. Amsterdã e Berlim, 1754 [p. 120]) “Se o que enriquece um país é o comércio e se a redução dos juros aumenta o comércio, então uma redução dos juros ou uma restrição da usura representa uma fecunda causa principal das riquezas de uma nação. De modo nenhum é absurdo dizer que o mesmo fator pode, ao mesmo tempo, ser em certas condições a causa e, em outras, o resultado.” (p. 55) “O ovo é a causa da galinha, e a galinha, a causa do ovo. A redução da taxa de juros pode provocar um aumento da riqueza, e o aumento da riqueza pode provocar uma redução ainda maior dos juros.” (p. 156) “Sou defensor da indústria, e meu adversário defende a preguiça e o ócio.” (p. 179)
Essa violenta batalha contra a usura, essa exigência da subordinação do capital portador de juros ao capital industrial, é apenas o prelúdio das criações orgânicas que essas condições da produção capitalista engendram no sistema bancário, o qual, por um lado, despoja o capital usurário de seu monopólio, ao concentrar e lançar no mercado de dinheiro todas as reservas inativas e, por outro lado, limita o monopólio dos próprios metais preciosos mediante a criação do dinheiro creditício.
Do mesmo modo que aqui em Child, em todos os escritos sobre o sistema bancário publicados na Inglaterra no último terço do século XVII e no começo do XVIII encontramos a oposição à usura, a exigência de emancipar dela o comércio, a indústria e o Estado. Ao mesmo tempo, ilusões colossais sobre o efeito milagroso do crédito, a desmonopolização dos metais preciosos, sua substituição pelo papel etc. O escocês William Patterson, fundador do Banco da Inglaterra e do Banco da Escócia, pode ser considerado com justiça o precursor de Law.
“Todos os ourives e os penhoristas levantaram um clamor furioso” contra o Banco da Inglaterra ([Thomas Babington] Macaulay, The History of England [from the Accession of James II], [Londres, 1854-1861,] t. IV, p. 499).
“Durante os dez primeiros anos, o banco enfrentou grandes dificuldades, uma grande hostilidade do exterior; suas cédulas só eram aceitas muito abaixo de seu valor nominal […]. Os ourives” (em cujas mãos o comércio de metais preciosos serviu de base a um negócio de tipo primitivo) “tramavam graves intrigas contra o banco, porque este havia reduzido seus negócios, minguado seu desconto e se apropriado de suas transações com o governo.” (J.[ohn] Francis, [History of the Bank of England,] cit., p. 73).
Já antes da fundação do Banco da Inglaterra, em 1683, surgiu o plano de um National Bank of Credit, cuja finalidade, entre outras, era que
“os negociantes que possuem uma quantidade considerável de mercadorias possam, com o apoio desse banco, depositar suas mercadorias e obter um crédito com base em seus estoques imobilizados, dar trabalho a seus empregados e aumentar seus negócios até encontrarem um bom mercado, em vez de vender com prejuízo.”
Depois de muitos esforços, esse Bank of Credit foi fundado em Devonshire House, Bishopsgate Street. Ele emprestava dinheiro a industriais e comerciantes, com garantia de mercadorias depositadas até ¾ do valor destas últimas, na forma de letras de câmbio. Para tornar circuláveis essas letras, em cada ramo de negócios algumas pessoas foram reunidas em sociedade, da qual cada proprietário de tais letras podia obter mercadorias com a mesma facilidade, como se oferecesse por elas um pagamento à vista. Esse negócio bancário não chegou a florescer. Seu mecanismo era complicado demais, e muito grande o risco que se corria em caso de depreciação das mercadorias.
Se nos concentrarmos no verdadeiro conteúdo daqueles escritos que acompanham e fomentam teoricamente a formação do moderno sistema de crédito na Inglaterra, não encontraremos neles mais que a exigência de que o capital portador de juros e, em geral, os meios de produção suscetíveis de ser emprestados devem submeter-se ao modo de produção capitalista como a uma de suas condições. Por outro lado, se nos limitarmos à simples fraseologia, ficaremos frequentemente assombrados diante da coincidência, às vezes literal, entre essas obras e as ilusões dos saint-simonianos acerca do crédito e dos bancos.
Do mesmo modo que, nos fisiocratas, o cultivateur não é o verdadeiro agricultor, mas o grande arrendatário, para Saint-Simon, e ainda hoje para seus discípulos, o travailleur não é o trabalhador, mas o capitalista industrial e comercial. “Un travailleur a besoin d’aides, de seconds, d’ouvriers; il les cherche intelligents, habiles, dévoués; il les met à l’œuvre, et leurs travaux sont productifs”[a] ([Prosper Enfantin,] Religión saint-simonniene. Economie politique et politique, Paris, [Au Bureau du Globe,] 1831, p. 104). Não se deve esquecer que até sua última obra, Nouveau christianisme, Saint-Simon não se apresenta diretamente como porta-voz da classe trabalhadora e explica a emancipação desta última como o objetivo final de seus esforços. Todos os seus escritos anteriores são, na realidade, mera glorificação da moderna sociedade burguesa contra a sociedade feudal ou uma glorificação dos industriais e dos banqueiros contra os marechais e os fabricantes jurídicos de leis da era napoleônica. Que diferença, quando comparados aos escritos de Owen[24] nessa mesma época! Também nos escritos dos sucessores de Saint-Simon o capitalista industrial continua a ser, como mostra a passagem citada, o travailleur par excellence [trabalhador por excelência]. Quem lê suas obras de maneira crítica não se impressiona com o fato de que a realização de seus sonhos creditícios e bancários fosse o Crédit mobilier, fundado pelo ex-saint-simoniano Émile Péreire – fórmula que, aliás, só poderia predominar num país como a França, onde nem o sistema de crédito nem a grande indústria haviam se desenvolvido até alcançar o nível moderno. Instituição semelhante teria sido impossível na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Nas seguintes passagens, extraídas da Doctrine de St. Simon. Exposition, Première année. 1828-[18]29, 3. ed., Paris, 1931, já está contido o germe do Crédit mobilier. Logicamente, o banqueiro pode adiantar dinheiro mais barato do que o capitalista e o usurário privado. A esses banqueiros, portanto, é “possível adiantar ferramentas ao industrial a um preço muito inferior, ou seja, a juros mais baixos do que poderiam fazê-lo os proprietários fundiários e os capitalistas, os quais facilmente se equivocariam na seleção dos mutuários” (p. 202). Os mesmos autores acrescentam, numa nota:
“A vantagem que deveria resultar da interposição do banqueiro entre os ociosos e os travailleurs é frequentemente contra-arrestada e até mesmo anulada pela oportunidade, que nossa sociedade desorganizada oferece ao egoísmo, de se manifestar sob as diversas formas de fraude e de charlatanismo; os banqueiros se intrometem frequentemente entre os travailleurs e os ociosos, a fim de explorar uns e outros em prejuízo da sociedade.”
Travailleur significa aqui capitaliste industriel [capitalista industrial]. Além disso, é falso considerar os meios de que dispõe o moderno sistema bancário simplesmente como meios dos ociosos. Em primeiro lugar, trata-se da parte do capital que industriais e comerciantes conservam momentaneamente inativo em forma de dinheiro, como reserva monetária ou capital a investir; portanto, trata-se de capital ocioso, mas não de capital de gente ociosa. Em segundo lugar, daquela parte das rendas e das poupanças de todos que é permanente ou transitoriamente destinada à acumulação. Ambas as coisas são essenciais para o caráter do sistema bancário.
Não se deve esquecer, no entanto, que, em primeiro lugar, o dinheiro – na forma de metais preciosos – permanece a base da qual o sistema de crédito, pela própria natureza da coisa, jamais se pode desprender. Em segundo lugar, que o sistema de crédito detém o monopólio dos meios sociais de produção (na forma de capital e propriedade fundiária) nas mãos de particulares e que ele mesmo é, por um lado, uma forma imanente do modo de produção capitalista e, por outro, uma força motriz de seu desenvolvimento para sua forma mais elevada e última possível.
Como já fora exposto em 1697, em Some Thoughts of the Interest of England, o sistema bancário, por sua organização formal e sua centralização, é o produto mais artificial e mais refinado que pode resultar do modo de produção capitalista em geral. Isso explica o enorme poder de uma instituição como o Banco da Inglaterra sobre o comércio e a indústria, embora seu movimento real permaneça totalmente de fora de seu domínio e se comporte em relação a ele de maneira passiva. Com isso, está certamente dada a forma de uma contabilidade e uma distribuição gerais dos meios de produção em escala social, mas somente a forma. O lucro médio do capitalista individual, ou de cada capital particular, é, como vimos, determinado não pelo mais-trabalho, de que esse capital se apropria em primeira mão, mas pela quantidade total de mais-trabalho de que o capital inteiro se apropria e do qual cada capital particular extrai seus dividendos como alíquota do capital total. Esse caráter social do capital só se consuma e se realiza integralmente mediante o desenvolvimento pleno dos sistemas de crédito e bancário. Por outro lado, esse sistema segue seu próprio desenvolvimento. Oferece aos capitalistas industriais e comerciais todo o capital disponível da sociedade, inclusive o capital potencial, ainda não ativamente comprometido, de modo que nem o prestamista nem quem emprega esse capital é seu proprietário ou seu produtor. Com isso, ele suprime o caráter privado do capital e, assim, contém em si, somente em si, a supressão do próprio capital. Por meio do sistema bancário, a distribuição do capital é retirada das mãos dos capitalistas particulares e dos usurários como um negócio especial, como função social. Ao mesmo tempo, porém, o banco e o crédito se convertem no meio mais poderoso de impulsionar a produção capitalista para além de seus próprios limites e um dos mais eficazes promotores das crises e da fraude.
Além disso, ao substituir o dinheiro por diversas formas de crédito circulante, o sistema bancário mostra que o dinheiro, na realidade, nada mais é que uma expressão particular do caráter social do trabalho e de seus produtos, mas que, em oposição à base da produção privada, tem sempre de aparecer, em última análise, como uma coisa, uma mercadoria especial ao lado de outras mercadorias.
Finalmente, não resta a menor dúvida de que o sistema de crédito servirá como uma poderosa alavanca durante a transição do modo de produção capitalista para o modo de produção do trabalho associado; mas somente como um elemento em conexão com outras grandes revoluções orgânicas do próprio modo de produção. Por outro lado, as ilusões quanto ao poder miraculoso do sistema de crédito e bancário, no sentido socialista, nascem de uma falta completa de familiaridade com o modo de produção capitalista e o sistema de crédito como uma de suas formas. Assim que os meios de produção deixarem de se transformar em capital (e nisso está implicada a abolição da propriedade fundiária privada), o crédito como tal perderá todo sentido, o que, aliás, é algo que foi compreendido até pelos saint-simonianos. Em contrapartida, enquanto o modo de produção capitalista continuar a existir, perdurará também, como uma de suas formas, o capital portador de juros, que de fato constitui a base de seu sistema de crédito. Somente aquele escritor sensacionalista, Proudhon, que queria manter a produção de mercadorias e abolir o dinheiro[25], foi capaz de imaginar o monstruoso crédit gratuit [crédito gratuito], essa pretensa realização do desejo piedoso do ponto de vista da pequena burguesia.
Em Religion saint-simonienne, Économie [politique] et politique, lê-se na p. 45:
“Numa sociedade em que uns possuem as ferramentas da indústria sem ter a capacidade ou a vontade de empregá-las, enquanto outras pessoas industriosas não têm quaisquer instrumentos de trabalho, o crédito tem a finalidade de transferir esses instrumentos, da maneira mais fácil possível, das mãos dos primeiros, seus possuidores, para as dos outros, que sabem utilizá-los. Notemos que, segundo essa definição, o crédito é uma consequência da maneira como a propriedade está constituída.”
Com essa constituição da propriedade, portanto, o crédito desaparece. Mais adiante, na p. 98, lê-se que os bancos atuais “consideram-se no dever de seguir o movimento iniciado por transações ocorridas fora de seu domínio, mas não a impulsioná-lo; em outras palavras, os bancos desempenham o papel de capitalistas em relação aos travailleurs, aos quais adiantam capitais”. Na ideia de que os próprios bancos devem assumir a direção e distinguir-se “pelo número e pela utilidade dos estabelecimentos comanditados e dos trabalhos que promovem”, (p. 101) está latente a noção do crédit mobilier. Do mesmo modo, Constantin Pecqueur pede que os bancos (o que os saint-simonianos chamam de systême général des banques [sistema geral de bancos]) “governem a produção”. Pecqueur é essencialmente um discípulo de Saint-Simon, embora muito mais radical. Ele quer que “a instituição de crédito [...] controle o movimento inteiro da produção nacional”.
“Tentai criar um estabelecimento nacional de crédito, que forneça meios a pessoas de talento e mérito, mas desprovidas de posses, sem, no entanto, interligar forçosamente esses mutuários entre si por meio de uma estreita solidariedade na produção e no consumo, mas, ao contrário, de maneira que eles mesmos determinem suas trocas e suas produções. Por esse caminho, conseguireis apenas o que já o conseguem agora os bancos privados: a anarquia, a desproporção entre produção e consumo, a ruína súbita de uns e o enriquecimento súbito de outros; de modo que vossa instituição jamais irá além de produzir para alguns uma quantidade de benefícios equivalente a um infortúnio a ser suportado pelos outros. [...] Tereis apenas fornecido aos trabalhadores assalariados por vós assistidos os meios de competir uns com os outros do mesmo modo que fazem agora seus patrões capitalistas.” (C. Pecqueur, Théorie nouvelle d’économie soc.[iale] et pol.[itique], Paris, [Capelle,] 1842, p. 434)
Vimos que o capital comercial e o capital portador de juros são as formas mais antigas do capital. Porém, naturalmente o capital portador de juros se apresenta na imaginação popular como a forma do capital par excellence. No capital comercial, ocorre uma atividade mediadora, considerada logro, trabalho ou o que seja. Em contrapartida, no capital portador de juros, o caráter autorreprodutor do capital, o valor que se valoriza a si mesmo, a produção do mais-valor, apresenta-se como qualidade oculta, em estado puro. Resulta daí também que mesmo alguns economistas políticos, particularmente em países em que o capital industrial ainda não está de todo desenvolvido, como na França, aferram-se ao capital portador de juros como forma básica do capital e concebem a renda da terra, por exemplo, apenas como uma forma modificada dela, uma vez que aqui também predomina a forma de empréstimo. Dessa maneira, deixa-se de compreender por completo a articulação interna do modo de produção capitalista, e passa despercebido o fato de que a terra, assim como o capital, só é emprestada a capitalistas. É claro que, em vez de dinheiro, também se podem emprestar meios de produção in natura, como máquinas e edifícios empresariais etc. Mas eles representam, então, uma soma de dinheiro determinada, e o fato de que além dos juros seja paga uma parcela para a depreciação decorre de seu valor de uso, isto é, da forma natural específica desses elementos do capital. O fator decisivo é aqui, uma vez mais, se eles são emprestados ao produtor direto, o que pressupõe a inexistência do modo de produção capitalista – pelo menos na esfera em que isso ocorre –, ou se são emprestados ao capitalista industrial, o que é precisamente o pressuposto na base do modo de produção capitalista. Ainda mais impróprio e absurdo é levar a essa questão o empréstimo de casas etc. para o consumo individual. Que a classe trabalhadora também é fraudada dessa forma, e de maneira escandalosa, é evidente; mas isso também ocorre pelas mãos do varejista, que vende os meios de subsistência ao trabalhador. Essa é uma exploração secundária, paralela à exploração original, que tem lugar no próprio processo de produção. A distinção entre vender e emprestar é aqui completamente irrelevante e formal; como já mostramos, é uma diferenciação que só aparece como essencial para quem desconhece por completo a conexão real.
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A usura, assim como o comércio, explora um modo de produção dado; não o cria, relaciona-se com ele externamente. A usura tenta conservá-lo de maneira direta, a fim de poder explorá-lo sempre de novo; ela é conservadora e não faz mais do que tornar esse modo de produção mais miserável. Quanto menos os elementos de produção entram no processo de produção como mercadorias e dele saem como mercadorias, mais a sua origem no dinheiro aparece como um ato separado. Quanto mais insignificante é o papel desempenhado pela circulação na reprodução social, mais florescente é a usura.
Que a riqueza monetária se desenvolve como um tipo especial de riqueza significa, em relação ao capital usurário, que ele possui todos os seus títulos de crédito na forma de títulos de crédito monetários. Esse capital se desenvolve com mais força num país quanto mais a massa da produção se limita a prestações in natura, isto é, a valores de uso.
A usura é uma poderosa alavanca para a formação dos pressupostos do capital industrial, na medida em que desempenha dupla função: primeiro, de constituir em geral, ao lado da riqueza comercial, uma riqueza monetária autônoma; segundo, a de se apropriar das condições de trabalho, isto é, de arruinar os possuidores das antigas condições de trabalho.
“Na Idade Média, a população era puramente agrícola. Num sistema tal como o governo feudal, não pode haver senão pouco intercâmbio e, por conseguinte, pouco lucro. Por isso, as leis contra a usura na ldade Média se justificavam. Além disso, num pais agrícola uma pessoa raramente pretende pegar dinheiro emprestado, a não ser que essa pessoa tenha caído na pobreza e na miséria... No reinado de Henrique VIII, os juros foram limitados a 10%; no de Jaime I, a 8%; no de Carlos II, a 6%; no de Ana, a 5% [...]. Naquele tempo, os prestamistas detinham um monopólio, se não de direito, ao menos de fato, e por isso era necessário impor-lhes certas restrições, assim como aos outros monopolistas [...]. Em nossos dias, é a taxa de lucro que regula a taxa de juros, ao passo que, naquela época, era a taxa de juros que regulava a taxa de lucro. Quando o prestamista de dinheiro cobrava do comerciante uma alta taxa de juros, este tinha de adicionar ao preço de suas mercadorias uma taxa de lucro mais alta. Por isso, uma grande soma de dinheiro era tirada dos bolsos dos compradores e transferida para os dos prestamistas.” ([James William] Gilbart, History and Princ.[iples] of Banking, [Londres, G. Bell and Sons, 1882,] p. 164-5)
“Fico sabendo que, em todas as feiras de Leipzig, tomam-se anualmente 10 florins, isto é, 30 em cada 100; alguns acrescentam a feira de Neuenburg, e assim se chega a 40 em cada 100; se de fato é assim, não sei. Com os diabos, onde isso vai nos levar? [...] Quem agora possui em Leipzig 100 florins, toma 40 por ano; isso equivale a devorar um camponês ou um burguês em um ano. Se possui 1.000 florins, toma 400 por ano, o que é o mesmo que devorar um cavalheiro ou um nobre rico em um ano. Se possui 10.000, toma por ano 4.000, o que significa devorar um conde rico em um ano. Se possui 100.000, como deve ser o caso dos grandes comerciantes, toma 40.000 anualmente, o que equivale a devorar um grande príncipe rico em um ano. Se possui 1.000.000, toma por ano 400.000, o que é o mesmo que devorar um grande rei em um ano. Com isso, não põe absolutamente em risco nem seu corpo nem seus bens; não trabalha, fica sentado junto ao forno, assando maçãs; assim, um ladrão pode ficar sentado em casa e devorar um mundo inteiro em dez anos.” ([M.[artinho] Lutero,] “An die Pfarrherrn wider den Wucher zu predigen”, de 1524, em Luther’s Werke, Wittenberg, 1589, parte VI [p. 312])
“Há 15 anos escrevi contra a usura, que à época já atingira uma extensão tão ampla que me impediu de esperar qualquer melhora. Desde então, ela se tornou tão presunçosa que não quer mais ser vício, pecado ou opróbrio, mas glorificada como virtude e honra, como se fizesse um grande bem e prestasse serviços cristãos às pessoas. De que adianta dar conselhos, se o opróbrio se tornou honra, e o vício, virtude?” (“An die Pfarrherrn wider den Wucher zu predigen”, Wittenberg, 1540)
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“Judeus, lombardos, usurários e extorsionários foram nossos primeiros banqueiros, nossos primitivos traficantes de dinheiro, dotados de um caráter que se pode considerar quase infame [...]. A eles se juntaram os ourives de Londres. Como um corpo [...], nossos banqueiros primitivos eram [...] uma sociedade muito má; usurários vorazes, extorsionários com coração de ferro.” (D.[aniel] Hardcastle, Banks and Bankers, 2. ed., Londres, 1843, p. 19-20)
“O exemplo fornecido por Veneza” (da criação de um banco) “foi, assim, rapidamente imitado; todas as cidades marítimas e, em geral, todas aquelas célebres por sua independência e seu comércio, fundaram seus primeiros bancos. O retorno de seus navios, pelo qual era preciso com frequência esperar muito tempo, levou inevitavelmente ao costume da concessão de crédito, que foi intensificado pela descoberta da América e pelo comércio com aquele continente.” (Esse é o ponto principal.) “O carregamento dos navios tornava necessária a realização de grandes empréstimos, o que já ocorria na Antiguidade, em Atenas e em outros cantos da Grécia. Em 1380, a cidade hanseática de Bruges possuía uma companhia de seguros.” (M.[arie] Augier, [Du] crédit public, cit., p. 202-3)
Nas obras de sir Dudley North, entre outros, é possível ver em que medida os empréstimos aos proprietários de terra e, em geral, aos abastados que fruem da riqueza ainda predominavam, mesmo na Inglaterra, no último terço do século XVII, antes do desenvolvimento do moderno sistema de crédito. Ele foi não só um dos principais comerciantes ingleses, mas também um dos mais importantes economistas teóricos de sua época.
“O dinheiro empregado a juros em nosso país não chega sequer a um décimo da soma concedida a homens de negócios para efetuarem seus negócios, mas é, na maior parte, emprestado para ser gasto em artigos de luxo e cobrir as despesas de pessoas que, embora grandes proprietários da terra, gastam mais rapidamente do que o ganho de suas propriedades; e, como evitam a todo custo a venda de suas terras, preferem hipotecar suas propriedades.” (Discourses upon Trade, Londres, 1691, p. 6-7)
No século XVIII, na Polônia:
“Varsóvia efetuava grandes negócios com letras, que, no entanto, tinham a usura de seus banqueiros como base e meta principais. A fim de obter dinheiro, a ser emprestado aos grandes senhores esbanjadores a 8% ou mais, eles buscavam e encontravam no exterior um crédito de letras descobertas, isto é, que não tinha por base nenhum comércio de mercadorias, mas que as pessoas contra as quais as letras eram emitidas no exterior aceitavam com paciência, enquanto não deixassem de chegar pontualmente as remessas de dinheiro postas em movimento por essas letras de especulação. A falência de gente como Tepper e outros banqueiros muito respeitáveis de Varsóvia foi, para eles, uma severa punição.” (J.[ohann] G.[eorg] Büsch, Theoretisch-praktische Darstellung der Handlung etc, 3. ed., Hamburgo, [B. G. Hoffmann,] 1808, v. II, p. 232-3)
“A cobrança de juros fora proibida pela Igreja, mas não a venda da propriedade com o objetivo de encontrar alívio numa situação difícil. Ela não proibira nem mesmo a transferência de propriedade ao prestamista de dinheiro por certo tempo ou até que o devedor pudesse pagar ao prestamista a quantidade emprestada, permitindo a este último usufruir da propriedade como uma garantia, além de, durante esse usufruto, encontrar um substituto para o dinheiro por ele emprestado […]. A própria Igreja, ou as comunas e pia corpora [corporações piedosas] a ela pertencentes, tirava grande proveito dessa situação, sobretudo no tempo das cruzadas. Isso fez com que grande parte da riqueza nacional fosse tomada pelas chamadas ‘mãos mortas’, uma vez que os judeus não podiam praticar tal usura, pois a posse de uma caução tão sólida não era fácil de ocultar […]. Sem a proibição dos juros, as igrejas e os conventos jamais teriam ficado tão ricos.” (Ibidem, p. 55)
[21] “Se os juros das casas de penhores se tornam tão excessivos é devido aos frequentes empenhos e resgates dentro do mesmo mês e à prática de penhorar um artigo para resgatar outro e, com isso, obter uma pequena diferença em dinheiro. Em Londres, há 240 casas de penhores autorizadas e, no interior do país, cerca de 1.450. Calcula-se que o capital investido nesse negócio seja superior a [£]1 milhão; esse capital realiza pelo menos três rotações ao ano e rende, a cada vez, uma média de 33½%, de modo que as classes humildes da Inglaterra pagam anualmente 100% pelo adiantamento temporário de £1 milhão, sem contar o prejuízo devido à perda do prazo de resgate dos artigos penhorados” (J. [D.] Tuckett, A History of the Past and Present State of the Labouring Population, v. 1, Londres, [Longman, Brown, Green and Longmans,] 1846, p. 114).
[22] Mesmo nos títulos de suas obras, anunciavam como objetivo principal “a prosperidade geral dos proprietários fundiários, o grande aumento do valor da propriedade fundiária, a isenção de impostos para a nobreza e para a gentry etc., o aumento de sua renda anual etc.”. Apenas os usurários sairiam perdendo, esses piores inimigos da nação, que causavam mais prejuízos à nobreza e à yeomanry do que um exército invasor francês teria causado.
[23] “Charles II da Inglaterra, por exemplo, ainda tinha de pagar aos ‘ourives’” (precursores dos banqueiros) “enormes juros usurário e ágios, de 20% a 30%. Um negócio tão lucrativo levava os ‘ourives’ a realizar cada vez mais adiantamentos ao rei, a antecipar as receitas globais de impostos, a aceitar como penhor toda liberação de recursos pelo Parlamento, tão logo fosse feita, e também a competir entre si nas compras e a aceitar bills [letras], orders [ordens de pagamento] e tallies [talhas], de modo que, na realidade, o conjunto das receitas públicas passava por suas mãos” (John Francis, History of the Bank of England, [3. ed.,] Londres, [Willoughby & Co.,] 1848, v. I, p. 31). “A criação de um banco já havia sido proposta algumas vezes antes. Por fim, tornou-se necessidade” (ibidem, p. 38). “O banco era necessário, entre outras coisas, para que o governo, sugado até a última gota pelos usurários, pudesse obter dinheiro a uma taxa suportável de juros, com a garantia de autorizações parlamentares” (ibidem, p. 59-60).
[a] “Um trabalhador necessita de ajudantes, de auxiliares, de operários; ele os quer inteligentes, hábeis, dedicados; ele os põe em ação, e os trabalhos são produtivos.” (N. T.)
[24] Na revisão do manuscrito, Marx teria sem dúvida modificado profundamente essa passagem. Ela está inspirada no papel desempenhado pelos ex-saint-simonianos sob o segundo Império Francês. Nessa época, precisamente no momento em que Marx escrevia essa passagem, as fantasias de crédito da escola, que pretendiam redimir o mundo, realizavam-se, por ironia da história, sob a forma de fraudes numa escala até então desconhecida. Mais tarde, Marx referiu-se sempre com admiração ao gênio e ao talento enciclopédico de Saint-Simon. Se este, em seus escritos anteriores, ignorava a oposição entre a burguesia e o proletariado, que começava a se formar na França, e ainda incluía entre os travailleurs a parte da burguesia ocupada ativamente na produção, isso correspondia à concepção de Fourier, que pretendia harmonizar o capital e o trabalho, e se explica pela situação econômica e política da França naquela época. Se, a respeito disso, Owen enxergava adiante, é porque ele vivia em outro ambiente, em meio à Revolução Industrial e ao antagonismo de classes que já começava a se acirrar. (F. E.)
[25] Karl Marx, Misére de la philosophie (Bruxelas/Paris, [C. G. Vogler/A. Frank,] 1847) [ed. bras.: Miséria da filosofia, trad. José Paulo Netto, São Pualo, Boitempo, no prelo]; Zur Kritik der polit.[ischen] Oekonomie, p. 64.