Para o propósito da investigação que se segue, podemos desconsiderar a distinção entre preço de produção e valor, uma vez que essa distinção desaparece inteiramente quando, como é o caso aqui, o valor do produto total anual do trabalho passa a ser analisado, ou seja, o produto do capital social total.
Lucro (ganho empresarial mais juros) e renda não são mais do que formas peculiares assumidas por certas partes especiais do mais-valor das mercadorias. A grandeza do mais-valor é o limite da soma das grandezas das parcelas em que ela pode ser decomposta. Lucro médio mais renda são, portanto, iguais ao mais-valor. Pode ocorrer que uma parte do mais-trabalho contida nas mercadorias – e, por conseguinte, o mais-valor – não entre imediatamente na equalização que resulta no lucro médio, de maneira que uma parcela do valor das mercadorias nem sequer chegue a ser expressa em seu preço. Ocorre que, em primeiro lugar, essa equalização só se dá porque a taxa de lucro cresce ao mesmo tempo que a mercadoria vendida abaixo de seu valor forma um elemento do capital constante, ou porque lucro e renda são representados num produto maior, quando as mercadorias vendidas abaixo de seu valor entram como artigos de consumo individual na parte do valor que se consome como rendimento. Em segundo lugar, porém, isso é suprassumido no movimento médio. Em todo caso, ainda que para a formação do preço seja perdida uma parcela do mais-valor que não foi expressa no preço da mercadoria, a soma do lucro médio mais a renda jamais pode, em sua forma normal, ultrapassar o mais-valor total, embora possa ser menor que ele. Sua forma normal pressupõe um salário que corresponde ao valor da força de trabalho. Mesmo a renda monopólica, na medida em que não consiste numa dedução do salário – portanto, na medida em que não forma nenhuma categoria especial –, deve ser sempre indiretamente uma parte do mais-valor, se não uma parte do excedente de preço sobre os custos de produção da própria mercadoria, da qual ela forma um componente (como no caso da renda diferencial), ou uma parte excedente do mais-valor da própria mercadoria sobre a parte de seu próprio mais-valor medida pelo lucro médio (como no caso da renda absoluta), pelo menos uma parte do mais-valor de outras mercadorias, isto é, das mercadorias que são trocadas por essa mercadoria, cujo preço é monopólico. A soma de lucro médio mais renda fundiária nunca pode ultrapassar a grandeza, da qual eles são partes e que já é dada por essa divisão. Por isso, é indiferente para nossa análise que o mais-valor total das mercadorias, isto é, todo o mais-trabalho incorporado nas mercadorias, se realize ou não em seu preço. O mais-trabalho, aliás, não se realiza totalmente, já pelo fato de que, com a constante variação da grandeza do trabalho socialmente necessário para a produção de dada mercadoria, variação que deriva da constante alteração na força produtiva do trabalho, uma parte das mercadorias terá sempre de ser produzida sob condições anormais e, consequentemente, vendida abaixo de seu valor individual. De todo modo, a soma do lucro e da renda é igual a todo o mais-valor realizado (mais-trabalho) e, para os fins da presente análise, o mais-valor realizado pode ser equiparado ao mais-valor inteiro, porquanto lucro e renda são mais-valor realizado, ou seja, em geral, o mais-valor que entra no preço das mercadorias, ou, na prática, todo mais-valor que forma um componente desse preço.
Por outro lado, o salário, a terceira forma particular do rendimento, é sempre idêntico ao componente variável do capital, isto é, ao componente que não se desembolsa em meios de trabalho, mas na aquisição da força viva de trabalho, na remuneração dos trabalhadores. (O trabalho que se paga no dispêndio de rendimento é, por sua vez, pago pelo salário, pelo lucro ou pela renda; por isso, não constitui nenhuma parcela de valor das mercadorias com que é pago. Ele não entra, portanto, na análise do valor das mercadorias e dos elementos que o formam.) É a objetivação da parte da jornada total de trabalho, na qual se reproduz o valor do capital variável e, com ele, o preço do trabalho: em outras palavras, a parte do valor das mercadorias em que o trabalhador reproduz o valor de sua própria força de trabalho ou o preço de seu trabalho. A jornada total de trabalho se subdivide em duas partes. A primeira, em que ele realiza a quantidade de trabalho necessária para a reprodução do valor de seus próprios meios de subsistência: trata-se da parte paga de seu trabalho total, a parte necessária para sua própria manutenção e reprodução. A parte restante da jornada de trabalho, toda a quantidade excedente de trabalho que ele executa para além do trabalho realizado no valor de seu salário, é mais-trabalho, trabalho não pago, representado no mais-valor de sua produção total de mercadorias (e, por isso, numa quantidade excedente de mercadoria), mais-valor que, por sua vez, é decomposto em distintas partes, já designadas: lucro (lucro empresarial mais juros) e renda.
Assim, a parte total do valor das mercadorias em que se realiza o trabalho inteiro dos trabalhadores – seja esse valor agregado à mercadoria durante um dia ou um ano –, o valor total do produto anual criado por esse trabalho, decompõe-se no valor do salário, do lucro e da renda, pois esse trabalho total se decompõe em trabalho necessário, por meio do qual o trabalhador cria a parte do valor do produto com que, por sua vez, ele mesmo vem a ser pago, ou seja, o salário, e em mais-trabalho não pago, por meio do qual ele cria a parcela do valor do produto que representa o mais-valor e que, logo depois, divide-se em lucro e renda. Além desse trabalho, o trabalhador não executa trabalho nenhum e, além do valor total do produto, que assume as formas de salário, lucro e renda, ele não cria valor nenhum. O valor do produto anual, em que se representa seu trabalho agregado durante o ano, é igual ao salário ou à soma do valor do capital variável e do mais-valor, que, por sua vez, volta a dividir-se nas formas de lucro e renda.
A parte total do valor do produto que o trabalhador cria durante o ano se expressa, pois, na soma anual de valor dos três rendimentos: o valor do salário, do lucro e da renda. Por isso, resulta evidente que o valor da parte constante de capital não está reproduzido no valor dos produtos criados anualmente, pois o salário só é igual ao valor da parte variável do capital adiantada na produção, ao passo que a renda e o lucro são apenas iguais ao mais-valor, ao excedente de valor produzido sobre o valor total do capital adiantado, que, por seu turno, é igual ao valor do capital constante mais o valor do capital variável.
Para a questão que temos de resolver aqui, é absolutamente indiferente que uma parcela do mais-valor transformado em lucro e renda não se consuma como rendimento, mas sirva para a acumulação. A parte desse mais-valor que se poupa como fundo de acumulação serve para a formação de capital novo, adicional, mas não para a reposição do capital velho nem do componente do antigo capital que foi desembolsado, seja em força de trabalho, seja em meios de trabalho. Portanto, a título de simplificação, podemos supor, aqui, que os rendimentos tenham entrado por completo no consumo individual. A dificuldade apresenta dois aspectos. Por um lado, o valor do produto anual, no qual esses rendimentos – salário, lucro, renda – se consomem, contém em si uma parcela de valor igual àquela da parte constante de capital absorvida em tal produto. Contém essa parcela de valor, além daquela que se resolve em salário e da que se reduz a lucro e renda. Seu valor é, pois, = salário + lucro + renda + C, que representa sua parte constante de valor. Ora, como será possível ao valor produzido anualmente, que é apenas = salário + lucro + renda, comprar um produto cujo valor é = (salário + lucro + renda) + C? Como o valor produzido anualmente poderá comprar um produto cujo valor é superior ao seu?
Por outro lado, se desconsideramos a parte do capital constante que não entrou no produto e que, por isso, embora com valor reduzido, segue existindo depois da produção anual das mercadorias; se, por conseguinte, abstraímos por um instante do capital fixo empregado, porém não consumido, então a parte constante do capital adiantado em forma de matérias-primas e matérias auxiliares se encontra totalmente absorvida no novo produto, ao passo que uma parte dos meios de trabalho foi inteiramente consumida e a outra apenas parcialmente, de modo que na produção consumiu-se somente uma parcela de seu valor. Toda essa parcela do capital constante consumida na produção tem de ser reposta in natura. Mantendo-se constantes as demais circunstâncias, isto é, a força produtiva do trabalho, essa parte custa, para sua reposição, a mesma quantidade de trabalho que antes, tendo, portanto, de ser substituída por um equivalente em valor. Onde isso não ocorre, a própria reprodução não pode se dar na antiga escala. Mas a quem cabe executar esses trabalhos, e quem os executa?
Quanto à primeira dificuldade – quem deve pagar a parte constante de valor contida no produto, e com quê? –, supõe-se que o valor do capital constante consumido na produção ressurge como parte do valor do produto. Isso não contradiz os pressupostos da segunda dificuldade, pois já no Livro I, capítulo 5 (“O processo de trabalho e o processo de valorização”), demonstramos como a mera adição de trabalho novo, embora não reproduza o valor antigo, mas só o incremente, isto é, crie apenas valor adicional, faz ao mesmo tempo com que o antigo valor se conserve no produto; além disso, também demonstramos que isso ocorre com o trabalho não na medida em que é criador de valor, ou seja, em que é trabalho em geral, mas em sua função de trabalho produtivo determinado. Nenhum trabalho adicional, portanto, se fazia necessário para conservar o valor da parte constante no interior do produto com que se despende o rendimento, isto é, o valor inteiro criado durante o ano. Mas é sem dúvida necessário um novo trabalho adicional para repor o capital constante consumido em seu valor e valor de uso, durante o ano transcorrido; sem tal reposição, a reprodução é impossível.
Todo trabalho novo agregado fica representado no novo valor criado durante o ano, o qual, por sua vez, decompõe-se em sua totalidade nos três rendimentos: salário, lucro e renda. Por um lado, portanto, não resta nenhum trabalho social excedente para a reposição do capital constante consumido, o qual, em parte, precisa ser reposto in natura e segundo seu valor e, em parte, apenas segundo seu valor (pela mera depreciação do capital fixo). Por outro lado, o valor criado pelo trabalho durante o ano, valor que se decompõe nas formas de salário, lucro e renda e tem de ser gasto nelas, não parece o bastante para pagar ou comprar aquela parte constante do capital que, além de seu próprio valor, tem de estar contida no produto anual.
Como vemos, esse problema já ficou resolvido em nosso estudo da reprodução do capital social total: Livro II, seção III. Se aqui retornamos a isso, é sobretudo porque lá o mais-valor ainda não havia sido desdobrado em suas formas de rendimento: lucro (ganho empresarial mais juros) e renda; por isso, tampouco podia ser tratado nessas formas. Mas também porque precisamente a forma de salário, lucro e renda foi objeto de um incrível erro de análise, que atravessa toda a economia política desde A.[dam] Smith.
No estudo referido, dividimos todo o capital em duas grandes classes: a classe I, que produz meios de produção, e a classe II, que produz meios de consumo individual. A circunstância de que certos produtos podem servir tanto para o desfrute pessoal como para meios de produção (um cavalo, grãos etc.) não invalida de modo nenhum a absoluta correção dessa divisão. Com efeito, ela não é nenhuma hipótese, mas tão somente a expressão de um fato. Tomemos o produto anual de um país. Uma parte do produto, seja qual for sua capacidade de servir de meio de produção, ingressa no consumo individual. É o produto em que são gastos salário, lucro e renda. Esse produto é o produto de um determinado setor do capital social. Esse mesmo capital também pode criar produtos pertencentes à classe I. Na medida em que o faz, a parte desse capital consumida no produto da classe II, num produto que realmente se destina ao consumo individual, não será a parte que fornece os produtos que recaem na classe I e são consumidos produtivamente. Todo esse produto II, que entra no consumo individual e no qual, por isso, se gasta o rendimento, é a existência do capital nele consumido mais o excedente produzido. É, portanto, produto de um capital empregado na mera produção de meios de consumo. Do mesmo modo, o setor I do produto anual, setor que serve de meio de reprodução, matéria-prima e instrumentos de trabalho, por mais capacidade que esse produto tenha naturaliter [por natureza] de servir de meio de consumo, é produto de um capital investido na mera produção de meios de produção. A maioria dos produtos que formam o capital constante se apresenta, mesmo materialmente, em uma forma na qual esse capital não pode entrar no consumo individual. Nos casos em que isso é possível, como o de um camponês que come suas sementes de trigo ou sacrifica seus bois de tração, a barreira econômica funciona para ele exatamente do mesmo modo, a saber, como se essa parte do capital constante existisse em uma forma não consumível.
Como já dissemos, façamos abstração, nas duas classes, da parte fixa do capital constante, que continua a existir in natura e segundo seu valor, independentemente do produto anual das duas classes.
Na classe II, em cujos produtos se despendem salário, lucro e renda – ou seja, nos quais são consumidos os rendimentos –, o próprio produto se divide, segundo seu valor, em três componentes. O primeiro é igual ao valor da parte constante do capital consumida na produção; o segundo é igual ao valor da parte variável adiantada na produção, desembolsada em salários; o terceiro, por fim, é igual ao mais-valor produzido, portanto = lucro + renda. O primeiro componente do produto da classe II, o valor da parte constante do capital, não pode ser consumido pelos capitalistas, nem pelos trabalhadores da classe II, tampouco pelos proprietários fundiários. Ele não constitui nenhuma parte de seus rendimentos, mas deve ser reposto in natura e, para que isso seja possível, é preciso vendê-lo. Em contrapartida, os dois outros componentes desse produto são iguais ao valor dos rendimentos gerados nessa classe = salário + lucro + renda.
Na classe I, o produto, no que diz respeito a sua forma, é constituído pelos mesmos componentes. No entanto, a parte que constitui seu rendimento – salário + lucro + renda –, quer dizer, a parte variável do capital + o mais-valor, não se consome aqui na forma natural dos produtos dessa classe I, mas nos produtos da classe II. O valor dos rendimentos da classe I, portanto, precisa ser consumido na parte do produto da classe II, que constitui o capital constante de II a ser reposto. Do produto da classe II, a parte que tem de repor o capital constante dessa mesma classe é consumida em sua forma natural pelos trabalhadores, pelos capitalistas e pelos proprietários fundiários da classe I. Eles desembolsam seus rendimentos nesse produto II. Por outro lado, o produto de I, em sua forma natural, na medida em que representa rendimento da classe I, deve ser consumido produtivamente pela classe II, repondo in natura o capital constante desta última. Por fim, a parte constante do capital da classe I, uma vez consumida, é reposta pelos próprios produtos dessa classe, formados precisamente de meios de trabalho, matérias-primas e materiais auxiliares etc., em parte pelo intercâmbio entre os capitalistas I, em parte porque uma parcela desses capitalistas pode voltar a empregar diretamente seu próprio produto como meio de produção.
Retomemos o esquema (Livro II, capítulo 20, II [p. 501]) da reprodução simples:
I. 4.000c + 1.000v + 1.000m = 6.000 |
|
= 9.000 |
|
II. 2.000c + 500v + 500m = 3.000 |
De acordo com isso, em II os produtores e os proprietários fundiários consomem 500v + 500m = 1.000 como rendimento; restam 2.000c a serem repostos. Tal produto é consumido por trabalhadores, capitalistas e rentistas de I, cuja receita é = 1.000v + 1.000m = 2.000. O produto consumido de II é consumido como rendimento de I, e a parte do rendimento de I representada no produto que não se pode consumir é consumida como capital constante de II. Falta, portanto, prestar contas dos 4.000c em I. Estes são repostos pelo próprio produto de I = 6.000, ou melhor = 6.000 - 2.000, porquanto esses 2.000 já se encontram convertidos em capital constante para II. Porém, é preciso observar que esses números foram escolhidos arbitrariamente, ou seja, que a relação entre o valor do rendimento e o valor do capital constante de II também parece arbitrária. É evidente, no entanto, que na medida em que o processo de reprodução transcorre em plena normalidade, e mantendo-se constantes as demais circunstâncias, isto é, abstraindo da acumulação, a soma do valor de salário, lucro e renda na classe I tem de coincidir com o valor da parte constante de capital da classe II. Caso contrário, a classe II não tem como repor seu capital constante nem a classe I pode converter em consumível seu rendimento inconsumível.
O valor do produto-mercadoria anual, do mesmo modo como o valor do produto-mercadoria de um investimento particular de capital e como o valor de cada mercadoria individual, decompõe-se, portanto, em duas partes de valor: A, que repõe o valor do capital constante adiantado, e B, que se apresenta na forma de rendimento como salário, lucro e renda. O componente de valor B é uma antítese ao primeiro, A, uma vez que este último, mantendo-se inalteradas as demais circunstâncias, 1) jamais assume a forma de rendimento, 2) sempre reflui na forma de capital, mais precisamente de capital constante. No entanto, o outro componente, B, também é, por sua vez, contraditório em si mesmo. Lucro e renda têm em comum com o salário o fato de os três constituírem formas de rendimento. Apesar disso, distinguem-se essencialmente porque no lucro e na renda se representa mais-valor, ou seja, trabalho não pago, e no salário, trabalho pago. A parte de valor do produto que representa salário desembolsado, ou seja, que repõe o salário e, de acordo com nossos pressupostos, segundo os quais a reprodução se realiza na mesma escala e sob as mesmas condições, converte-se novamente em salário, reflui inicialmente como capital variável, como um componente do capital que se deve adiantar de novo para a reprodução. Esse componente funciona de dois modos. Primeiro, existe na forma de capital e, como tal, é trocado pela força de trabalho. Nas mãos do trabalhador, converte-se no rendimento que este último obtém com a venda de sua força de trabalho; na qualidade de rendimento é transformado em meios de subsistência e, por fim, consumido. Esse duplo processo se mostra na mediação da circulação do dinheiro. O capital variável é adiantado em dinheiro, desembolsado no pagamento de salários. Essa é sua primeira função como capital. Ele é trocado por força de trabalho e, na exteriorização desta última, transforma-se em trabalho. Esse é o processo para o capitalista. Em segundo lugar: com esse dinheiro, os trabalhadores compram uma parte de seu produto-mercadoria, que se mede por esse dinheiro e é por eles consumido como rendimento. Se abstraímos da circulação do dinheiro, então uma parte do produto do trabalhador está no bolso do capitalista, na forma de capital disponível. Ele adianta essa parte como capital, cedendo-a ao trabalhador em troca de nova força de trabalho, ao passo que o trabalhador a consome como rendimento, diretamente ou mediante troca por outras mercadorias. Assim, a parte do valor do produto que na reprodução está destinada a se transformar em salário, em rendimento para os trabalhadores, retorna primeiro para as mãos do capitalista na forma de capital, mais precisamente, de capital variável. Que ele reflua nessa forma é condição fundamental para que se voltem a reproduzir continuamente o trabalho como trabalho assalariado, os meios de produção como capital e o próprio processo de produção como processo capitalista.
Para não nos desviarmos em dificuldades estéreis, temos de distinguir entre, de um lado, rendimento bruto e rendimento líquido e, de outro, receita bruta e receita líquida.
Por rendimento ou o produto bruto entende-se todo o produto reproduzido. Deixando de lado a parte do capital fixo empregada, mas não consumida, o valor do rendimento bruto ou do produto bruto é igual à soma do valor do capital adiantado e consumido na produção, do capital constante e variável, e do mais-valor, que se decompõe em lucro e renda. Ou, se consideramos não o produto do capital individual, mas o do capital social total, o rendimento bruto é então igual aos elementos materiais que formam o capital constante e o capital variável, somados aos elementos materiais do mais-produto, em que estão representados o lucro e a renda.
A receita bruta é a parte do valor – e a parcela do produto bruto medida por essa parte – que resta depois de deduzirmos da produção total a parte de valor – assim como a parcela dos produtos por ela medida – que repõe o capital constante adiantado e consumido na produção. A receita bruta é, pois, igual ao salário (ou à parte do produto destinada a reconverter-se na receita do trabalhador) + o lucro + a renda. A receita líquida, em contrapartida, é o mais-valor e, por conseguinte, o mais-produto que resta depois de deduzido o salário; portanto, ela representa, de fato, o mais-valor realizado pelo capital e que deve ser dividido com os proprietários fundiários e o mais-produto medido por esse mais-valor.
Já vimos que o valor de cada mercadoria individual, assim como o valor de todo o produto-mercadoria de cada capital individual, decompõe-se em duas partes: uma que se limita a repor capital constante e outra que, embora uma fração dela reflua como capital variável, portanto, também na forma de capital, destina-se, contudo, a transformar-se completamente em receita bruta e assumir a forma do salário, do lucro e da renda, cuja soma constitui a receita bruta. Vimos, além disso, que esse é igualmente o caso em relação ao valor do produto total anual de uma sociedade. Entre o produto do capitalista individual e o da sociedade, há apenas uma diferença, a saber: considerada do ponto de vista do capitalista individual, a receita líquida se distingue da receita bruta na medida em que esta inclui o salário e aquela o exclui. Quando se considera a receita da sociedade inteira, a receita nacional consiste em salário mais lucro mais renda, ou seja, em receita bruta. Mas isso também é uma abstração, uma vez que toda a sociedade baseada na produção capitalista se coloca do ponto de vista capitalista e, por isso, só considera como receita líquida aquela que é decomposta em lucro e renda.
Em contrapartida, a fantasia, por exemplo, do sr. Say, segundo a qual o rendimento inteiro, o produto bruto total de uma nação, decompõe-se em rendimento líquido ou dele não se distingue, ou seja, que essa diferença deixa de existir do ponto de vista nacional, não é mais que a expressão necessária e última do dogma absurdo que, desde A.[dam] Smith, atravessa toda a economia política, a saber, o de que, em última instância, o valor das mercadorias se decompõe inteiramente em receita: salário, lucro e renda[51].
Considerando-se cada capitalista separadamente, reconhecer que parte de seu produto deve reconverter-se em capital (mesmo abstraindo da expansão da reprodução ou da acumulação) – e isso, decerto, não só em capital variável, que, por sua vez, está destinado a reconverter-se em receita para os trabalhadores, ou seja, numa forma de rendimento, mas, além disso, em capital constante que nunca se pode transformar em receita – é naturalmente algo por demais fácil. A mais simples análise do processo de produção mostra isso com toda a evidência. A dificuldade só começa quando se considera o processo de produção em sua totalidade. O valor de toda a parte do produto que se consome como rendimento na forma de salário, lucro e renda (no qual é completamente indiferente que esse consumo seja individual ou produtivo), na análise e de fato, decompõe-se por completo na soma de valor formada por salário mais lucro mais renda, ou seja, no valor total dos três rendimentos, embora o valor dessa parcela do produto, da mesma forma que o daquela parcela que não entra no rendimento, possua uma parte do valor = C, igual ao valor do capital constante nelas contido; portanto, prima facie, essa parte do valor não pode ser limitada pelo valor do rendimento: por um lado, o fato praticamente inegável; por outro, a contradição teórica igualmente inegável. O modo mais fácil de contornar essa dificuldade é presumindo que o valor da mercadoria contém só em aparência, do ponto de vista do capitalista individual, uma parte ulterior de valor distinta da parte existente em forma de rendimento. A fraseologia segundo a qual para um aparece como rendimento o que para outro constitui capital não é mais do que um modo de eximir-se de toda reflexão ulterior. Como, então, pode-se repor o antigo capital, se o valor de todo o produto é consumível na forma de rendimento? E como pode o valor do produto de cada capital individual ser igual à soma de valor dos três rendimentos mais C, capital constante, considerando-se que a soma total de valor dos produtos de todos os capitais é igual à soma de valor dos três rendimentos mais 0? Naturalmente, isso tudo aparenta ser um enigma insolúvel, ao qual se responde dizendo que a análise é absolutamente incapaz de desvendar o mistério dos elementos simples do preço e que, por isso, temos de nos contentar com o círculo vicioso e a progressão ao infinito. De modo que o que se manifesta como capital constante pode ser decomposto em salário, lucro e renda, mas os valores-mercadorias em que se representam o salário, o lucro e a renda voltam a estar determinados, por sua vez, por salário, lucro e renda, e assim sucessivamente, até o infinito[52].
O dogma absolutamente falso, segundo o qual o valor das mercadorias pode, em última instância, ser decomposto em salário + lucro + renda também pode ser expresso dizendo que, em última instância, o consumidor precisa pagar o valor total do produto total ou que a circulação de dinheiro entre produtores e consumidores precisa, em última instância, ser igual à circulação de dinheiro entre os próprios produtores (Tooke); todas essas teses são tão falsas quanto o axioma sobre o qual repousam.
As dificuldades que conduzem a essa análise errônea e, prima facie, absurda são, em suma, as que seguem:
A análise disso já a fizemos na terceira seção do Livro II.
Esse é o quiproquó que consideraremos no capítulo seguinte e que está necessariamente ligado à ilusão de que o valor derive de seus próprios componentes. Ou seja: primeiro os diversos componentes do valor da mercadoria adquirem formas autônomas nos rendimentos e, como tais, referem-se, como sua fonte, não ao valor da mercadoria, mas aos elementos materiais particulares de produção. Referem-se realmente a eles, mas não como componentes do valor, não como componentes de valor, e sim como rendimentos, como componentes de valor que recaem nessas categorias determinadas de agentes da produção: o trabalhador, o capitalista e o proprietário da terra. Ora, é possível imaginar que esses componentes do valor, em vez de terem origem na decomposição do valor da mercadoria, o formam, pelo contrário, mediante sua conjunção, de onde surge, então, o belo círculo vicioso segundo o qual o valor das mercadorias se origina da soma do valor de salário, lucro e renda, e, por sua vez, o valor de salário, lucro e renda se determina pelo valor das mercadorias etc.[54]
Se consideramos o estado normal da reprodução, apenas uma parte do trabalho novo agregado é empregada na produção e, por conseguinte, na reposição de capital constante; quer dizer, precisamente a parte que repõe o capital constante consumido na produção de meios de consumo, de elementos materiais do rendimento. Isso se equaliza pelo fato de que essa parte constante da classe II não custa nenhum trabalho adicional. Mas o capital constante – que (considerando a totalidade do processo de reprodução, na qual se inclui, portanto, aquela equalização entres as classes I e II) não é nenhum produto do trabalho novo agregado, embora esse produto não pudesse existir sem ele – está exposto durante o processo de reprodução, do ponto de vista material, a acidentes e perigos que podem dizimá-lo. (Além disso, considerado também de acordo com o valor, ele pode se desvalorizar devido a uma alteração na força produtiva do trabalho; mas isso diz respeito apenas aos capitalistas individuais.) Sendo assim, uma parte do lucro, ou seja, do mais-valor e, por conseguinte, do mais-produto, na qual (considerada segundo seu valor) representa-se somente trabalho novo agregado, serve de fundo de seguros. Em nada altera a natureza da questão que esse fundo de seguros seja administrado ou não por companhias de seguro como um negócio à parte. Essa é a única parcela do rendimento que não se consome como tal nem serve necessariamente como fundo de acumulação. Que ele realmente sirva como tal ou apenas cubra o déficit da reprodução é algo fortuito. Essa é também a única parte do mais-valor e do mais-produto – portanto, do mais-trabalho – que, além da parte que serve para a acumulação, ou seja, para ampliar o processo de reprodução, teria de continuar a existir mesmo depois da abolição do modo de produção capitalista. Isso pressupõe, é claro, que a parte regularmente consumida pelo produtor direto não fique restrita a sua atual medida mínima. Além do mais-trabalho para aqueles que, devido à idade, ainda não podem ou já não podem mais participar da produção, seria suprimido todo o trabalho destinado a sustentar aqueles que não trabalham. Se pensamos nos primórdios da sociedade, vemos que ali ainda não existem meios de produção produzidos, ou seja, nenhum capital constante cujo valor entre no produto e que tenha de ser reposto na reprodução na mesma escala, in natura, partindo do produto e numa medida determinada por seu valor. Mas, nesse caso, a natureza fornece os meios imediatos de subsistência, que não precisam ser produzidos. Por isso, ela também fornece ao selvagem, que só tem de satisfazer poucas necessidades, o tempo não para utilizar na nova produção os meios de produção ainda não disponíveis, mas para, ao lado do trabalho que custa a apropriação dos meios de subsistência existentes na natureza, transformar outros produtos naturais em meios de produção: arcos, facas de pedra, canoas etc. Esse processo, no caso do selvagem, se considerarmos apenas seu aspecto material, corresponde inteiramente à reconversão de mais-trabalho em novo capital. No processo de acumulação, continua a ocorrer a transformação de tal produto do trabalho excedente em capital; e a circunstância de que todo capital novo tem origem no lucro, na renda ou em outras formas de rendimento, isto é, no mais-trabalho, leva à falsa concepção de que todo valor das mercadorias tem origem num rendimento. Analisada mais de perto, essa reconversão do lucro em capital mostra, antes, que o trabalho adicional, que se apresenta sempre em forma de rendimento, não serve para a manutenção nem para a reprodução do antigo valor-capital, mas, na medida em que não se consome como rendimento, serve para a criação de novo capital excedente.
Toda a dificuldade resulta do fato de que todo trabalho novo agregado, na medida em que o valor por ele criado não se resolve em salário, aparece como lucro – entendido, aqui, como forma do mais-valor em geral –, isto é, como um valor que nada custou ao capitalista e, por isso, certamente não tem de repor-lhe nenhum adiantamento, nenhum capital. Razão pela qual esse valor existe na forma de riqueza disponível, adicional, ou, da perspectiva do capitalista individual, na forma de seu rendimento. Mas esse valor novo criado pode-se consumir tanto de modo produtivo quanto individual, tanto como capital quanto como rendimento. Segundo sua forma natural, ele tem de ser consumido de modo produtivo. Está claro, portanto, que o trabalho adicionado durante o ano cria tanto capital quanto rendimento, o que, aliás, evidencia-se também no processo de acumulação. Mas a parte da força de trabalho empregada para a nova criação de capital (ou seja, por analogia, a parte da jornada de trabalho que o selvagem emprega não para obter alimentos, mas para confeccionar o instrumento com o qual ele obtém alimentos) torna-se invisível, uma vez que o produto total do mais-trabalho se apresenta inicialmente na forma de lucro; uma destinação que, de fato, nada tem a ver com esse mais-produto mesmo, mas diz respeito apenas à relação privada do capitalista com o mais-valor por ele embolsado. De fato, o mais-valor criado pelo trabalhador se decompõe em rendimento e capital, isto é, em meios de consumo e meios de produção suplementares. Mas o antigo capital constante, recebido do ano anterior (desconsiderando a parte que se perde, ou seja, que é eliminada pro tanto [proporcionalmente], quer dizer, o capital constante na medida que não tenha de ser reproduzido, e essas perturbações do processo de reprodução são cobertas pelo seguro), considerado segundo seu valor, não é reproduzido pelo trabalho novo agregado.
Ademais, vemos que uma parte do trabalho novo agregado é constantemente absorvida na reprodução e na reposição do capital constante consumido, ainda que esse trabalho novo agregado só se decomponha em rendimentos: salário, lucro e renda. Nisso não se vislumbra, no entanto, 1) que uma parte do valor do produto desse trabalho não é nenhum produto desse trabalho novo agregado, mas capital constante preexistente e consumido; que a parte dos produtos em que essa parte do valor se representa tampouco se converte, por isso, em rendimento, mas repõe in natura os meios de produção desse capital constante; 2) que a parte de valor em que esse trabalho novo agregado realmente se representa não se consome in natura como rendimento, mas repõe o capital constante em outra esfera, na qual lhe foi conferida uma forma natural que lhe permite ser consumida como rendimento, mas que, por sua vez, não constitui um produto exclusivo do trabalho novo agregado.
Na medida em que a escala da reprodução permanece inalterada, cada elemento consumido do capital constante, se não segundo a quantidade e a forma, pelo menos segundo a eficiência, tem de ser reposto in natura por um novo exemplar de tipo correspondente. Permanecendo idêntica a força produtiva do trabalho, então essa reposição in natura implica a reposição do mesmo valor que o capital constante possuía em sua forma anterior. Se, no entanto, aumenta a força produtiva do trabalho, possibilitando que os mesmos elementos materiais sejam reproduzidos com menos trabalho, então uma parte menor do valor do produto pode repor plenamente in natura a parte constante. O excedente pode prestar-se, então, à formação de capital adicional, ou a uma parte maior do produto pode-se conferir a forma de meios de consumo, ou o mais-trabalho pode ser diminuído. Se, pelo contrário, diminui a força produtiva do trabalho, uma parte maior do produto tem de entrar na reposição do antigo capital; o mais-produto diminui.
A reconversão de lucro, ou de qualquer forma do mais-valor em geral, em capital mostra – abstraindo da forma econômica historicamente determinada e considerando-a apenas como uma formação simples de novos meios de produção – que jamais deixa de existir a situação em que o trabalhador, além do trabalho para a obtenção de meios de subsistência necessários, emprega trabalho para produzir meios de produção. Transformação de lucro em capital significa tão somente emprego de uma parte do trabalho excedente para a formação de meios adicionais de produção. Que isso se dê na forma de transformação de lucro em capital quer dizer apenas que é o capitalista que dispõe do trabalho excedente, não os trabalhadores. Que esse trabalho excedente tenha de passar primeiramente por um estágio em que aparece como rendimento (ao passo que entre os selvagens, por exemplo, ele aparece como trabalho excedente diretamente orientado à produção de meios de produção) significa apenas que esse trabalho, ou seu produto, é apropriado por quem não trabalha. Mas o que de fato se transforma em capital não é o lucro como tal. Transformação de mais-valor em capital quer dizer apenas que o mais-valor e o mais-produto não são consumidos individualmente pelo capitalista como rendimento. O que assim realmente se transforma é, no entanto, valor, trabalho objetivado ou, conforme o caso, o produto em que esse valor se representa imediatamente ou pelo qual ele é intercambiado depois de transformar-se em dinheiro. Mesmo quando o lucro é reconvertido em capital, essa forma determinada do mais-valor, o lucro, não constitui a fonte do novo capital. Nessa operação, o mais-valor é tão somente convertido de uma forma em outra. Mas o que o torna capital não é essa alteração da forma. É a mercadoria e seu valor que, agora, passam a funcionar como capital. Porém, que o valor da mercadoria não seja pago – e só desse modo ele se converte em mais-valor – é algo absolutamente indiferente para a objetivação do trabalho, para o próprio valor.
O equívoco se apresenta de diversas formas. Diz-se, por exemplo, que as mercadorias em que consiste o capital constante também contêm elementos de salário, lucro e renda. Ou, então, que o que para um representa rendimento para outro representaria capital e que, por isso, trata-se aqui de relações meramente subjetivas. O fio do fiandeiro, por exemplo, contém uma parte de valor que, para ele, representa lucro. Assim, quando o tecelão compra o fio, ele realiza o lucro do fiandeiro, mas para ele mesmo o fio é só uma parte de seu capital constante.
Além do que já explicamos sobre a relação entre rendimento e capital, devemos ainda observar que aquilo que, considerado segundo o valor, entra como parte constitutiva no capital do tecelão é o valor do fio. A maneira como as partes desse valor se resolveram em capital e rendimento ou, em outras palavras, em trabalho pago e não pago para o próprio fiandeiro é completamente indiferente para a determinação de valor da própria mercadoria (abstraindo das modificações ocasionadas pelo lucro médio). O que temos aqui, no fundo, é a ideia de que o lucro – e o mais-valor em geral – é um excedente sobre o valor da mercadoria, só obtido por meio de um acréscimo, a trapaça recíproca ou lucro sobre a venda. Quando se paga o preço de produção ou mesmo o valor da mercadoria, pagam-se também, naturalmente, os componentes de valor da mercadoria, que para seu vendedor se apresentam em forma de rendimento. Aqui, é claro, não estamos falando de preços monopólicos.
Em segundo lugar, é absolutamente correto dizer que os componentes das mercadorias que integram o capital constante são redutíveis, como qualquer outro valor-mercadoria, a frações de valor que, para os produtores e os proprietários dos meios de produção, resolvem-se em salário, lucro e renda. Isso não é mais do que o modo capitalista de expressar o fato de que todo valor-mercadoria não é senão a medida do trabalho socialmente necessário contido numa mercadoria. No Livro I, já demonstramos que isso não impede de modo nenhum que o produto-mercadoria de qualquer capital se decomponha em partes separadas, uma das quais representa exclusivamente a parte constante do capital; a outra, a parte variável do capital; e uma terceira, nada mais que o mais-valor.
Storch também expressa a opinião de muitos outros quando diz:
“Les produits vendables qui constituent le revenu national doivent être considérés dans l’économie politique de deux manières différentes: relativement aux individus comme des valeurs; et relativement à la nation comme des biens; car le revenu d’une nation ne s’apprécie pas comme celui d’un individu, d’après sa valeur, mais daprès son utilité ou d’après les besoins auxquels il peut satisfaire.”[a] ([Heinrich Friedrich Storch,] Consid.[érations] sur la nature du revenu national, cit., p. 19.)
Em primeiro lugar, é uma falsa abstração considerar que uma nação, cujo modo de produção se baseia no valor e que, além disso, está organizada de modo capitalista, seja um corpo coletivo que trabalha apenas para satisfazer as necessidades nacionais.
Em segundo lugar, posteriormente à abolição do modo de produção capitalista, porém mantendo-se a produção social, continuará a predominar a determinação do valor no sentido de que a regulação do tempo de serviço e a distribuição do trabalho social entre os diferentes grupos de produção – e, por último, a contabilidade relativa a isso – se tornarão mais essenciais do que nunca.
[51] Ricardo faz a seguinte observação, muito boa, sobre o irrefletido Say: “O sr. Say afirma o seguinte sobre o produto líquido e o produto bruto: ‘O valor total produzido é o produto bruto; esse valor, depois de deduzidos os custos de produção, é o produto líquido’ (t. 2, p. 491). Não pode haver, portanto, nenhum produto líquido, pois, segundo o sr. Say, os custos de produção consistem em renda, salários e lucro. Na p. 508, ele diz: ‘O valor de um produto, o valor de um serviço produtivo, o valor dos custos de produção são, portanto, em sua totalidade, valores semelhantes quando se permite que as coisas sigam seu curso natural’. Caso se tire tudo de um todo, resta nada” (Ricardo, Principles, cap. 22, p. 512, nota). Aliás, como veremos mais tarde, em nenhum lugar Ricardo refuta a falsa análise de Smith sobre o preço da mercadoria, sua resolução na soma do valor dos rendimentos. Ele não se preocupa com ela e, em suas análises, a aceita como correta na medida em que “abstrai” da parte constante do valor das mercadorias. Inclusive ele próprio recai de vez em quando no mesmo modo de conceber as coisas.
[52] “Em toda sociedade, o preço de cada mercadoria se resolve, por fim, numa ou noutra dessas três partes ou nas três em seu conjunto” {ou seja, salário, lucro, renda}. “[...]
Uma quarta parte pode parecer necessária para repor o capital do arrendatário ou compensar o desgaste de seus animais de tração e demais instrumentos agrícolas. Mas é preciso ter em conta que o preço de qualquer instrumento agrícola, como o cavalo de tração, compõe-se ele mesmo dessas três partes citadas: a renda da terra, na qual ele é criado, o trabalho de cuidá-lo e criá-lo e o lucro do arrendatário, que adianta a renda de sua terra e o salário de seu trabalho. Portanto, embora o preço do cereal possa pagar tanto o preço do cavalo como sua manutenção, o preço total resolve-se, como sempre, imediatamente ou em última instância, nessas mesmas três partes: renda fundiária, trabalho” {o correto seria: salário} “e lucro.” (A.[dam] Smith) Adiante, mostraremos como o próprio A.[dam] Smith sente a contradição e a insuficiência desse subterfúgio – e isso não é, de fato, mais que um subterfúgio, na medida em que ele nos manda de um lado para outro, mas em nenhum momento nos mostra o real investimento de capital em que, sem progressus [progressão] ulterior, o preço do produto se resolve puramente e ultimately [em última instância] nessas três partes.
[53] Proudhon manifesta sua incapacidade de entender isso com a obtusa fórmula: l’ouvrier ne peut pas racheter son propre produit [o trabalhador não pode comprar seu próprio produto], porque nele mesmo estão contidos os juros que foram agregados ao prix-de-revien [preço de custo]. Como o sr. Eugène Forcade lhe corrige? “Se a objeção de Proudhon fosse correta, ela afetaria não só os lucros do capital, mas aniquilaria até mesmo a possibilidade de existência da indústria. Se o trabalhador é forçado a pagar com 100 aquilo pelo que recebeu apenas 80, se o salário só pode voltar a comprar, num produto, o valor que ele mesmo lhe acrescentou, então isso equivale a dizer que o trabalhador não pode recomprar nada que o salário não pague. Com efeito, no próprio preço de custo há sempre algo além do salário do trabalhador; no preço de venda, algo mais do que o lucro do empresário, por exemplo, o preço da matéria-prima, que frequentemente é pago no estrangeiro. […] Phoudhon esqueceu o crescimento incessante do capital nacional, esqueceu que esse crescimento se verifica para todos os que trabalham, tanto para os empresários quanto para os trabalhadores.” (Revue des Deux Mondes, t. 24, 1848, p. 998) Aqui se vê o otimismo da irreflexão burguesa na forma que melhor lhe cabe: a da sapiência. Primeiro o sr. Forcade acredita que o trabalhador não poderia viver se, além do valor que ele produz, não recebesse um valor ainda mais elevado, enquanto, pelo contrário, o modo de produção capitalista seria impossível se ele realmente recebesse o valor que ele produz. Em segundo lugar, ele generaliza corretamente a dificuldade que Proudhon só expressou sob um ponto de vista restrito. O preço da mercadoria contém não só um excedente sobre o salário, mas também sobre o lucro, ou seja, sobre a parte constante do valor. De modo que, segundo o argumento de Proudhon, tampouco o capitalista poderia recomprar a mercadoria com seu lucro. Como Forcade resolve esse enigma? Com uma fraseologia sem sentido: o crescimento do capital. Portanto, o crescimento constante do capital deveria verificar-se também pelo fato de que a análise do preço das mercadorias, que para o economista se revela impossível no caso de um capital de 100, torna-se supérflua num capital de 10.000. O que se diria de um químico que, à pergunta de “por que o produto do solo contém mais carbono do que o solo” respondesse dizendo que isso se deve ao crescimento constante da produção do solo? A indulgente boa vontade em descobrir no mundo burguês o melhor dos mundos possíveis substitui, na economia vulgar, todas as exigências do amor à verdade e do impulso à pesquisa científica.
[54] “O capital circulante investido em materiais, matérias-primas e produto acabado se compõe, por sua vez, de mercadorias cujo preço necessário é formado pelos mesmos elementos; de modo que, considerando a totalidade das mercadorias num país, seria uma repetição inútil colocar essa parte do capital circulante entre os elementos do preço necessário.” ([Heinrich Friedrich] Storch, Cours d’éc.[onomie] pol.[itique, v. 2, São Petersburgo, A. Pluchart et comp., 1815,] p. 140) Por esses elementos do capital circulante, Storch entende a parte constante do valor (a parte fixa não é mais que capital circulante em sua forma alterada). “É verdade que o salário do trabalhador, assim como essa parte do lucro do empresário que consiste de salários – se consideramos estes últimos como parte dos meios de subsistência –, compõe-se igualmente de mercadorias compradas a preço de mercado e que também inclui salários, rendas dos capitais, rendas fundiárias e ganhos empresariais. [...] Essa observação serve apenas para provar que é impossível decompor o preço necessário em seus elementos mais simples” (idem, nota). Em suas Considérations sur la nature du revenu national (Paris, [Bossange Père,] 1824), Storch, em sua polêmica contra Say, reconhece exatamente o absurdo a que conduz a falsa análise do valor da mercadoria, que o decompõe em simples rendimentos e expressa corretamente – do ponto de vista não do capitalista individual, mas de uma nação – a falsidade desses resultados; ele mesmo não avança nenhum passo na análise do prix nécessaire, acerca do qual ele, em seu Cours, esclarece que seria impossível decompô-lo em seus elementos reais sem resolvê-lo numa falsa progressão ao infinito. “É claro que o valor do produto anual se distribui, parte em capitais, parte em lucros, e que cada uma dessas partes do valor do produto anual comprará regularmente os produtos que a nação requer, tanto para manter seu capital quanto para renovar sua reserva de consumo” (p. 134-5). “[...] Pode ela” (uma família camponesa que trabalha por conta própria) “morar em seus celeiros ou em seus estábulos, comer seus grãos de semente e suas forragens para os animais, vestir-se com seus animais de tração, divertir-se com seus instrumentos agrícolas? Segundo a tese do sr. Say, seria preciso responder afirmativamente a todas essas perguntas” ([p.] 135-6). “[...] Admitindo-se que o rendimento de uma nação equivale a seu produto bruto, isto é, que não há capital algum a deduzir dele, é preciso também admitir que a nação pode consumir improdutivamente o valor inteiro de seu produto anual sem infligir o menor prejuízo a seu rendimento futuro” ([p.] 147). “[...] Os produtos que formam o capital de uma nação não são consumíveis” (p. 150).
[a] “Os produtos vendáveis que constituem o rendimento nacional devem ser considerados, na economia política, de dois modos diferentes: em sua relação com os indivíduos enquanto valores e em sua relação com a nação enquanto bens de consumo; pois o rendimento de uma nação não é calculado como o de um indivíduo, segundo seu valor, mas segundo sua utilidade ou segundo as necessidades que ele pode satisfazer.” (N. T.)