O segundo e o terceiro volumes d’O capital tiveram o mesmo destino do primeiro. Marx esperava publicá-los logo na sequência, mas muitos anos se passaram, e ele não conseguiu terminá-los para impressão.
Novos estudos, cada vez mais profundos e urgentes, longas enfermidades e, por fim, a morte impediram-no de completar a obra, tendo sido Engels quem editou os Livros II e III com base nos manuscritos inéditos deixados pelo amigo. Eram anotações, esboços, notas, ora capítulos inteiros terminados, ora breves observações feitas de passagem como faz um pesquisador para sua compreensão pessoal – um trabalho intelectual poderoso, que, com interrupções prolongadas, cobria o largo período de 1861 a 1878.
Essas circunstâncias explicam por que nos dois últimos volumes d’O capital não devemos buscar uma solução acabada e definitiva para todos os problemas mais importantes da economia política, mas, em parte, apenas a apresentação de tais problemas e indicações da direção em que se deveria procurar a solução. A principal obra de Marx, assim como toda sua visão de mundo, não é nenhuma bíblia com verdades de última instância, acabadas e válidas para sempre, mas um manancial inesgotável de sugestões para levar adiante o trabalho intelectual, continuar pesquisando e lutando pela verdade. As mesmas circunstâncias explicam também por que, no que se refere à forma literária, o segundo e o terceiro volumes não são tão perfeitos, não têm um espírito tão brilhante, tão cintilante como o primeiro. No entanto, precisamente em sua forma descuidada, o simples trabalho do pensamento oferece a muitos leitores um prazer ainda maior que o primeiro. Por seu conteúdo, esses dois volumes, que infelizmente até hoje não foram considerados em nenhuma das popularizações e continuam desconhecidos pela grande massa dos trabalhadores esclarecidos, constituem um complemento essencial e um desenvolvimento do primeiro volume, sendo indispensáveis para a compreensão do sistema como um todo.
No primeiro volume, Marx trata da principal questão da economia política: de onde vem a riqueza, qual é a fonte do lucro? Antes de Marx, a resposta a essa pergunta era dada em duas direções distintas.
Os defensores “científicos” do melhor dos mundos, este em que vivemos, alguns homens que, como Schulze-Delitzsch, gozavam de prestígio e confiança também entre os trabalhadores, explicavam a riqueza capitalista por meio de uma série de razões justificadoras, mais ou menos plausíveis, e de astutas manipulações: como fruto do aumento sistemático do preço das mercadorias com que o empresário se “indenizava” pelo capital generosamente “cedido” por ele à produção; como remuneração pelo “risco” que todo empresário corria; como salário pela “direção intelectual” da empresa; e assim por diante. De acordo com essas explicações, tratava-se apenas de apresentar como algo “justo” e, portanto, imutável a riqueza de uns e a pobreza de outros.
Em contrapartida, os críticos da sociedade burguesa, quer dizer, as escolas socialistas anteriores a Marx, explicavam a riqueza dos capitalistas, na maioria das vezes, como pura trapaça, como roubo contra os trabalhadores, provocado pela intervenção do dinheiro ou pela falta de organização do processo produtivo. A partir daí, aqueles socialistas chegavam aos mais diferentes planos utópicos, com o objetivo de acabar com a exploração por meio da abolição do dinheiro, da “organização do trabalho”, e assim sucessivamente.
No primeiro volume d’O capital, Marx descobre a verdadeira raiz do enriquecimento capitalista. Ele não busca razões justificadoras para os capitalistas nem lança incriminações contra a injustiça deles. Marx mostra, pela primeira vez, como nasce o lucro e como este vai parar no bolso dos capitalistas. Explica isso por dois fatos econômicos decisivos: o primeiro é que a massa dos trabalhadores é formada por proletários que precisam vender sua força de trabalho como mercadoria, e o segundo é que essa mercadoria força de trabalho possui hoje um grau tão alto de produtividade que pode produzir, em certo tempo, um produto muito maior do que o necessário, nesse mesmo tempo, para a própria manutenção. Esses dois fatos, puramente econômicos e ao mesmo tempo decorrentes do desenvolvimento histórico objetivo, fazem com que o fruto criado pelo trabalho proletário caia por si mesmo no colo do capitalista, acumulando-se de maneira mecânica com a continuação do sistema de assalariamento até formar um capital sempre mais poderoso.
Marx explica assim o enriquecimento capitalista não como remuneração do capitalista por supostos sacrifícios e benfeitorias, tampouco como trapaça e roubo no sentido corrente da palavra, mas como troca perfeitamente legal, no sentido do direito penal, entre capitalista e trabalhador, troca que se desenvolve segundo as mesmas leis de qualquer outra compra e venda de mercadorias. Para esclarecer com cuidado esse negócio irrepreensível que dá ao capitalista seus frutos de ouro, Marx teve de desenvolver até o fim, aplicando-a à mercadoria força de trabalho, a lei do valor formulada entre o final do século XVIII e o começo do XIX pelos grandes economistas clássicos ingleses [Adam] Smith e [David] Ricardo, ou seja, a explicação das leis imanentes da troca de mercadorias. A lei do valor, o salário e o mais-valor que dela derivam, quer dizer, a explicação de como, sem nenhuma trapaça violenta, o produto do trabalho assalariado se converte por si mesmo num miserável meio de vida para o trabalhador e em riqueza ociosa para o capitalista, eis o conteúdo essencial do primeiro volume de sua obra. E nisto reside o grande significado histórico de tal livro: ele demonstrou que a exploração só poderá acabar se for abolida a venda da força de trabalho, isto é, o sistema do assalariamento.
No primeiro volume d’O capital, passamos o tempo inteiro no local de trabalho: a fábrica, a mina ou a exploração agrícola moderna. O que aqui se expõe vale para qualquer empresa capitalista. Lidamos apenas com o capital individual como modelo de todo esse modo de produção. Ao fecharmos o livro, vemos claramente a formação cotidiana do lucro, ilumina-se até as profundezas o mecanismo da exploração. Diante de nós, jazem montanhas de mercadorias de todo tipo, recém-saídas do local de trabalho ainda úmidas do suor do trabalhador, e em todas elas podemos distinguir nitidamente a parte do valor que provém do trabalho não pago do proletário e que, de modo tão legítimo como a mercadoria toda, cai na posse do capitalista. As raízes da exploração ficam evidentes.
Mas falta muito para que a colheita do capitalista seja levada ao celeiro. O fruto da exploração está ali, mas ainda sob uma forma de que o empresário não pode desfrutar. Enquanto o capitalista possuir esse fruto apenas na forma de mercadorias armazenadas, não pode ficar satisfeito com a exploração. Ele não é evidentemente o senhor de escravos do antigo mundo greco-romano nem o senhor feudal da Idade Média, que esfolavam o povo trabalhador para manter o próprio luxo e viver à grande. O capitalista precisa de sua riqueza em dinheiro sonante, a fim de, juntamente com um “padrão de vida adequado a sua posição”, usá-lo para ampliar incessantemente seu capital. Para isso, precisa vender as mercadorias produzidas pelo trabalhador assalariado, com o mais-valor que nelas se encerra. A mercadoria precisa sair do depósito da fábrica e do celeiro do agricultor para o mercado; o capitalista segue a mercadoria desde seu escritório até a Bolsa, até a loja, e nós vamos com ele no segundo volume d’O capital.
No reino da troca de mercadorias, onde se passa o segundo capítulo da vida do capitalista, surgem algumas dificuldades. Em sua fábrica, seu baluarte, ele era o senhor. Ali dominavam a organização, a disciplina e o planejamento mais severos. Em contrapartida, no mercado a que chega com suas mercadorias, domina a mais total anarquia, a chamada livre concorrência. Aqui ninguém se preocupa com o outro e ninguém se preocupa com o todo. No entanto, justamente no meio dessa anarquia, o capitalista sente a que ponto depende dos outros, a que ponto depende, em todos os sentidos, da sociedade.
O capitalista precisa estar à mesma altura de todos os seus concorrentes. Se gastar mais tempo na venda definitiva de suas mercadorias do que o estritamente necessário, se não se abastecer com dinheiro suficiente para comprar a tempo as matérias-primas e tudo que for necessário para que a atividade não sofra nenhuma interrupção, se não cuidar para que o dinheiro resultante da venda das mercadorias volte a suas mãos, que não fique ocioso, mas que seja investido onde dê lucro, de uma maneira ou de outra, ele ficará para trás. Os últimos pagam a conta, e o empresário individual que não cuidar para que seu negócio, no constante vaivém entre a fábrica e o mercado, funcione tão bem quanto na própria fábrica, por mais conscienciosamente que explore o trabalhador assalariado, não alcançará o lucro costumeiro. Uma parte do lucro “bem merecido” se fixará em outro lugar e não entrará em seu bolso.
Mas isso não é tudo. O capitalista só pode acumular riqueza produzindo mercadorias, ou seja, objetos úteis. Porém, ele deve produzir precisamente aqueles tipos e espécies de mercadorias de que a sociedade necessita – e na quantidade exata. Caso contrário, as mercadorias não serão vendidas nem será realizado o mais-valor que elas contêm. Mas como pode o capitalista individual saber de tudo isso? Ninguém lhe diz de quais e quantos objetos úteis a sociedade necessita, justamente porque ninguém sabe. A verdade é que vivemos numa sociedade não planejada, anárquica! Cada empresário individual encontra-se na mesma situação. No entanto, desse caos, dessa confusão, tem de sair uma totalidade que permita tanto o negócio individual dos capitalistas e seu enriquecimento quanto a satisfação das necessidades e a subsistência de toda a sociedade.
Dito de modo mais preciso, com base na confusão existente no mercado anárquico, tem de ser possível, em primeiro lugar, o movimento cíclico permanente do capital individual, a possibilidade de produzir, vender, comprar e novamente produzir, ciclo em que o capital passa constantemente da forma dinheiro à forma mercadoria, e vice-versa: essas fases devem encaixar-se umas nas outras, é preciso haver uma reserva de dinheiro para aproveitar a conjuntura do mercado favorável à compra e para cobrir as despesas correntes da empresa; por sua vez, o dinheiro que reflui de maneira paulatina à medida que as mercadorias são vendidas deve ser de novo imediatamente investido. Os capitalistas individuais, na aparência completamente independentes uns dos outros, formam de fato uma grande irmandade em que, por meio do sistema de crédito, dos bancos, adiantam sempre uns aos outros o dinheiro necessário e tomam aquele disponível, possibilitando, assim, a continuação ininterrupta da produção e da venda de mercadorias, tanto para o indivíduo quanto para a sociedade. No segundo volume de sua obra, Marx mostra, de passagem, de que modo o crédito, que a economia política burguesa só consegue explicar como uma sagaz instituição para “facilitar a troca de mercadorias”, constitui um simples modo de vida do capital, uma articulação entre as duas fases vitais deste, a produção e o mercado, assim como entre os movimentos aparentemente soberanos dos capitais individuais.
Em segundo lugar, nessa confusão dos capitais individuais, é preciso que o contínuo movimento circular da produção e do consumo de toda a sociedade seja mantido em funcionamento, de tal modo que fiquem garantidas as condições da produção capitalista: criação de meios de produção, sustento da classe trabalhadora e enriquecimento progressivo da classe capitalista, ou seja, acumulação e emprego progressivos do capital social total. Como se forma o todo a partir dos inúmeros movimentos dos capitais individuais dissociados uns dos outros? Como esse movimento do todo, por meio de contínuos desvios, ora pela superabundância das conjunturas de alta, ora pelo colapso das crises, retorna ao devido lugar para, no momento seguinte, cair fora novamente? Como de tudo isso que é apenas meio para a sociedade atual – seu próprio sustento juntamente com o progresso econômico – resulta seu fim – a acumulação progressiva do capital em dimensões cada vez maiores? Embora Marx não tenha resolvido definitivamente essas questões, ele as colocou, no segundo volume de sua obra, sobre o sólido fundamento das leis imanentes.
Mas isso não esgotou ainda a espinhosa missão do capitalista. Agora que o lucro finalmente se converteu em dinheiro, surge a grande questão: como repartir o butim? Muitos grupos diferentes apresentam sua reivindicação: o industrial, o comerciante, o capitalista que emprestou dinheiro, o latifundiário. Todos contribuíram, cada um com sua parte, para a exploração do trabalhador assalariado e para a venda das mercadorias produzidas por ele, e todos exigem sua parte no lucro. Porém, essa repartição constitui uma tarefa muito mais complicada do que pode parecer à primeira vista. Pois também entre os empresários, de acordo com o tipo de empresa, existem grandes diferenças no tocante ao lucro obtido, que é tirado – fresco, por assim dizer – do local de trabalho.
Em alguns ramos da produção, a fabricação e a venda das mercadorias se realizam muito rapidamente, e o capital retorna com acréscimo no mais curto prazo; aqui os negócios sempre correm bem e os lucros estão garantidos. Em outros ramos, o capital fica preso na produção durante anos e só dá lucro depois de muito tempo. Em certos ramos da produção, o empresário tem de investir a maior parte de seu capital em meios de produção mortos: edifícios, máquinas custosas etc., que por si sós não rendem nada, não incubam lucro, por mais necessários que sejam à geração dele. Em outros ramos, o empresário pode, com gastos mínimos, aplicar seu capital, sobretudo no recrutamento de trabalhadores, as galinhas diligentes que põem ovos de ouro para ele.
Assim, na própria geração do lucro, existem grandes diferenças entre os capitais individuais, que, aos olhos da sociedade burguesa, representam uma “injustiça” muito mais gritante que a própria “repartição” entre capitalista e trabalhador. Como estabelecer aqui um equilíbrio, uma repartição “justa” do butim, de modo que cada capitalista obtenha aquilo que é “seu”? A verdade é que todas essas tarefas têm de ser cumpridas sem nenhuma regulamentação consciente, planejada. Na sociedade atual, a repartição é tão anárquica quanto a produção. A rigor, não existe nenhuma verdadeira “repartição” que suporia algum critério social; o que existe é simplesmente troca, apenas circulação de mercadorias, só compra e venda. Como é que, então, apenas pela via cega da troca de mercadorias, cada grupo de exploradores e cada indivíduo desse grupo conseguem, do ponto de vista da dominação do capital, uma porção “justa” da riqueza tirada da força de trabalho do proletariado?
A essas questões responde Marx no terceiro volume d’O capital. Como no primeiro volume ele havia analisado a produção do capital e o segredo da extração do lucro daí decorrente e no segundo descreveu o movimento do capital entre o local de trabalho e o mercado, no terceiro volume investiga a repartição do lucro. E sempre observando as mesmas três condições fundamentais: que tudo que acontece na sociedade capitalista não é obra da arbitrariedade, mas obedece a leis determinadas, atuando regularmente, ainda que os interessados não tenham nenhuma consciência disso; que, ademais, a situação econômica não se assenta em medidas violentas visando à pilhagem e ao roubo; e, por fim, que não existe nenhuma razão social atuando sobre o todo através de atividades planejadas. É exclusivamente do mecanismo da troca, ou seja, da lei do valor e do mais-valor que dela decorre, que Marx pouco a pouco extrai todos os fenômenos e relações da economia capitalista com uma lógica e uma clareza penetrantes.
Considerando essa grande obra como um todo, pode-se dizer que o primeiro volume, no qual se desenvolvem a lei do valor, o salário e o mais-valor, desnuda o fundamento da sociedade atual, enquanto o segundo e o terceiro volumes mostram os andares do edifício que nele se apoia. Também seria possível dizer, com uma imagem totalmente diferente, que o primeiro volume mostra o coração do organismo social, onde é criada a seiva vivificadora, enquanto o segundo e o terceiro volumes mostram a circulação do sangue e a alimentação do todo, até as últimas células.
Nos dois últimos volumes, em correspondência com o conteúdo, nós nos movemos num terreno distinto do primeiro. Neste, tratava-se da fábrica, do profundo fosso social do trabalho, onde detectávamos a fonte da riqueza capitalista. No segundo e no terceiro volumes, movemo-nos na superfície, no palco oficial da sociedade. O primeiro plano é ocupado por armazéns, bancos, bolsas, operações financeiras, “latifundiários em dificuldades” e seus interesses. O operário não representa aqui nenhum papel. Na realidade, ele também não se preocupa com o que ocorre a suas costas depois que lhe curtiram a pele. E, no tumulto barulhento da multidão dos homens de negócios, na verdade só encontramos os operários quando em grupos, ao romper do dia, caminham lentamente para as fábricas e quando, em longos cortejos, delas são outra vez expelidos ao cair da noite.
Por isso talvez não fique claro que interesse o operário pode ter pelas inúmeras preocupações particulares dos capitalistas para obter lucro e por suas rixas quando da repartição do butim. No entanto, o segundo e o terceiro volumes d’O capital são tão necessários quanto o primeiro para o conhecimento minucioso do mecanismo da economia atual. É certo que eles não têm, para o movimento operário moderno, o significado histórico, decisivo e fundamental, do primeiro volume. Mas contêm uma grande riqueza de perspectivas, de valor incalculável para equipar intelectualmente o proletariado para a luta prática. Vejamos apenas dois exemplos.
No segundo volume, ao tratar de como a nutrição regular da sociedade pode resultar da disposição caótica dos capitais individuais, Marx toca também naturalmente na questão das crises. Não se deve esperar aqui nenhum tratado sistemático e doutrinário sobre elas, somente algumas observações passageiras e cuja valorização seria de grande utilidade para os trabalhadores esclarecidos e que pensam. Faz parte, por assim dizer, do estoque de reserva da agitação social-democrata, sobretudo sindical, a ideia de que as crises se produzem, antes de tudo, pela miopia dos capitalistas que simplesmente não querem entender que as massas trabalhadoras são seus melhores consumidores e que eles apenas precisam pagar-lhes salários maiores para manter uma clientela solvente, evitando, assim, o perigo das crises.
Por mais popular que seja essa concepção, ela é totalmente equivocada, sendo refutada por Marx com as seguintes palavras:
“É pura tautologia dizer que as crises surgem da falta de um consumo solvente, ou da carência de consumidores solventes. O sistema capitalista desconhece outros tipos de consumo que não aquele capaz de pagar, excetuando o consumo sub forma pauperis [próprio dos miseráveis] ou o do ‘velhaco’. Que as mercadorias sejam invendáveis significa apenas que não foram encontrados compradores solventes para elas e, portanto, consumidores [...]. Mas caso se queira dar a essa tautologia a aparência de uma fundamentação profunda, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parte demasiadamente pequena de seu próprio produto, de modo que o mal seria remediado tão logo ela recebesse uma fração maior de tal produto e, por conseguinte, seu salário aumentasse nessa proporção, bastará observar que as crises são sempre preparadas num período em que o salário sobe de maneira geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma participação maior na parcela do produto anual destinada ao consumo. Já do ponto de vista desses paladinos do entendimento humano saudável e ‘simples’ (!), esses períodos teriam, ao contrário, de eliminar as crises. Parece, pois, que a produção capitalista implica condições independentes da boa ou má vontade, condições que somente de forma momentânea permitem essa prosperidade relativa da classe trabalhadora e, mesmo assim, somente como prenúncio de uma crise.”[b]
De fato, as exposições do segundo e do terceiro volumes nos fazem penetrar profundamente na essência das crises, que são simples consequência inevitável do movimento do capital, um movimento que em seu ímpeto violento e insaciável para acumular, para crescer, costuma ultrapassar todas as barreiras do consumo, por mais que este se amplie aumentando o poder aquisitivo de uma camada da sociedade ou conquistando mercados totalmente novos. Portanto, também se deve dizer adeus à ideia da harmonia de interesses entre capital e trabalho, que apenas seria menosprezada pela miopia dos empresários e está latente no fundo de toda agitação sindical popular, e renunciar a toda esperança de remendar suavemente a anarquia econômica do capitalismo. A luta pela melhoria material do proletário assalariado tem mil armas mais eficazes em seu arsenal intelectual e não precisa de um argumento insustentável na teoria e ambíguo na prática.
Outro exemplo. No terceiro volume, Marx oferece pela primeira vez uma explicação científica para um fenômeno que a economia política, desde seu nascimento, olhava com pasmo e perplexidade: em todos os ramos da produção, os capitais, por mais diferentes que sejam as condições em que são investidos, costumam render o chamado lucro “usual no país”. À primeira vista, esse fenômeno parece contradizer uma explicação dada pelo próprio Marx, a saber, a de que a riqueza capitalista simplesmente provinha do trabalho não pago do proletário assalariado. De fato, como pode o capitalista, que tem de investir uma parte relativamente grande de seu capital em meios de produção mortos, obter o mesmo lucro que seu colega que tem poucos gastos desse tipo e que pode, assim, empregar mais trabalho vivo?
Pois bem, Marx resolve o enigma com surpreendente simplicidade, ao mostrar como, ao ser vendida uma espécie de mercadoria acima de seu valor e outra abaixo, as diferenças nos lucros se nivelam, formando um “lucro médio” igual para todos os ramos da produção. Sem que os capitalistas tenham a menor ideia disso, sem nenhum acordo consciente entre eles, procedem de tal maneira na troca de suas mercadorias que é como se compartilhassem em massa o mais-valor tirado de seus trabalhadores e dividissem fraternalmente entre eles a colheita coletiva da exploração, de acordo com o volume de seu capital. Portanto, o capitalista individual não desfruta de forma nenhuma do lucro obtido pessoalmente, mas apenas da parte que lhe cabe no lucro obtido por todos os seus colegas.
“No que diz respeito ao lucro, os diversos capitalistas se comportam aqui como meros acionistas de uma sociedade por ações, na qual os dividendos se repartem igualmente por 100, de modo que se distinguem entre si apenas pela grandeza do capital investido por cada um no empreendimento total, pelo número de ações que cada um possui [...].”[c]
Como essa lei da “taxa média de lucro”, aparentemente tão seca, oferece uma visão profunda do sólido fundamento material da solidariedade de classe dos capitalistas, que, mesmo sendo irmãos inimigos em sua atividade cotidiana, formam, perante a classe trabalhadora, uma maçonaria fortemente e pessoalmente interessada na exploração coletiva dessa classe! Sem que os capitalistas tenham, naturalmente, a menor consciência dessa lei econômica objetiva, em seu instinto infalível de classe dominante manifesta-se um sentido para os próprios interesses de classe, antagônico aos do proletariado, sentido que, através de todas as tormentas da história, tem infelizmente se revelado muito mais seguro do que a consciência de classe dos trabalhadores, esclarecida de maneira científica pelas obras de Marx e Engels e nelas fundamentada.
Esses dois breves exemplos, escolhidos ao acaso, podem dar uma ideia de quantos tesouros de estímulo e aprofundamento intelectual para o operariado esclarecido ainda existem guardados nos dois últimos volumes d’O capital, à espera de uma apresentação popular. Inacabados como estão, oferecem algo infinitamente mais valioso que qualquer verdade acabada: estímulo à reflexão, à crítica e à autocrítica, que são o elemento mais original da teoria que Marx nos legou.
Rosa Luxemburgo ao ser presa em Varsóvia, em 1906, quando permaneceu quatro meses detida por suas atividades revolucionárias.
Rosa Luxemburgo (1871-1919), economista e filósofa nascida na Polônia e de cidadania alemã, foi uma incansável militante comunista que atuou na Social-Democracia da Polônia (SDKP), no Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD) e no Partido Social-Democrata Independente da Alemanha (USPD). Ao lado de Karl Liebknecht, fundou a Liga Espartaquista, que viria a ser o Partido Comunista da Alemanha (KPD). Presa diversas vezes, acabou assassinada numa emboscada até hoje não esclarecida (o mais aceito é que Rosa tenha sido executada por um grupo paramilitar alemão mercenário, mas a autoria do crime permanece desconhecida). É autora de consistente obra, da qual se destacam Reforma ou revolução?, A Revolução Russa e A acumulação do capital.
[a] Texto redigido na prisão em 1917 ou 1918, a pedido de Franz Mehring, para compor a biografia de sua autoria, Karl Marx – história de sua vida (1918). Trata-se de um resumo didático dos Livros II e III d’O capital, publicados por Engels depois da morte do amigo e pouco conhecidos pelos socialistas da época. Este texto não menciona as reservas que Rosa Luxemburgo nutria em relação ao Livro II de Marx e que haviam sido expostas em A acumulação do capital, sua grande obra teórica, publicada em 1913. Tradução de Isabel Loureiro, com base em Rosa Luxemburgo, “Der zweite und der dritte Band [des ‘Kapitals’]”, em Rosa Luxemburgo, Gesammelte Werke (Berlim, Dietz, 1987); publicada originalmente em Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos, v. 2 (São Paulo, Editora Unesp, 2011), p. 263-74. (N. T.)
[b] Karl Marx, Das Kapital. Zweiter Band (MEW 24, Berlim, Dietz, 1972), p. 409-10 [ed. bras.: O capital: crítica da economia política, Livro II: O processo de circulação do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2014, p. 514-5]. (N. T.)
[c] Idem, Das Kapital. Dritter Band (MEW 25, Berlim, Dietz, 1972), p. 168 [ver, neste volume, p. 193]. (N. T.)