Antropologia medica e epidemiologia. processo de convergência ou processo de medicalização?

Eduardo L. Menéndez

Introdução

A Antropologia Social e as disciplinas médicas organizadas em torno da Saúde Pública, e em especial a Antropologia Médica e a Epidemiologia, desenvolveram perspectivas de descrição e análise do processo saúde/enfermidade/ atenção, que apresentam características simultaneamente complementares e divergentes1, que tratarei de analisar neste trabalho. Nossa análise das relações entre ambas disciplinas parte do suposto de que ocorreu um processo de convergência entre as mesmas, ao mesmo tempo em que determinados fatores limitam a possibilidade, de complementação em termos interdisciplinares. O impulso dado às atividades de Atenção Primária desde finais dos anos sessenta, e especialmente após a Conferência de Alma Ata; as propostas de participação social, de utilização de estratégias de atenção baseadas no saber popular ou de formação de sistemas locais de saúde (SILOS), assim como a recuperação de ações baseadas em redes sociais, grupos de apoio e auto-cuidado, favoreceram esta convergência pelo menos a nível declarativo. Este processo foi, além disso, favorecido pelo fato de terem passado para primeiro plano as doenças crônico-degenerativas, as "violências" e as dependências, assim como pelo especial desenvolvimento da AIDS que supuseram entre outras coisas o "descobrimento" das aproximações qualitativas e da significação do saber dos conjuntos sociais para o desenvolvimento de grupos de auto-ajuda e de outras estratégias de ação comunitária.

Por outro lado o reconhecimento da complexidade e de problemas considerados prioritários na América Latina, como o controle da natalidade e, a desnutrição ou a mortalidade e infantil, conduziu a que fosse proposta uma aproximação articulada entre ambas perspectivas, para favorecer a construção de um enfoque realmente estratégico. Mosley em 1988 assinala que a multiplicidade e variedade de fatores que incidem sobre a mortalidade infantil não podem ser reduzidos a soma de grande quantidade e de variáveis que estão complicando a análise e limitando a capacidade e explicativa: "Para evitar isso, há dois passos que, em geral, deverão ser dados se planificar a investigação e desenhar os estudos: realizar estudos antropológicos profundos e em pequena escala, como propõe Ware (1984) para identificar as variáveis críticas de interesse e sua interpretação, e especificar com cuidado as relações hipotéticas entre as variáveis, como discutem detalhadamente Palloni (1981) e Shultz (1984)". (Mosley 1988:323).

Porém este processo de convergência ocorreu de forma limitada e conflitiva por razões de tipo teórico-metodológicas, institucionais e profissionais que esperamos desenvolver através deste trabalho.

Unidades de análise, causalidade e prevenção

A análise de determinadas características de ambas disciplinas evidencia a similaridade e de suas aproximações metodológicas, pelo menos em um nível manifesto. Assim podemos observar que as mesmas tratam com algum tipo de conjunto social, o qual pode ser pensado em termos de grupos domésticos, grupos ocupacionais, grupos de idade, estratos sociais, etc. Para elas a unidade e deve ser algum tipo de conjunto social.

Atualmente as correntes dominantes na Antropologia Médica e na Epidemiologia reconhecem a multicausalidade da maioria dos problemas de saúde, e questionam que a explicação causal dos problemas específicos seja colocada em um só fator. A maneira de manejar a multicausalidade pode variar segundo o problema e/ou marco metodológico utilizado, e assim, enquanto que algumas investigações lidam com uma notória diversidade e dispersa de fatores explicativos, outras tratam de encontrar um efeito estrutural que organize os diversos fatores incluídos.

As duas disciplinas supõem a existência de algum tipo de desenvolvimento ou evolução do processo saúde/enfermidade/atenção (doravante processo s/e/a) específico, que no caso da Epidemiologia pode referir-se ao modelo da História Natural da Enfermidade e no caso da Antropologia à História Social do Sofrimento/Enfermidade, quer dizer, à proposta construcionista que considera que todo padecimento constitui um processo social e histórico que necessita ser reconstruído para que possam ser compreendidos os seus significados atuais não só para a população senão também para a equipe de saúde. Além das possíveis diferenças, é comum o entendimento da enfermidade e do cuidado como processos.

Um quarto ponto de convergência, refere-se ao fato de que a Antropologia e a Epidemiologia reconhecem que as condições de vida - sejam elas denominadas formas de vida da classe trabalhadora, subcultura adolescente ou estilo de vida do fumante - têm a ver com a causalidade, desenvolvimento, controle e/ou solução dos problemas de saúde. O conceito estilo de vida é aquele que parece ter tido maior acolhida os epidemiólogos, e vem a ser considerado como parte constitutiva de toda uma gama de doenças crônicas e de determinadas "violências".

Por último, digamos que ambas disciplinas tendem a propor uma concepção preventivista da doença, na qual se articulam diferentes dimensões da realidade, com o objetivo de limitar a extensão e gravidade dos danos à saúde.

Poderíamos seguir enumerando outros aspectos complementares considerados significativos, porém o importante a notar é que com respeito a cada um destes pontos de acordo, podemos detectar diferentes graus de discrepância que podem chegar ao antagonismo entre as propostas da Antropologia Médica e da Epidemiologia.

Se revemos cada um dos aspectos apresentados, podemos observar que embora ambas disciplinas tratem com conjuntos sociais, a epidemiologia muito freqüentemente descreve seus conjuntos em termos de agregados estatísticos, enquanto que a Antropologia trabalha preferencialmente com "grupos naturais". Embora não desenvolveremos este ponto, o considero decisivo no que diz respeito à construção e significado do dado referido ao processo s/e/a, uma vez que para o enfoque antropológico a desagregação dos conjuntos sociais em indivíduos supõe a violentação da realidade social que ditos sujeitos constituem. Desagregar os conjuntos sociais em indivíduos selecionados aleatoriamente, supõe não assumir que ditos indivíduos se definem a partir das relações estabelecidas dentro de seus grupos e que, além disso, a maioria de ditas relações não são aleatórias.

A desagregação dos conjuntos sociais em indivíduos, pertence a mesma concepção de partir a realidade social em múltiplas variáveis, carecendo freqüentemente a ambos conjuntos desagregados uma proposta teórica de articulação e inter-relação. Esta maneira de tratar metodologicamente a realidade conduz freqüentemente a produção de um tipo de informação que não corresponde aquilo que os conjuntos sociais produzem e reproduzem com respeito ao processo s/e/a.

Por outro lado, ainda quando as duas trabalham com uma concepção multicausal, a epidemiologia dominante situa o eixo da causalidade no biológico ou no bioecológico, enquanto a Antropologia Médica o situa em fatores de tipo cultural ou sócio-econômico2. Mais ainda, deve-se sublinhar que a tendência a buscar uma causalidade única e específica segue dominando a abordagem epidemiológica, haja visto a importância dada aos padecimentos crônico/ degenerativos, as violências e as dependências (ver Buck 1988; Nájera 1988; Nations 1986; Renaud 1992; Terris 1988).

A epidemiologia não só tende a pensar as causas da enfermidade em termos de uma causalidade bioecológica ou exclusivamente biológica, senão que se caracteriza pelo domínio de uma aproximação a-histórica no que diz respeito ao processo saúde/enfermidade/atenção. O uso dominante da análise de curta duração histórica não é um fato casual ou baseado em razões exclusivamente técnicas, senão que obedece a uma perspectiva metodológica que não inclui a significação da dimensão diacrônica. A série histórica de cinco ou dez anos expressa o peso do biológico entendido como uma constante e a série histórica de longa duração não aparece como necessária para compreender o desenvolvimento do padecimento nem as alternativas de solução, salvo para algumas correntes preocupadas com a história do processo s/e/a (ver revista Dynamis 1980-1995).

Embora a epidemiologia trabalhe com séries históricas curtas por razões compreensíveis, dada a necessidade de encontrar soluções ou pelo menos explicações a problemas imediatos como a emergência de episódios agudos ("brotes") ou mesmo devido a desconfiança com respeito à validez dos dados epidemiológicos existentes, não é apenas por estas ou outras razões similares que não utiliza a dimensão histórica.

As ciências antropológicas e sociais têm proposto uma concepção construcionista da doença, das estratégias de atenção, mas também da vida cotidiana onde se processa o padecimento, o que, entre outras razões, a têm conduzido observar historicamente o papel da biomedicina com respeito a toda uma diversidade de problemas. Se bem que o processo de medicalização e, em especial, o da "psiquiatrização" têm sido os mais investigados, esta abordagem tem sido aplicada a temas tão diversos como o auto-cuidado ou o processo de alcoolização. Para além dos tipos de interpretações específicas resultantes dessas investigações, as mesmas têm posto em relevo o fato de que ditos processos só podem ser realmente compreendidos a partir de uma perspectiva diacrônica construcionista e têm evidenciado a significação paradoxal da biomedicina tanto na construção técnica da enfermidade (disease) como também na construção social do padecimento (illness). Demonstraram, por exemplo, que o saber médico e especialmente o próprio profissional, é uma das principais causas da automedicação com fármacos (ver Conrad e Schneider 1980; Douglas, 1970; Gaines, 1992; Lock e Gordon, 1988; Menéndez, 1990a, 1990c; Menéndez e Di Pardo, 1996a; Morgan, 1983; Scott, 1970; Soe. Sc. Med., 1992)3. No caso do conceito estilo de vida observamos que, enquanto a Antropologia trata de manejá-lo como um conceito holístico, a Epidemiologia tende a reduzi-lo a comportamento de risco, erodindo a concepção teórico-metodológica a partir da qual foi proposto. Este conceito se constituiu a partir do marxismo, da abordagem compreensiva weberiana, da psicanálise e da antropologia cultural norte-americana (ver Coreil et ai, 1985), ainda que se deva reconhecer que as concepções teóricas que mais influíram sobre a formulação e desenvolvimento deste conceito são as historicistas alemãs4. O objetivo era produzir um conceito que, a partir das dimensões materiais e simbólicas, possibilitasse a articulação entre o nível macro (estrutura social) e o nível dos grupos intermediários expressos através de sujeitos cujo comportamento se caracterizava por um determinado estilo exercitado na vida cotidiana pessoal e coletiva. Era um conceito holístico, já que através do sujeito/grupo pretendia observar-se a globalidade da cultura expressada através de estilos particulares.

As necessidades explicativas/aplicativas da epidemiologia despojaram este conceito de sua articulação material/ideológica em termos holísticos e reduziram sua aplicação ao risco subjetivo ou grupai específico. Segundo uma perspectiva antropológica o hábito de fumar não é um risco separável das condições globais em que o sujeito produz sua vida; é o contexto global que está em jogo através do estilo de vida. Isolar o risco de beber, de fumar ou de comer determinados alimentos pode ser eficaz para intervir a nível de condutas individuais, mas não só anula o efeito compreensivo do problema, senão que reduz a eficácia da intervenção.

As investigações epidemiológicas britânicas evidenciaram que os fumantes homens de classe baixa são os que têm maior risco de morrer e os que têm maiores dificuldades de abandonar o hábito de fumar, comparado com os homens dos estratos médio e alto. Seria o pertencimento a classe e não o estilo de vida o condicionante de dito hábito. Recuperando a significação original deste conceito, o estilo depende dos condicionantes globais que, neste caso, se referem a situação e relações de classe. Para a classe trabalhadora britânica, fumar, beber cerveja especialmente preta, ter relações físicas violentas, conviver socialmente no "pub" (bar), etc, conformam um estilo de pertencimento de classe e de diferenciação de classe que é o que fundamentaria a persistência de seu hábito tabagista. Estes "hábitos"5 expressam a maneira de estar no mundo, a identidade cultural e a diferenciação social. No que diz respeito a prevenção existem várias diferenças, e algumas das mais significativas se organizam em torno do uso das representações e práticas culturais como mecanismos de prevenção. Enquanto a Epidemiologia e o sanitarismo em geral se caracterizam pelo escasso uso das "variáveis" socioculturais, a socioantropologia as considera como substantivas. Mais ainda, a perspectiva médica só vê as representações e práticas da população como fatores que incidem negativamente sobre sua saúde; as percebem como um saber basicamente a modificar. Além disso, esta perspectiva considera explícita ou implicitamente que a população não usa critérios de prevenção.

Sem negar totalmente estas interpretações, o primeiro a recuperar é que todo grupo social independente de seu nível de educação formal, gera e utiliza critérios de prevenção frente aos padecimentos que, real ou imaginariamente, afetam sua saúde na vida cotidiana. Não existem grupos que careçam destes saberes preventivos, porque os mesmos são estruturais a toda cultura, já que são decisivos para a produção e reprodução da mesma (Menéndez 1994).

A maioria destes critérios preventivos são socioculturais e o ponto central para essa discussão não é tanto considerá-los como comportamentos equivocados ou corretos, senão assumir que os grupos sociais produzem critérios e práticas de prevenção, sejam ou não errôneos.

Reconhecer isto suporia uma mudança radical na perspectiva sanitarista, pois esta assumiria que os conjuntos sociais não são reacionárias a prevenção na medida em que a produzem e utilizam. Como conseqüência, um dos principais objetivos médicos passaria a ser a descrição e análise dos significados dos saberes6preventivos dos grupos sociais para estabelecer a possibilidade de aplicar ações preventivas a partir das representações e práticas da própria população.

Diferenciações e distanciamentos: a apropriação de conceitos

Agora bem, as características assinaladas aparecem condicionadas por toda uma série de processos que vão desde o metodológico ao institucional, e dos quais só comentaremos aqueles que facilitem interpretar as divergências.

Em sua aproximação ao processo s/e/a, a Antropologia parte de uma concepção unilateralmente sociogênica. A quase totalidade das tendências antropológicas são sociogênicas desde o marxismo até o interacionismo simbólico, passando pelo culturalismo integrativo, o construcionismo ou o estruturalismo. É em função deste suposto comum que todas as tendências propõem que o nível de análise mais estratégico para explicar o processo s/e/a é o que corresponde ao nível socioeconômico ou ao sociocultural e não ao nível biológico. Isto adquire características radicais em todas as tendências salvo a ecologia cultural e o materialismo mecanicista, a última das quais tem escassos representantes na Antropologia Médica.

No que diz respeito ao processo s/e/a, a Epidemiologia parte do patológico, quer dizer, da enfermidade (disease) entendida como problema médico, enquanto a Antropologia parte do padecimento (illness) como processo sociocultural e econômico-político que inclui o fenômeno considerado patológico. Algumas correntes teóricas antropológicas operam inclusive com uma forte tendência a despatologizar ou reduzir o patológico ao processo social "normal". Esta tendência foi criticada por sanitaristas que sustentam — e muitas vezes acertadamente — que o relativismo antropológico e a ênfase na cultura como "verdade" conduzem a reduzir a significação dos processos patológicos. Não obstante, o que devemos ressaltar é que, enquanto a Epidemiologia coloca seu eixo de análise no processo patológico, a Antropologia Médica o situa na estrutura e processo socioculturais .

Nos últimos anos temos investigado o problema do "alcoolismo" no México e propusemos como conceito central o "processo de alcoolização", ao qual remetemos os conceitos de "alcoolismo", "alcóolico" e "dependência". O processo de alcoolização inclui todos aqueles processos sociais considerados como decisivos na estruturação do alcoolismo como fenômeno patológico, normal e coletivo e, como conseqüência, remetemos a ele não só os conceitos biomédicos assinalados, senão também os "riscos" que afetam as condutas individuais (ver Menéndez 1990a; Menéndez e Di Pardo, 1996a).

Já em 1943 Horton propunha que para um antropólogo interessado no problema do alcoolismo, tinha tanta significação estudar os alcóolicos crônicos ou os bebedores sociais como a população não bebedora, dado que é através das representações e práticas dos diferentes conjuntos sociais que podemos obter uma explicação/interpretação do fenômeno em termos da estrutura sociocultural e não só do fenômeno patológico em si. Ainda mais, o consumo "patológico" e suas "conseqüências" se explicariam não só pelos sujeitos alcoolizados, senão pelo conjunto de atores implicados no sistema social (ver Horton 1991(1943)).

Agora bem, existe um ponto de convergência que simultaneamente se constitui em um dos principais pontos de antagonismo potencial assim como de expressão do processo de medicalização. Nos referimos à produção e uso de conceitos por parte de ambas disciplinas.

Uma revisão, inclusive superficial, dos conceitos que são utilizados pela Epidemiologia, a Saúde Pública ou a Medicina Social permite constatar o óbvio: que grande parte de seus conceitos básicos foram nomeados e utilizados previamente pelas Ciências Sociais e Antropológicas. Os conceitos de necessidades, de comunidade/organização da comunidade, desenvolvimento comunitário, de grupo e ciclo doméstico, de participação social, de classe social/estrato social/níveis sócio-econômicos/pobreza, de redes sociais, de níveis educacionais, de ocupação/trabalho/processos laborais/níveis ocupacionais, de sexo/gênero, de estilo de vida, e estratégias de sobrevivência/estratégias de vida, etc, foram formulados, utilizados, modificados e inclusive abandonados pelas Ciências Antropológicas e Sociais antes que fossem apropriados ou reinventados pelas Ciências da Saúde.

Isso quer dizer que estes conceitos são produto de um processo teórico e metodológico, do qual a maioria dos epidemiólogos parece não ter muita informação. No que diz respeito a esse ponto é preciso ressaltar que todos estes conceitos se referem a teorias específicas e que, pelo menos uma parte deles (necessidades, comunidade, redes sociais, estilo de vida) foram desenvolvidos por tendências que utilizavam preferencialmente técnicas qualitativas.

No que toca o uso de conceitos, pelo menos em alguns países da América Latina, ocorre algo interessante já que conceitos como medicalização, controle social e cultural, a relação entre o cultural e o biológico ou a articulação entre o normal e o patológico, vêm a ser utilizados por uma parte dos que trabalham ao interior do campo da saúde como termos elaborados por filósofos ou epistemólogos, quando uma parte dos mesmos foram cunhados e aplicados inicialmente por antropólogos e sociólogos. Assim na América Latina numerosos sanitaristas utilizam estes conceitos a partir da obra de Foucault ou de Canguilhen ignorando a massa de investigação empírica e de elaboração teórica produzida desde a década de 1920 pelas ciências sociais e antropológicas que trabalharam a fundo alguns destes conceitos, e que possivelmente seria de maior utilidade a eles, sanitaristas, que aqueles formulados por ditos filósofos franceses.

O ponto assinalado acima não implica negar a importância das contribuições de Foucault ou de Canguilhen, senão recuperar a massa de material socioantropológico produzida em sua maioria a partir de "trabalho de campo". É preciso esclarecer também que não recuperamos a importância de toda essa produção antropológica, apenas constatamos sua existência e observamos que a mesma deveria ser conhecida e avaliada em sua significação. Se os sanitaristas e clínicos e por suposto antropólogos que recuperam os marcos interpretativos, conhecessem mais a fundo não só um de seus referentes mais evidentes (me refiro a Geertz), mas a produção antropológica norte-americana, britânica, canadense, alemã, italiana e francesa gerada entre 1920 e 1960, poderiam observar que o que fizeram as ditas correntes interpretativas atuais foi aprofundar um campo que já havia gerado notáveis contribuições atualmente esquecidas ou negadas.

A falta de reconhecimento de que estes e outros conceitos que são atualmente utilizados pelas Ciências da Saúde têm uma história conceituai expressa de forma quase paradigmática não só o desconhecimento que ditas ciências têm da produção antropológica, senão também a-historicidade das disciplinas advindas, em termos metodológicos, do Modelo Médico Hegemônico.

Porém, e isso é o que me interessa sublinhar, dito desconhecimento tem conseqüências negativas de tipo muito diverso no trabalho epidemiológico. Conduz, por um lado, a "redescubrir o óbvio" de tempo em tempo, o que significa perda de tempo, desperdício de recursos, usos conceituais incorretos em termos técnicos, etc. Não saber como foram produzidos e, sobretudo, aplicados os conceitos implica ignorar a capacidade que estes tiveram de explicar e solucionar os problemas levantados. Implica reduzir a capacidade de discriminar se o problema reside no conceito ou no seu uso7.Conceitos que foram ou estão sendo utilizados por sanitaristas - e me refiro a conceitos como necessidade, comunidade, participação social ou sexo/gênero - são conceitos que têm uma larga ou curta história, não só "teórica", mas de investigação aplicada na América Latina. Mais ainda, alguns destes conceitos se difundiram de forma notável, expressando não só modas circunstanciais mas estimulações teórico/práticas e financeiras diretas ou indiretas, que freqüentemente acentuaram a tendência a-histórica assinalada. Durante anos o conceito de gênero se manteve nos redutos de sociólogas, historiadoras e ativistas feministas, para irromper na América Latina nos anos oitenta e noventa através dos estudos sobre sexualidade, planificação familiar ou saúde reprodutiva. Uma parte destas investigações, que têm como um de seus eixos o conceito de gênero, tem despojado dito conceito não só de sua potencialidade analítica mas de seus objetivos de impugnação, dado o processo de produção de conhecimento ao interior do qual está sendo incluído.

Na nossa perspectiva, o uso de conceitos está referido, de forma consciente ou não, a teorias (e, logo, a "teóricos") que os produziram dentro de um determinado marco referencial, o que pode implicar discrepância, complementaridade ou antagonismo com o forma pela qual outros marcos teóricos usam o mesmo conceito. Os conceitos são designações provisórias que, pelo menos em Antropologia, não são "neutros", senão que se referem a determinadas tendências teóricas. Esta contextualização parece estar ausente de muita produção epidemiológica que inclusive produz "teorias" explicativas nas quais estes referentes teóricos são omitidos.

A penúltima destas "teorias" é aquela denominada "transição epidemiológica". Como todos sabemos, esta foi proposta nos EUA em princípios da década de 70 e foi aplicada por autores latino-americanos durante a segunda parte da década de 80. O que me interessa sublinhar a esse respeito é que o conceito de "transição epidemiológica" - saibam ou não aqueles que fazem uso dele - está relacionado com uma proposta evolucionista/desenvolvimentista da sociedade, formulada geralmente em termos tipológicos e que se sustenta na chamada teoria da modernização. Esta teoria gozou de grande difusão nas décadas de 1950 e 1960, e teve como alguns de seus principais exponentes sociólogos e antropólogos latino-americanos. Esta teoria foi criticada durante os anos sessenta e entrou em desuso a finais de dita década e durante os setenta. A discussão teórica sobre a "transição" que, por outro lado, emerge da década de 308, não aparece presente na maioria dos que utilizam esta "teoria" na América Latina. Utilizam-na a partir de dados empíricos, manejados de determinada maneira, como se dito conceito não estivesse referido a concepções teóricas que, como se demonstrou a seu tempo no caso da modernização, implicava assumir determinadas concepções ideológicas com respeito ao "desenvolvimento" modernizador.

Esta recuperação atual tem a ver não só com uma aproximação científica, senão também com o desenvolvimento das propostas econômico-políticas atualmente dominantes em grande parte dos países latino-americanos, dado que dita teoria da transição se articula com as propostas neoliberais e neoconservadoras, da mesma forma que sua antecessora, a "teoria da transição demográfica", se articulava ideologicamente com as concepções "desenvolvimentistas".

A proposta da "transição epidemiológica" se baseia em informação que indicaria uma determinada tendência histórica dos danos à saúde e dos perfis epidemiológicos. Este conceito teria uma base descritiva e não teórica; porém o importante a recuperar é que, como vimos, dito conceito se refere a "teorias" que foram analisadas enquanto tal, demostrando-se não só sua falta de capacidade explicativa, senão também sua clara afiliação ideológica9. Considero que este último ponto que acabamos de assinalar merece uma revisão do que se entende por "descritivo" em Antropologia Social e em Epidemiologia. Para isso não só devemos assumir que grande parte da Epidemiologia que se realiza é de tipo descritivo, senão que uma das características básicas do trabalho antropológico é produzir "etnografía", quer dizer, descrições. Assumindo, conseqüentemente, que a descrição, que a produção do "dado" aparece como prioritária para ambas disciplinas, a questão é precisar o que cada uma entende por produção do "dado". E aqui residem algumas das principais divergências.

Quando lemos e analisamos trabalhos de Saúde Pública ou de epidemiologia clínica que fazem referências ou propõem e/ou incluem em suas investigações aspectos tais como estratégias de sobrevivência, ciclo de vida dos grupos domésticos, processos ideológico/culturais, estilos de vida ou práticas de autocuidado e observamos os dados empíricos que nos apresentam e analisam, torna-se evidente que há uma concepção diferencial não explicitada no que se entende por cada um destes aspectos e sobre o tipo de "dado" a produzir. Suponho que pelo menos uma parte dos epidemiólogos sente o mesmo com respeito ao dado antropológico. Este ponto é particularmente importante e constitui um dos eixos das diferenças que necessariamente tanto epidemiólogos como antropólogos devem precisar10.

Algumas características do enfoque antropológico

A Antropologia Médica e também outras disciplinas sócio-históricas tem produzido materiais empíricos e teóricos que supõem não só contribuições, senão também possibilidades de articulação com a perspectiva epidemiológica, sempre e quando exista realmente um interesse de articulação e no prime a exclusão nos fatos. A seguir enumeraremos algumas destas contribuições socioantropológicas.

A primeira contribuição refere-se a proposta de uma epidemiologia sociocultural; quer dizer que recupere os significados e as práticas que os conjuntos sociais dão aos seus padecimentos, problemas, pesares, dores, etc, articulados com as condições estruturais e processuais que operam em uma situação historicamente determinada. É preciso lembrar que este tipo de epidemiologia sociocultural tem sido produzida desde finais do século XIX e que durante os primeiros cinqüenta anos deste século foi se enriquecendo através de contribuições pontuais que possibilitaram sua expansão a partir da década de sessenta e setenta.

A primeira contribuição sistemática é a investigação de Durkheim (1897) sobre o suicídio, o qual constituiu a seu tempo, e ainda segue sendo, uma alternativa teórico/metodológica para pensar o dado epidemiológico11. Posteriormente os trabalhos de Dunhan e Faris sobre a esquizofrenia em Chicago, de Mauss sobre as técnicas do corpo, de Devereux sobre o suicídio e o homossexualismo entre os Mohave, de Mead e Bateson sobre problemas infantis em Bali, ou de De Martino sobre o tarantismo no sul da Itália constituíram propostas de articulação dos processos culturais e sociais com respeito a interpretação de padecimentos e problemas, que possibilitaram a expansão desta aproximação a partir dos anos sessenta e setenta (Caudill, 1953; Dunn e Janes, 1986; Opler, 1959; Paul, 1989; Trostle, 1986a, 1986b; Young, 1982), e que supôs a contínua inclusão de marcos referenciais teóricos não só antropológicos, mas sociológicos e "filosóficos" (ver Bibeau, 1987)12. A possibilidade de uma epidemiologia sociocultural está radicada no reconhecimento da existência de uma estruturação epidemiológica no saber dos conjuntos sociais, o qual devemos reconstruir a partir das mesmas. Isto se correlaciona com o reconhecimento da existência de uma estruturação epidemiológica em todos os tipos de curadores, quer dizer nos médicos familiares e generalistas, nos curadores populares, nos especialistas alopatas e de outros sistemas médicos como podem ser as numerosas religiões terapêuticas desenvolvidas nos últimos anos. Ditos saberes epidemiológicos profissionais apresentam não só diferenças e antagonismos entre si, como também pontos de similaridade e articulação. O saber epidemiológico dos conjuntos sociais é o que opera uma síntese inicialmente pragmática, a partir de sua própria definição da significação dos padecimentos que o ameaçam real ou imaginariamente (ver Menéndez 1984, 1990b, 1990d, 1994).

A epidemiologia sociocultural deve referir não só às representações como também às práticas. Uma parte significativa da Antropologia Médica como da Epidemiologia analisa só as representações dos conjuntos sociais. Esta maneira de construir a informação deve ser modificada e nesta perspectiva é preciso assumir que as representações não só devem ser referidas a indicadores objetivos por exemplo análises bioquímicas - como também às práticas que a população produz e que não necessariamente são idênticas a suas representações. Partimos do pressuposto metodológico da existência de discrepâncias constantes entre representações e práticas.

Em função do que foi assinalado é preciso assumir que os conjuntos sociais manejam um número maior de representações que de práticas no que toca um processo s/e/a determinado. As práticas supõem um tipo de síntese/seleção das representações em função da ação. Isto não só se aplica ao saber popular, senão também ao saber dos curadores, incluído o saber biomédico (Menéndez e Di Pardo 1996a, 1996b).

O processo s/e/a deve ser entendido como uma construção social. Os conjuntos sociais vão construindo um perfil epidemiológico integrado13; porém é preciso ressaltar que as representações e práticas relativas a cada um dos padecimentos e a suas características clínicas e epidemiológicas, não aparecem como algo estruturado, senão que emergem reativamente ante as situações específicas. Quer dizer que reconhecemos um processo de constituição histórica do saber dos conjuntos sociais, porém que deve, por sua vez, ser reconstruído no trabalho antropológico. Os aspectos enumerados são alguns dos que integram o núcleo central da proposta antropológica e que se estrutura em torno do reconhecimento de que o processo saúde/enfermidade/atenção constitui um dos campos, para alguns o principal, em que os conjuntos sociais produzem o maior número de representações e de práticas. Mais ainda, estas representações e práticas cumprem várias tarefas fundamentais articuladas entre si, e que vão desde possibilitar uma interpretação e ação com respeito aos padecimentos reconhecidos como ameaçadores até possibilitar articular a relação dos sujeitos e grupos sociais com a estrutura social.

O processo s/e/a inclui desde ações cotidianas de solução de problemas até a elaboração de interpretações que expressam os núcleos centrais das ideologias/ culturas dominantes/subalternas dos diferentes grupos que transacionam em uma sociedade determinada. Dado que os conjuntos sociais necessitam dar uma interpretação, quer dizer, dar sentido e significado a seus padecimentos, a enfermidade e suas representações e práticas são, para a antropologia, parte constitutiva dos sujeitos (Stein 1985, 1990).

Um aspecto nuclear da perspectiva antropológica que tem adquirido relevância nos últimos anos com respeito a investigação e intervenção sobre o processo s/e/a, é o que se refere ao uso de técnicas qualitativas de obtenção de informação, análise e/ou ação. A ênfase nas políticas de Atenção Primaria, por um lado, e a modificação do perfil epidemiológico por outro, favoreceram o reconhecimento da importância desta aproximação qualitativa, pelo menos com respeito a determinados padecimentos e determinadas estratégias.

Deve-se sublinhar que a recuperação da aproximação qualitativa relativa a investigação do processo s/e/a se originou nos países capitalistas centrais, e em particular a partir do desenvolvimento da síndrome de imunodeficiência adquirida. As características da doença e dos sujeitos ou grupos portadores do problema, evidenciaram rapidamente as limitações da aproximação estatística para obter informação estratégica que pudesse ter algum tipo de utilidade explicativa e prática em termos do comportamento dos grupos de risco. A medida que se expandia a epidemia da AIDS, os dados referentes a relação da AIDS com o homossexualismo, bissexualismo, prostituição (incluída a prostituição infantil), etc, evidenciaram ainda mais a necessidade de trabalhar com aproximações de tipo qualitativo.

Mas, e isto é o que me interessa ressaltar, o que se "descobriu" a respeito da AIDS não é diferente do que sabíamos sobre outras doenças e problemas frente aos quais a abordagem estatística evidenciava iguais ou maiores limitações para obter informação estratégica. Na maioria dos países da América Latina temos poucos dados com respeito a toda uma série de padecimentos e a falta de informação deve-se não apenas a pouca confiabilidade nos sistemas de captação institucional mas também ao tipo de instrumentos estatísticos aplicados nas investigações epidemiológicas.

Na maioria dos países da América Latina, conseqüentemente, a informação epidemiológica não é confiável ou é inexistente para problemas como infanticidio, suicídio, alcoolismo, dependência a drogas, homicídio, violência intrafamiliar, violações, aborto, síndromes culturalmente denominados, cirrose hepática, automedicação. Quase todos esses padecimentos e problemas, assim como a AIDS, têm que ver com o "ocultamente" intencional ou funcional da informação, mas sobretudo com a falta de interesse na modificação das estratégias metodológicas.

Assim, deve-se lembrar que vários dos padecimentos assinalados constituem algumas das principais causas de mortalidade em vários países latino-americanos tanto a nível geral quanto de grupos de idade, em particular. Ou seja, a não aplicação de técnicas qualitativas de obtenção de informação e de análise no estudo desses padecimentos não é devido a importância secundária dos mesmos, mas a outras causas que, em grande medida, estão relacionadas à concepção metodológica na construção da informação e à sobredeterminação do Modelo Médico Hegemônico14 .O registro de informação com respeito aos padecimentos assinalados deve, por sua vez, ser articulado com o tipo de informação produzida a nível estatístico para tais problemas. Se observarmos, por exemplo, o tipo de "dado" produzido epidemiologicamente para um problema como o "alcoolismo", inclusive em países com tradição de investigação neste campo como o México15, podemos notar que, depois de quase trinta anos de produzir surveys epidemiológicos sobre esta problemática, as variáveis tomadas em conta continuam sendo reiteradas sem que tenham gerado contribuições substantivas diferenciais (ver Menéndez, 1990a; Menéndez e Di Pardo, 1996b).

Em todas elas se conclui que o alcoolismo opera em homens de determinadas idades, sendo a maioria pertencente a determinados estratos sociais, que professam determinada religião, que têm determinado nível educacional formal, etc, mas sem produzir conteúdos em termos de significações e práticas que nos permitam trabalhar com tais variáveis. Embora se fale em levar em conta os padrões de consumo e as dinâmicas culturais, e inclusive alguns proponham estudar o saber dos conjuntos sociais dado que consideram o "alcoolismo" como parte da religiosidade popular, tal informação não se produz, salvo raras exceções, e as reiteradas investigações estatísticas continuam sem apresentar dados estratégicos para trabalhar com os comportamentos e com as estruturas sociais.

Mais ainda, o México produziu nos últimos cinco anos duas enquetes a nível nacional sobre drogadições (SSA 1990 e 1993), incluindo nestas o alcoolismo, e seus dados continuam a reiterar o uso das variáveis já conhecidas, sem produzir a informação que possibilitaria um tipo de interpretação e de ação pelo menos diferentes daquelas já dominantes.

Por outro lado, a Enquete Nacional de Saúde (SSA 1988) que detectou enfermidades crônicas por grupos de idade, codificou diabetes melllitus, hipertensão, bronquite, cardiopatias, artrite, desnutrição, tuberculose, epilepsia, cegueira, surdez, retardo mental e outras causas. Entretanto, não detectou cirrose hepática em termos de morbidade, embora seja uma das primeiras dez causas de mortalidade, constitua a primeira ou segunda causa de morte em grupos em idade produtiva, seja a principal causa de hospitalização nos serviços de gastroenterologia e implique uma evolução patológica de entre oito e doze anos. Isso quer dizer que não só o alcoolismo levanta problemas para os epidemiólogos, como também a cirrose hepática.

A mudança para primeiro plano das enfermidades crônico-degenerativas também favoreceu o reconhecimento das técnicas qualitativas, dado a crescente importância outorgada aos estilos de vida tanto na causação como para o controle e, sobretudo, autocontrole destas doenças. A recente ênfase dada a experiência do sujeito enfermo, a convivência com "seu" padecimento e o "autocuidado" como expressões que podem assegurar uma maior esperança e qualidade de vida, reforçam ainda mais a significação das técnicas qualitativas.

Estas últimas referências nos conduzem a outro fator que tem dado impulso ao desenvolvimento da abordagem qualitativa. As propostas de Atenção Primária, não só as de Atenção Primária Integral e Seletiva, mas também as de Atenção Médica Primária, supõem a inclusão de atividades de participação social e organização comunitária, a utilização de práticas populares ou o impulso da educação para a saúde. Todas estas ações implicam a necessidade de produzir informação clínica ou epidemiológica estratégica, para o que as técnicas qualitativas tornamse decisivas.

É preciso assumir, em toda sua significação, que a maioria da informação a ser obtida para dar impulso a estas estratégias refere-se a processos sociais, culturais, ideológicos e políticos e que, além disso, é requerido incluir a ação a partir não apenas dos serviços de saúde, senão, sobretudo, a partir da própria população. Se isto é assumido realmente, e não apenas como proposta burocrática ou meramente declarativa, supõe a utilização de uma abordagem qualitativa. Conseqüentemente, se é "real" a preocupação com a Atenção Primária e com os Sistemas Locais de Saúde (SILOS), tais objetivos requerem o desenvolvimento de uma epidemiologia não só do patológico, mas dos "comportamentos normais", assim como, portanto, sua relação com a estrutura e organização social a nível local. Este é um ponto que mereceria discussão a partir de uma análise, por exemplo, das propostas de Atenção Primária e de como são realmente levadas a cabo16.

De erosões metodológicas e medicalizações

Faz poucos anos alguns dos mais destacados antropólogos médicos atuais, entre os quais estava M. Lock, levantaram o perigo de medicalização da Antropologia Médica, pelo menos nos Estados Unidos e no Canadá. Esta discussão se apoiava sobre um aspecto que vem a ser desconhecido pelos sanitaristas, porém também pelos antropólogos latino-americanos. Me refiro ao fato de que a Antropologia Médica constitui nos EUA a disciplina antropológica de maior expansão nos últimos dez anos, é a primeira ou segunda especialidade com maior número de membros ativos, a que produziu o maior número de revistas especializadas recentes, a que logra maior número de postos ocupacionais e um dos campos com maiores recursos financeiros.

Esta expansão tem a ver com vários dos aspectos analisados, em particular, com a aplicação da abordagem antropológica à investigação e ação em Atenção Primária e sobre enfermidades crônicas, AIDS, drogadição, violências e saúde reprodutiva, para os quais existem maiores fontes e quantias de financiamento.

O perigo de medicalização da antropologia era referido, a nível dos países centrais, à ênfase na especialização antropológica correlativa da especialização médica, a que o quantum maior de investigações epidemiológicas optavam pelo enfoque ecológico cultural que é o mais similar, em suas concepções metodológicas e técnicas, ao enfoque epidemiológico, a um incremento constante de investigações de recorte empirista, a uma crescente subordinação teóricometodológica ao Modelo Médico Hegemônico, etc.

Se bem que nossa experiência na América Latina não pode ser referida a estes processos, pelo menos tal como foram analisados por antropólogos norteamericanos, canadenses e britânicos, há, não obstante, alguns fatos que compartilhamos, em grande medida porque foram desenhados e receberam impulso de antropólogos e sanitaristas norte-americanos a partir de suas investigações na América Latina. Destes um dos mais destacados e de relativa expansão tem a ver com o desenvolvimento de tecnologias rápidas de obtenção de informação e de análise. Assim foram produzidos vários manuais de "etnografía rápida" voltados para a obtenção de informação epidemiológica e sobre serviços de saúde (ver Scrimshaw e Hurtado, 1988; Herman e Bentlee, 1992).

Em função da informação que manejo a respeito da América Latina, as "etnografías rápidas" referidas ao processo s/e/a foram utilizadas basicamente por médicos e paramédicos ou, para ser mais preciso, por equipes de saúde. Pode haver antropólogos, geralmente norte-americanos, entre os introdutores desta tecnologia, porém, em geral, sua instrumentação não esteve a cargo de antropólogos.

As etnografías rápidas partem de um fato que reiteradamente observamos em nosso trabalho antropológico e que é justamente o que permitiu fundamentar a significação das abordagens qualitativas. O trabalho com poucos informantes, mas em profundidade, permite construir o perfil epidemiológico de um grupo determinado, porém, além disso, possibilita a inclusão de informação econômica, política, sociocultural no estudo de tais padecimentos. Mais ainda, esta epidemiología permite "encontrar" informação sobre padecimentos geralmente relegados ou inexistentes nas enquetes epidemiológicas, assim como interpretações a partir do ponto de vista dos atores que permitiriam programar e desenvolver atividades específicas. Porém, esta forma de trabalho antropológico supõe o emprego de um largo e profundo trabalho de campo, em termos comparativos com o trabalho epidemiológico. Por outro lado, esta metodologia supõe uma abordagem de tipo holístico que, embora não se cumpra em sentido integral, opera como marco referencial de nosso trabalho.

A proposta de "etnografías rápidas" implica despojar o trabalho antropológico não só de seu marco referencial holístico, como de sua profundidade. Esta forma de trabalho leva a que aconteça o que já se produziu, por exemplo, com respeito ao conceito estilo de vida; quer dizer, a erodir a capacidade teóricoprática dos instrumentos sócio-antropológicos. Estas modificações se ajustam às concepções de Atenção Médica Primária e, em certa medida, de Atenção Primária Seletiva e podem ter potencialidade operativa, porém praticamente impossibilitam obter o que constitui parte do núcleo da proposta antropológica: as significações das representações e das práticas dos conjuntos sociais.

A meu ver esta proposta encobre um fato decisivo: alguns dos que lhe deram impulso têm uma ampla experiência em trabalho antropológico junto a seus grupos de interesse. É em função deste saber vivenciado que construíram modalidades de obtenção de informação e de intervenção transmissíveis apenas através de um tipo de aprendizagem que implica tempo e trabalho de campo, o qual não se dá. Em sua proposta, estes investigadores não incluem como variável decisiva o papel de sua própria experiência profissional, des-historicizando seu instrumento metodológico, para reduzi-lo a um recurso técnico. Este fato, que ao nosso ver é determinante, praticamente não é analisado na proposta das etnografías rápidas.

Outro fato que não aparece suficientemente ponderado refere-se a utilização de trabalhadores de saúde locais para levar a cabo estes trabalhos de etnografia rápida. A experiência antropológica, assim como os programas de Atenção Primária integrais, tem verificado constantemente a viabilidade de produzir não apenas curadores locais que manejem técnicas biomédicas como também que possam gerar uma epidemiologia local (ver Kroeger, Montoea-Aguilar e Bichman, 1989). Porém esta possibilidade está montada, no que toca a produção de dados epidemiológicos e antropológicos, em que tais trabalhadores sejam membros do grupo com o qual trabalham. Quando esta metodologia trata de ser apropriada, em termos de investigação, por pessoas que não têm esta pertença ao grupo ou que não têm o saber acumulado já assinalado, ocorrem problemas.

A esse respeito, há um ponto que me interessa enfatizar e que se refere à forma pela qual a abordagem de tipo qualitativo está sendo utilizada pelo pessoal oficial de saúde e também por membros de organizações não governamentais (ONGs). Este uso está gerando a redução dos instrumentos teórico-metodológicos a receitas técnicas e fazendo com que os financiamentos assim como as urgências e as necessidades de entregar resultados passem a determinar o uso das técnicas. Tanto em pesquisa como em pesquisa-ação sobre aspectos da realidade e problemas que requerem justamente uma metodologia baseada, em grande medida, no tempo, estão sendo aplicadas metodologias de urgência17.

A ênfase no qualitativo, o "falar" de etnografías porém rápidas, o incluir uma terminologia que refere-se a significações, sentidos, representações, saberes, identidades e, ultimamente, subjetividades; a conversão de instrumentos que potencialmente produzem "etnografías profundas" em instrumentos que produzem dados urgentes porém freqüentemente superficiais, supõe a necessidade de começar a aclarar o sentido desta tendência que tende a apropriar-se de um corpo de palavras que se referem a uma metodologia de tipo antropológico, porém que estão sendo re-significadas a partir de uma concepção não qualitativa do "dado" produzido, que na prática tende a separá-lo da referência teórica. Isto está se dando não só em trabalhos realizados segundo uma perspectiva sanitarista, como também em investigações ditas antropológicas.

O perigo do mau uso do qualitativo é que pode dar lugar a várias deformações: hiper-empirismo, a-teoricismo, qualidade duvidosa ou não estratégica da informação, etc. ao interior da própria Antropologia Médica. Quer dizer, pode chegar a replicar as características dominantes em muita da produção epidemiológica e sociológica, que paradoxalmente questionou. A abordagem qualitativa supõe não apenas o uso de determinadas palavras mas um rigoroso controle epistemológico a nível artesanal, assim como um questionamento metodológico das urgências18.

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Notas

1 Ao interior de ambas disciplinas existem diferentes correntes teórico/metodológicas, porém nossa análise se reduzirá às tendências dominantes em cada uma delas.

2 Esta afirmação reconhece que a Epidemiologia Social coloca o eixo de seus interesses na dimensão econômico-política, existindo assim pontos de contato com a denominada Antropologia Médica Crítica. É importante observar, contudo, que a Epidemiologia Social não só inclui informação de tipo sociocultural ou ideológico como tampouco a Antropologia Médica se restringe aos processos econômico-políticos, conforme apontam algumas tendências.

3 Estas conclusões não ignoram que algumas das principais contribuições em epidemiologia histórica foram realizadas por epidemiólogos. Assim MacKeown (1976), analisando dados epidemiológicos em uma série histórica larga, demonstrou, para vários países europeus, a reduzida significação da biomedicina na eliminação das principais enfermidades infecto-contagiosas durante a segunda metade do século XIX e primeiras décadas do século XX.

4 O sanitarismo britânico, que utilizou desde cedo e amplamente este conceito, foi notadamente influenciado pelos estudos sociohistóricos sobre cultura trabalhadora. Ver Fitzpatrick e Scambler, 1990.

5 Recordemos que o conceito de hábito era utilizado com este nome por uma parte da sociologia e antropologia norte-americana e com o nome de estilo por uma parte dos historicistas alemães mais de trinta anos antes que Bourdieu o utilizasse de forma quase idêntica.

6 Consideramos que um saber se constitui pela articulação de representações e práticas a partir de um efeito de poder que opera nas relações de hegemonia/subalternidade de onde se joga dito saber.

7 Para uma revisão deste tipo, ver a análise da participação social em saúde na América Latina realizada por Ugalde, 1985.

8 Ver a discussão sobre o continuum folk-urbano para América Latina. Recordemos que vários dos principais teóricos desta proposta, em particular Redfield e Foster, a realizaram a partir da realidade mexicana. Não é casual tampouco que as tipologias transicionais incluíram características do processo s/e/a, dado que ditos autores são alguns dos "pais fundadores" dos estudos etnomédicos para América Latina.

9 Esta teoria na América Latina não pode dar conta em termos técnicos de vários processos, entre os quais sublinhamos: a) o papel das "violências" ou da cirrose hepática no perfil epidemiológico "antes" e durante a transição; b) o retorno de padecimentos como o dengue hemorrágico, o cólera ou a tuberculose; c) o papel das novas enfermidades infecto-contagiosas que não podem ser reduzidas a AIDS; d) a constatação de que no perfil da morbidade determinados padecimentos infectocontagiosos continuam sendo os episódios mais freqüentes e recorrentes, o que não é explicado por uma proposta de transição centrada na mortalidade. A carência de um marco teórico conduz a sérias incongruências no manejo dos dados empíricos, porém, além disso, possibilita a inclusão "objetiva" dos condicionantes ideológicos. Assim, dentro desta "teoria", não há resposta teórica para perguntas referidas a direção para qual se orienta a transição por exemplo no que toca os homicídios: para um modelo como o da Comunidade Européia com baixas taxas ou para um modelo norteamericano com taxas altas e em incremento?

10 Para dar um exemplo facilmente reconhecível: quando epidemiólogos e sociólogos utilizam o conceito ou indicador nível educacional — entendido como educação formal — e referem-no a comportamentos maternos ou migratórios, está a operar um suposto não explicitado de que ditos níveis estão referidos a fatores culturais. Esta significação emerge sobretudo na discussão dos resultados.

11 A proposta durkheimiana é criticável sob muitos aspectos, porém, não obstante, contém algumas das contribuições que diferenciam e legitimam a aplicação do enfoque socioantropológico ao processo s/e/a. Suas contribuições não se referem só a sua proposta de estudar o processo s/e/a em termos de representações e de práticas (rituais) coletivos, senão também a necessidade de construir o dado a partir da teoria e de uma metodologia da ruptura. Não se pode realmente compreender Bachelard, Canguilhen ou Foucault passando por Mauss e Bourdieu sem rever em profundidade Durkheim. O principal problema de sua proposta reside na "eliminação" do sujeito, mais claramente expresso no fato de que as significações são referidas às representações e práticas dos conjuntos sociais e não dos indivíduos, eliminando uma das principais fontes de sentido. A partir dessa perspectiva sua análise do suicídio em termos de representações e práticas coletivas constitui um ato de provocação metodológica.

12 Em uma perspectiva epidemiológica os trabalhos de Cassei (1955, 1988) e de alguns psiquiatras culturais (ver Bastide, 1967; Corin, 1988; Devereux, 1937; Opler, 1959) estabeleceram as possibilidades de articulação, ao incorporar as dimensões socioculturais ao estudo da enfermidade mental. A esse respeito, não é casual que estes antropólogos, porém também estes epidemiólogos, tiveram experiência "etnográfica" com grupos não ocidentais .

13 Por integrado, queremos assinalar que no perfil se incluem o conjunto de padecimentos, penas, dores, problemas ou enfermidades, sintetizando concepções e práticas advindas de diferentes saberes. Esta qualidade de síntese provisória é necessária para assegurar o processo de reprodução biosocial. Em vários trabalhos que realizamos ou supervisionamos podemos verificar reiteradamente que os grupos atuam frente a um padecimento segundo determinada normatividade social, a qual deixa de operar se o tratamento selecionado não resulta eficaz, recorrendo-se, então, a outras estratégias de intervenção, determinadas por sua capacidade/possibilidade de utilizá-las. Assim as mães deixam de diagnosticar empacho ou mal olhado e passam a re-significá-los como gastroenterite se as ações não dão resultado e vice-versa (Ver Mendoza, 1994; Menéndez, 1984, 1990d; Osorio, 1994). A codificação dos padecimentos em termos de enfermidades dos "curandeiros" e enfermidades dos "médicos" construída e codificada por toda uma corrente de investigações antropológicas, se constituiu observando-se quase exclusivamente representações sem referências às práticas. Nas práticas a enfermidade emerge como processo de síntese.

14 O fato de que a preocupação com e compilação de informação mais confiável sobre problemas/padecimentos como violência intrafamiliar, violência a criança, violações, situação dos doentes mentais ou contaminação foi produzida por ONGs e não por serviços de saúde públicos e privados reforça esse ponto.

15 A mortalidade por alcoolismo, medida através de indicadores diretos e indiretos, constitui uma das primeiras causas de morte no México em idade produtiva, tanto para homens como para mulheres (Ver Menéndez e Di Pardo, 1981, 1996b; Menéndez, 1990a).

16 É óbvio que as propostas de investigar a "saúde positiva", a "qualidade de vida" ou os recursos que os sujeitos/grupos têm para enfrentar seus padecimentos (coping), merecem, ainda mais, a aplicação de uma abordagem de tipo qualitativa.

17 Aclaremos que a urgência na produção de resultados não constitui uma particularidade das ciências da saúde. Há anos, quando uma parte dos sociólogos "redescobriram" o qualitativo, converteram alguns instrumentos qualitativos em técnicas rápidas. Um dos primeiros exemplos foi a conversão das histórias de vida socioantropológicas em histórias de vida estruturais de por volta de uma página e meia e constituídas por uma enumeração de variáveis similares a um perfil demográfico e ocupacional. Nos últimos anos ocorreram vários experimentos interessantes que tiveram rápida difusão. Um deles é a aplicação do critério de "saturação" às entrevistas em profundidade ou às histórias de vida o que, entre outras coisas, implicou a não possibilidade de construir padrões de comportamentos "reais". Outro, o desenvolvimento dos "grupos focais" manejados com as mesmas características aplicadas nas "entrevistas de mercado". E um último exemplo é o que postula uma única entrevista como meio através do qual emergem as representações e práticas dos sujeitos referidos a problemas como AIDS, saúde reprodutiva ou violações. A discussão dos fundamentos metodológicos destas modificações deve incluir o papel das urgências e dos financiamentos.

18 Não desconhecemos a utilização de técnicas qualitativas no trabalho sanitarista latinoamericano que no caso do México está referida quase exclusivamente ao uso de serviços de saúde, porém considero que esta, além de ser muito escassa, não está integrada ao trabalho epidemiológico e aparece como um produto paralelo.