De doente a "encantado" - O conceito de mecanismo de defesa constituido culturalmente e a experiencia de uma vítima de "espírito mau" em uma comunidade rural na Amazônia
Introdução
O mecanismo de defesa do ego, ou mecanismo psicológico de defesa, é definido como "um processo mental habitual, inconsciente e as vezes patológico que é utilizado para resolver conflitos entre necessidades instintivas [mas também necessidades que são aprendidas e adquiridas], proibições internalizadas e a realidade exterior" (Vaillant 1971). Esse mecanismos são tentativas de evitar pensamentos e emoções dolorosas. A categoria é heterogênea e existem várias taxonomias de defesas; não obstante, são geralmente inconscientes em sua operação e na maior parte funcionam pela manipulação de representações: representações inconscientes são transformadas em defesas e aparecem na consciência sob outras formas (Vaillant 1977, 1993; Fenichel 1945). Todavia, o conceito de mecanismo psicológico de defesa não é patrimônio exclusivo da teoria psicanalítica, uma vez que é elaborado e utilizado de modo diversificado por investigadores de várias orientações teóricas e continua a provar sua utilidade em ambientes clínicos (Conte and Plutchik 1995:ix). A evidência da existência de mecanismos psicológicos de defesa, e a correlação entre defesas específicas em relação a níveis variáveis de integração do ego é forte (Vaillant 1986, 1993). Assim, as defesas têm sido estudadas clinicamente, experimentalmente e naturisticamente.
Em psiquiatria, o interesse em defesas é voltado mais para a possibilidade de avaliar a saúde de pacientes do que examinar as defesas utilizadas (Vaillant 1971, 1986b). Mas na antropologia, o estudo de defesas é talvez de maior valor por iluminar as relações entre sistemas socioculturais e saúde mental e a motivação para a internalização de sistemas de crenças culturais. Por ser essencial para a psicologia psicodinâmica, esse conceito tem sido salientado proeminentemente nas obras dos proponentes da escola Cultura e Personalidade, como Devereux, Spiro e De Vos (Devereux 1978, Spiro 1987 [1965], DeVos 1973). Fora dessa tradição, mas talvez, de certo modo, influenciado por ela, o antropólogo médico Kleinman (1980:147-178) utilizou o conceito a que variavelmente se referia como "cognitive coping mechanism ", "culturally constituted cognitive strategy", e "culturally constituted cognitive coping mechanism " em sua discussão de afeto disfórico entre os chineses. Os conceitos de Kleinman acima referidos constituíam o que se chama de "mecanismos de defesas do ego utilizados modalmente" e "coping mechanisms"1 . No entanto a relação entre esses conceitos e "coping strategies " (Haan 1977), mecanismos de defesa do ego e mecanismos psicológicos de defesa constituídos culturamente não foi elaborada explicitamente. Esta discussão foi uma primeira pequena contribuição para uma longa linha de pesquisas sobre a somatização entre asiáticos versus a psicologização entre ocidentais. Atualmente o debate se resolveu em favor do reconhecimento de que a somatização aparece proeminentemente também entre os ocidentais (Kawanishi 1992). Recentemente, o conceito de mecanismo psicológico de defesa foi utilizado com bastante sucesso pelo ex-aluno de De Vos, Suárez-Orozco (1990 e 1992), em estudos da adaptação psicológica ao terror político dos refugiados da América Central e sobreviventes da Guerra Suja na Argentina. Foram identificadas a negação e a racionalização como defesas modais entre essas pessoas.
O conceito foi desenvolvido em antropologia para compreender a interação entre defesas e sistemas socioculturais. O conceito de mecanismo de defesa constituído culturamente tem raízes fortes em dois ensaios de Freud, em que ele desenvolve uma idéia de cultura como ilusão coletiva (Freud 1927, 1933). O termo "culturally constituted defense mechanism'" foi cunhado simultaneamente e aparentemente de forma independente por volta de 1960 por Devereux e Spiro (Spiro 1961)2. Um mecanismo de defesa constituído culturamente é uma defesa que é "baseada em crenças, práticas, e papéis e outras partes constituentes de sistemas sociocuturais" (Spiro 1972), em vez de idéias e comportamentos idiossincráticos. Esses MDCC reproduzem a estrutura de mecanismos de defesa idiossincráticos, de forma que, por exemplo, haveria um MDCC de projeção paranóica (Spiro 1961, 1987[1965], 1972, 1992).
O que revela esse conceito a respeito das relações entre sistemas sócio-culturais e experiência pessoal? Primeiro, esclarece pelo menos uma parte da proeminência cognitiva que um determinado sistema sócio-cultural poderia ter para determinadas pessoas em determinados momentos. A substância da cultura - isto é, modelos e práticas culturais - não é apreendida uniformemente por membros de uma determinada comunidade; pessoas são motivadas em parte a acreditar e atuar em conformidade com os modelos culturais porque estes as proporcionam possibilidades de defesa contra pensamentos e sentimentos dolorosos. Então, uma parte do recrutamento para determinados papéis (exemplo do monasticismo budista em Burma [Spiro 1987(1965)]), ou a utilização de determinados modelos (como acusações de feitiço [Kluckhohn 1944]) poderiam ser atribuídos a esta conseqüência (psicologicamente) defensiva dos sistemas sócio-culturais. Outra conseqüência dos MDCC, observada por Spiro (1987[1965]), é que eles permitem defesa psicológica contra pensamentos e sentidos que, se fossem gratificados de uma maneira mais idiossincrática, tomariam a forma de sintomas, isto é, de psicopatologia. A utilização de um MDCC (ex., assumir o papel do monge budista em Burma, acusar alguém de feitiço), desta maneira, evita a expressão de psicopatologia, resolvendo o conflito intrapsíquico de uma maneira culturasintônica. Spiro afirmou mais audazmente que MDCC "servem para perpetuar o sistema sócio-cultural" (Spiro 1987 [1965]).
Com o declínio geral do interesse em explicações psicodinâmicas na antropologia norte-americana, estudos recentes de MDCC e fenômenos a ele relacionados tornaram-se escassos. Notável é o conceito de Obeyesekere de símbolo pessoal (1981), baseado na idéia de que um símbolo funciona simultaneamente ao nível da cultura e ao nível da pessoa, sendo caracterizado por um certo grau de liberdade de escolha em sua utilização e por uma motivação profunda. O conceito é claramente "parente" do MDCC (Obeyesekere foi orientando de Spiro), mas é menos elaborado. Não obstante, os estudos de caso que Obeyesekere apresenta são demonstrações extraordinárias da motivação profunda de crenças e práticas religiosas. O estudo de Hutchins (1987) de MDCC na mitologia dos Trobriand é uma admirável tentativa de integrar a teoria de esquemas com a teoria psicodinâmica. Kxacke (1992:208-211) numa série de estudos de tabus alimentares, mitos e crenças sobre sonhos, indica que seu estudo é influenciado pelo conceito de MDCC, pelo menos com respeito a sua perspectiva sobre mitos e tabus alimentares. Um fenômeno curioso é a utilização não admitida e não examinada - e provavelmente inocente - que certos autores fazem do conceito de MDCC. O conceito de idioma de sofrimento desenvolvido por Nichter (1981) em um artigo freqüentemente citado se superpõe à idéia de MDCC. Tudo isso parece indicar que se trata de um conceito que tem gerado bastante interesse mesmo que esse interesse não seja reconhecido.
No presente artigo, pretendo apresentar um estudo de caso à luz deste conceito de mecanismo de defesa constituído culturamente. O caso não apresenta uma situação ideal para o estudo de MDCC, por razões que serão óbvias, mas, mesmo assim, nos permite considerar o valor do conceito.
Um estudo de caso
Entre 1989 e 1991, desenvolvi uma pesquisa etnográfica em antropologia médica e psicológica numa comunidade camponesa no interior do Pará, em uma população de herança mista européia, africana e indígena que pesquisadores chamam de caboclos ou ribeirinhos. Logo depois da minha chegada, encontrei relatos sobre um homem, já falecido, que chamo aqui de Seu Mauro. Pela primeira vez, eu ouvi o léxico rico do povo da vila sobre entidades invisíveis: Seu Mauro é um "encantado". O espírito dele mora no fundo do lago, e ele não queria ser curador. No entanto dois curadores da vila têm visões com ele. A maioria dos melhores dados sobre a vida de Seu Mauro vieram da viúva Dona Regina, com quem passei algum tempo obtendo a biografia. Contudo uma filha adulta, Rosilene, também deu um depoimento comovente:
Meu pai, né? Desde que ele era criança, desde que ele era criancinha, minha avó diz que às vezes quando era madrugada ele ia embaixo da mangueira. Ai, quando ela percebia ele, ele assobiando, sabe? (...) Ai, ela levou ele para o curador, né, e o curador disse que ele ia ser médio, ele ia curar quando ele ficar grande. Ai, depois ele cresceu e cresceu. Quando ele tinha 18 aí os mestres começaram invocar nele, sabe? Só que ele não acreditava, não. Ele não acreditava. Dizia que ele não ia aceitar isso. Ele não acreditava. Ele morreria, mas não ia ser curador, não. Porque isso não era assim, Deus não aceitava essas coisas, não pertencia a Deus. Depois, ele casou. Ai ele teve todos de nos, todos grandes já. Aí começaram (...) judiar ele. Invocaram no corpo dele (...) Antes que ele morresse, aconteceu num domingo (...) 3 de Julho de 1975. Isso aconteceu aqui na praça, na frente da vila. (...) Uma vez na noite da 3 de Julho, eles começaram invocar nele, sabe? Invocaram nele, entraram nele, muitos espíritos. Aí minha avó disse que não era para eles judiarem o espírito dele não, porque era para eles saírem, que ela sentiria muito se eles levarem ele. Quando era naquele dia, eles disseram que iam levar ele, porque ele não aceitava ser, sabe? Ser curador. Ele não aceitava. Ele não aceitava curar. Aí era aquela noite inteira, era aquela noite inteira que eles invocavam no corpo dele. Quando era manhã eles saíram dele, sabe? Os mestres saíram do corpo dele. Aí, ele pegou -veio embora para casa. Quando ele chegou em casa, ele disse que ia dar uma injeção na casa dum amigo, Miguel, lá no outro lado da vila, lá no fim da cabeceira. Não lembramos dizer a ele que aquilo aconteceu, porque toda vez acontecia, os espíritos invocando nele, nós dizíamos para ele. Naquele dia, parece que nos esquecemos, não dissemos nada para ele. Aí ele pegou a canoa dele, né?. Pegou seu aparelho para dar a injeção, todo o material para dar a injeção. Aí ele saiu para a casa do amigo dele. Quando chegou muito perto, na cabeceira, né, os curadores dizem que ele chegou, eles se representaram para ele ... os mestres. Aí ele ficou mais influenciado pelos mestres que lembrado pela família dele, que quando (...) um menino no outro lado do rio pescando disse: "Lá vai Mauro" (...). Depois, quando olharam, teve só uma canoa girando no rio. Aí foram vê. Quando chegaram lá, a canoa tava vazia, não tinha nada, tinha só álcool e o aparelho e o remo. Aí, no lugar onde tinha caído, as últimas bolhas tavam saindo. Ele tava morrendo. Aí pegaram, tiraram o corpo dele e enterrou ele. Mais ou menos um mês passou, dois meses, né? (...) diz a gente que ... porque eu não acreditava, não, eu nunca acreditava nisso... mas a gente disse que ele invocou nos corpos de outros, e que ele (o espírito dele) vinha. Ele disse que ele tava arrependido, porque (...) devia ser curador. Devia ter curado porque esse dom ele trouxe de nascença. Desde que ele era criança ele trouxe esse dom, então, não aceitava porque ele disse que não pertencia a Deus, que Deus não gostava essas coisas. Aí, por isso, ele morreu deste mundo mas não aceitava ser curador. Mas depois seis meses passaram, um curador disse para minha mãe que ele era encantado e estava no encante, ele era uma cobra muito grande. Ele era encantado na Boca do Calderão, que ele (...) tinha caído no encante. Ai, ele era encantado, não morreu de doença nenhuma3
Eventualmente eu trabalhei com Dona Regina para obter uma biografia detalhada de Seu Mauro. Conforme ela, Mauro "chorava no ventre da mãe" quando esta estava grávida dele. A mãe procurou um curador para saber porque a criança estava chorando em seu ventre. A resposta que obteve do curador é que todo médium (o termo local é médio) de nascença chora no ventre da mãe. (Outra versão deste evento, contada por ela depois a mim, era que a mãe de Mauro o levou para um curador quando ele estava doente. O curador disse que ele ia ser médium. Sua mãe perguntou como ele sabia, e ele respondeu perguntando se a criança tinha chorado no ventre. Ela confirmou, e então o curador disse que isso significava que ele ia ser médium.)
Mauro nasceu num lugar perto do sítio de minha pesquisa e foi batizado como católico. Com dois anos, conta Dona Regina, ele já assobiava na rede e com cinco ou seis anos fazia o mesmo embaixo de uma árvore - obviamente o comportamento a que Rosilene se referiu em seu relato. Uma vez, aos cinco anos, enquanto assobiava em sua rede, Mauro ficou "duro, teso, estirado"4. Mais tarde, já adulto, disse para sua esposa que tinha o problema de ser médium desde pequeno, e que quando estava assobiando embaixo da árvore ele "não estava dentro de seu sentido" - uma frase comumente utilizada para descrever um estado de dissociação. Ele era o único médium em sua família, que incluiu um irmão mais jovem e uma irmã que morreu no parto.
Os pais de Mauro se sapararam quando ele tinha nove anos. Este foi morar na casa paterna, mas Dona Regina disse que seu pai "não ficava em casa". O pai sofria de "'filaria " - tinha pernas e pés enormes -, mesmo assim construiu uma casa para eles dois, ele e Mauro. Quando este fez 15, entretanto, a casa caiu, e Mauro saiu para morar com a mãe e irmãos5.
Foi mais ou menos nessa época - com 15 ou 16 anos - que os "mestres" começaram a encostar nele, mas Mauro, com essa idade, não podia "agüentar"6. Contudo, ao 18 ou 19 anos, ele incorporava bem os "mestres".
Os pais de Mauro se consideravam católicos. A vida espiritual de Mauro, entretanto, era bem mais complexa. Quando já tinha mais de 20 anos, ele cortou todas as imagens de santos de sua mãe, jogando-as no mato e na água, fugindo de casa - sem mesmo tomar benção da mãe - para freqüentar a Assembléia de Deus, uma igreja atualmente bastante comum na Amazônia. Mauro retornou à casa duas semanas depois. Chorou, pediu desculpas, tomou a bênção e, oito dias depois, voltou a assistir a missa católica.
Ele e Dona Regina se casaram - ela com 20 anos, ele com 22 - numa cerimônia católica na capela da Vila. Contudo, um mês depois, retornou à Assembléia de Deus. Foi membro por um ano. Abandonou novamente esse culto para reingressar um ano depois, desta vez com a esposa. Lá permaneceram por um ano e então saíram. Três meses depois, entraram de novo - por uma semana apenas. Uma vez, estando bêbado, assistiu a um casamento protestante (ao contar esse evento Dona Regina sugeriu que Mauro não sabia o que tinha bebido) e, quando voltou para casa, "destruiu o que encontrou pela frente". Os "crentes" começaram a não mais aceitá-lo devido a bebida. Mauro nunca foi batizado na Assembléia pelo Espírito Santo e nunca falou outras línguas. Sempre vacilou entre freqüentar o catolicismo e o protestantismo. Esteve vinculado à Assembléia de Deus por três vezes depois de casado. Embora freqüentando esse culto, Mauro viajou para Belém em companhia de um bispo (católico). Estava doente, anêmico, com muita tosse e febre. Em Belém, participou de um curso para ser catequista. Passou um ano e meio nessa cidade, não querendo voltar para a Vila. Conforme Dona Regina, "Mauro acostumou com Belém" e "não lembrava mais a família". Mais uma vez abandona o catolicismo e retorna à Assembléia de Deus. Voltando à Vila, torna-se outra vez católico e permanece nessa igreja servindo como catequista. Ele conhecia a bíblia muito bem e é lembrado por muitos moradores pelas suas interpretações hábeis.
Rosilene ao comentar os períodos em que o pai freqüentava o protestantismo, observa:
Quando ele era protestante, ele era assim ... ele tinha muita reza, rezava muito. Ai o Inimigo (Satanás) não tinha porque judiar o corpo dele, né? Porque ele - a pessoa que tem fé im Deus, que tem fé, eu acho, não tem nada pra ser dominado, porque Deus... o diabo tem poder mas Deus tem mais poder que ele ... porque eu digo assim, para mim esses curadores -eu sei que é um dom que Deus deu -tem alguma coisa diabólica do Inimigo. Como é que essas pessoas curam? Aí é isso que ele não acreditava. Ele disse que ele não acreditava, não. Não queria ser curador porque não pertencia a Deus, pertencia ao Inimigo. Mas eu acredito que ele disse isso porque ele era um homem muito católico, era muito religioso. Ele estudou muito no seminário, ele era muito católico, sabe? Ele era muito bom com pessoas (...) ele gostava de ajudar pessoas sem cobrar. Quando ele morreu muita gente estava triste, porque ele era uma pessoa boa.
A carreira religiosa de Mauro era apenas um aspecto de sua vida. Mauro sofria de uma doença conhecida na região como mal-de-gota. Esta aflição causava ataques em que ele tremia, espumava e se urinava. Ficava fraco após os ataques, que aconteciam duas ou três vezes por mês, às vezes duas vezes numa mesma noite, principalmente quando ele não dormia bem. Para Dona Regina, os ataques só ocorriam quando a lua estava forte, e ele não estava incorporado. Ela mencionou que uma vez Mauro chegou em casa chorando porque tinha sofrido um ataque de mal-de-gota e tinha caído na água. Dissera que Deus o salvara, pois a parte superior do corpo ficou na canoa enquanto a inferior tinha ficado na água. Dona Regina conta também que Mauro, antes de ir a Belém, tomou remédio por três meses (Específico 33), três vezes ao dia, receitado por Seu Roberto, o principal curador da Vila. Mas ele não melhorou com esse medicamento.
O remédio Específico 33 - Glóbulos Compostos Homeopáticos de Dr. Humphrey Específico N° 33 -, conforme a bula, é "indicado em estados espasmódicos e convulsivos". Suas indicações são "epilepsia (espasmos ou convulsões)"7. Um médico em Belém tinha dito a Mauro que ele sofria de ataques de "pelipezia " (epilepsia) e que não existia remédio para essa doença. Além do mais, esse mesmo médico também observou que a vida de Mauro corria perigo, pois se caísse na água não teria condições de escapar.
Esse não foi o único presságio do que vinha. Dona Regina acha que os ataques do marido ocorriam devido aos mestres judiarem dele, não ao mal-degota, uma vez que os remédios não funcionavam. Ele não sofreu destes ataques na noite antes de sua morte - ele estava apenas incorporado.
Talvez o problema de que Mauro mais sofria era seu corpo aberto. Esse termo denota alguém que poderia receber espíritos, ficar possuído, ou por ataque ou por rituais de mediunidade. Dona Regina disse que ele nunca curou ninguém, nem ensinou um remédio (esta frase se refere à prática dos curadores do local de diagnosticar um paciente e receitar um conjunto de remédios - populares, farmacêuticos, ou os dois). De fato, Mauro achava que os mestres o matariam se ele não aceitasse ser curador. Ele sempre dizia que iria morrer por não aceitar. Dizia isso quando estava, ou não, possuído (no caso de estar possuído, a declaração seria proveniente dos mestres que tomaram conta do seu corpo). Seu Mauro ficava possuído mais ou menos três ou quatro vezes por mês, dia ou noite, mas geralmente à noite e mais quando estava bebendo. Ficou possuído todas as vezes em que bebeu, fato não raro. Todos os mestres que invocavam nele quando ele bebia também invocavam quando não estava bebendo. Todos eles não queriam que ele bebesse. Em suas épocas de protestante, não bebia e também não sofria de possessão.
Dona Regina pôde dar relatos bem detalhados de alguns de seus episódios de possessão. Geralmente, os espíritos, que o chamavam de "minha arve", apareciam como entidades distintas que falavam e mostravam comportamento distinto quando estavam nele (ex., a violência de Tabajara), mas isso não sempre era o caso. Eu apresento mais sobre sua experiência de possessão abaixo.
Um de seus mestres, João Cobra Guimarães, avisava que Mauro estava em perigo, que ele ia morrer. Uma filha de Mauro e Regina morreu, e ele contou que iria morrer depois dela. Segundo o certificado de óbito de Mauro, ele morreu com 37 anos. Regina me disse que a alma dele agora fica no encante, na Boca do Caldeirão. Ele é uma cobra. As almas dos mediuns sempre vão para o encante quando a pessoa morre; todas suas almas se transformam em cobras.
Discussão
Porque Seu Mauro tinha corpo aberto? Se não concordamos com o ponto de vista da família de que ele foi morto pelos espíritos que judiavam dele, como então ele morreu? Por que ele se convertia ora ao protestantismo e ora ao catolicismo no decorrer de sua vida? Seu Mauro não está mais presente para que nós possamos entrevistá-lo sobre suas aflições e crises, mas ele é realmente tão imortal quanto um homem poderia ser, tendo evadido a segunda morte de que Goethe escreveu - a morte que acontece "quando os que nos amavam e nos lembram morrerem por sua vez" (Pollock 1972:10). Seu Mauro claramente influenciou as vidas de muitas pessoas enquanto viveu e assim será até após a sua morte, uma vez que com certeza histórias continuarão a ser contadas a seu respeito, mesmo após a morte também daqueles que lhe eram mais importantes.
Seu Mauro literalmente tornou-se uma lenda. Em minha tentativa de apreender a vida por trás - ou dentro - da lenda a partir das entrevistas com aqueles que o conheciam mais intimamente, encontrei não uma história de vida como alguém poderia apreender no decorrer de uma série de entrevistas clínicas, senão uma lenda de um tipo diferente, uma narrativa que é produto de algum tipo de "legend-work" (trabalho de lenda) pelos seus íntimos, uma biografia formada pelos desejos daqueles a quem ele afetou profundamente, para quem sua vida e morte foram eventos associados com o amor, hostilidade e aparentemente alguma culpa. Enquanto esse testemunho às vezes frustra, não há escolha senão enfrentá-lo se quisermos entender o sentido da vida e morte de Seu Mauro.
Como Bilu (1985a , 1985b) mostrou, a pátina do tempo não é sempre uma barreira impenetrável para os que querem iluminar as relações entre sistemas socioculturais e experiência pessoal, tal qual expressas numa vida transcorrida no passado remoto. O testemunho da família de Seu Mauro é pelo menos sugestivo.
Seu Mauro obviamente sofreu durante uma parte grande de sua vida. Seus conflitos não o incapacitavam completamente, afinal ele foi um dos fundadores da comunidade, um líder religioso, um comerciante, marido e pai, mas não necessariamente obteve tanto sucesso nessas atividades como os outros da comunidade. Começo por considerar os temas da biografia de Seu Mauro que acho serem especialmente indicativos quanto aos conflitos em sua vida psíquica e que prometem iluminar o motivo pelo qual ele sofria de corpo aberto e morreu da maneira que morreu.
Examinando a vida de Seu Mauro, fica-se impressionado com o número de vezes que ele fugiu, mesmo quando se considera que os moradores da região muitas vezes são muito móveis. Ele fugiu de sua mãe - e do catolicismo - quando era jovem; alternou catolicismo e protestantismo durante toda sua vida; largou tarde sua família em sua vida, quando morava em Belém. Sua vida familiar parece um pouco diferente da vida do povo da região porque os pais se separaram, aparentemente de vez, cedo em sua vida. Não temos detalhes a respeito de como eles se separaram. Sua antipatia ao uso de imagens de santos por sua mãe é fácil de apreciar porque isso é considerado idolatria pelos membros da Assembléia de Deus e é um dos principais objetos de contenda entre os protestantes e católicos nesta parte do país, provocando muita incerteza entre os católicos. Mas a violência da sua resposta - a destruição das imagens - parece extraordinária. Essa primeira fuga era em relação a sua mãe ou a fé dela? Será que a rejeição da doutrina está estreitamente associada a uma rejeição da autoridade dos que a possuem, especialmente os pais do rebelde? Mauro rejeitou o catolicismo muitas vezes e retornou a ele muitas vezes, da mesma forma como eventualmente voltou para sua mãe (o que claramente correspondia a sua volta à doutrina) e para sua família (que também correspondeu à volta ao catolicismo). Quando se casou, o que ele fez logo depois de voltar à sua mãe, quase se converteu de novo para o protestantismo. Além disso sabemos somente que ele se preocupava sobre qual religião era correta, uma inquietação bastante comum entre outros na região, relacionada ao assunto do como será o destino dos homens no além.
Será que ele desejava morrer, queria seu encontro com o além? Talvez fosse essa a sua última fuga. Isso se sugere especialmente por sua profecia - enquanto incorporando João Cobra Guimarães - na noite anterior à sua morte. É muito curiosa a participação da mãe de Seu Mauro em tudo isso. Segundo um dos relatos, o mestre disse a ela, na noite anterior à morte de Mauro, que seu filho iria morrer porque ela não "ligava" para ele, e se ela quisesse evitar sua morte não deveria deixar que ele fosse para o porto da casa (isto é, o local, pertencendo à casa, na beira do lago). De que forma ela não ligava para seu filho? Isso se referia só a esse evento ou tratava-se de um padrão no relacionamento?
Há sugestões de hostilidade de Mauro com sua mãe além de sua violência contra às imagens religiosas dela. Quando ele estava incorporado por Mestre Viajante, chamava a mãe e o irmão de ladrões. A mãe queria que ele se tornasse curador. A resolução de não ser curador parece ter sido um ponto de tensão central na vida de Seu Mauro. A sua família acreditava que ele poderia ter evitado a morte se tivesse decidido seguir a carreira de curador.
Esse padrão de fuga se encaixa bem numa categoria mais geral: a dissociação. Dissociação, segundo Vaillant (1977:385), é uma "modificação temporária, mas drástica, do caráter de uma pessoa ou do sentido de identidade pessoal para evitar sofrimento emocional". Ele inclui fugas e "o uso agudo de 'alegria' religiosa ou de intoxicação farmacêutica para entorpecer a tristeza"8. Essa é umas das defesas que Vaillant considera "neurótica", uma categoria associada a um nível mais alto de integração do ego, a segunda mais saudável das categorias de defesas. Mauro parece dissociado na primeira anedota contada ao seu respeito, da infância e da hora da morte, quando ele parecia para alguns ter estado embriagado, enquanto estaria incorporado, no entender da maioria. A dissociação tomava pelo menos três formas: dissociação devido a uma desordem neurológica; dissociação no beber; e dissociação em possessão. Claramente, no caso de desordem neurológica, não estamos falando duma defesa, mas em um padrão. É obvio que as categorias locais não correspondem às minhas, mas como eu, Dona Regina acha que essas formas estão relacionadas. Eu discuto essas formas in seriatim.
Epilepsia?
Na biografia de Mauro, há sugestões de que ele sofria de algum tipo de desordem neurológica, talvez epilepsia. Nós devemos tomar com ponto de partida os sinais que indicavam que Mauro sofria de mal-de-gota, pois, como observou Câmara Cascudo (1972: 546), o termo mal-de-gota denota epilepsia. Ressalte-se que quando Mauro estava em Belém, o médico diagnosticou epilepsia. Bem, o mal-de-gota se caracterizava por ataques com tremor, espumar e urinar, seguido por moleza; os ataques aconteciam duas ou três vezes por mês, às vezes duas vezes na mesma noite. Acontecia quando ele não dormia bem e somente quando ele não estava possuído. Em um episódio, ele caiu na água e quase se afogou evidentemente uma perda de consciência. (Não deve surpreender-nos o fato de que a lua seja considerada causa de mal-de-gota. Epilepsia se associa com as fases da lua em etnomedicina desde tempos antigos, dando origem ao termo "lunático" [Temkin 1971:92-96]).
Não obstante, um número de outras condições descritas em sua biografia são suspeitas, mas não eram interpretadas como mal-de-gota, senão como manifestações de seu corpo aberto. Com cinco ou seis anos, ele tinha episódios em que era duro e dissociado, assobiando numa rede. Quando adulto, foi descrito um momento em que ele seguiu repetindo palavras a si mesmo e não respondeu quando foi chamado, além de episódios de amnésia. Qual tipo de desordem neurológica poderia ter tido? Os ataques de mal-de-gota parecem convulsões epilépticas do tipo grand mal, enquanto os episódios de amnésia paracem convulsões epilépticas do tipo petit mal. Esses dois sintomas são sintomas "estreitamente relacionados" de epilepsia primária generalizada (Masland 1982:14-15). Talvez esses episódios de dissociação acompanhados pela rigidez corporal de quando ele era criança fossem também "seizures" grand mal. A instância em que ele repetiu umas palavras também poderia ser uma instância de petit mal. Masland relata que "morte acidental - afogamento - suicídio" constituem 24% das "causas de morte de pessoas com epilepsia vistas em clínicas de hospitais e clínicas de médicos"; a taxa de suicídio é alta (1982:18). Talvez não nos deva surpreender que "fatores genéticos são especialmente proeminentes" em epilepsias primárias generalizadas (Masland 1982:9). O pai de Seu Mauro foi uma das poucas pessoas que morreram no lago em tempos recentes. Ele morreu quando foi coletar água. Isso é quase inconcebível como acidente. Acho provável que ele tinha morrido afogado quando acometido por uma convulsão epiléptica.
Associações entre epilepsia e possessão têm sido observadas há bastante tempo. Em 1921, Oesterreich criticou o etnólogo Frobenius, que observou a possessão entre os bori (África Central) e concluiu que era "um tipo de estado epiléptico" (Frobenius 1912:133-135, citado em Oesterreich 1921). Oesterreich argumentou, contra isso, que enquanto era possível que uma parte dos estados possessivos fossem realmente epilépticos, deveríamos "presumir que ataques epilépticos serviram como modelo para os estados autosugestivos, e que esses últimos são imitações deles" (Oesterreich 1974 [1921]: 136). Eliade concluiu que "a única diferença entre um xamã e um epiléptico é que este último não pode deliberadamente entrar em transe" (1964 [1951]:24). Ele cita várias instâncias em que o xamanismo se associa à epilepsia: "o xamã niue é epiléptico ou extremamente nervoso e vem de determinadas famílias em que a instabilidade nervosa é hereditária"; "em Samoa, epilépticos se tornam advinhos"; "nas Ilhas Andaman epilépticos se consideram grandes mágicos" (Eliade 1964 [1951 ]:27). Eliade, pressagiando o trabalho de investigadores que viriam depois dele, argumentou que o xamã é aquele que superou sua doença, "que conseguiu se curar" (1964 [1951]:27):
"Sempre tem uma cura, um controle, um equilíbrio efetuado pela prática mesma de xamanismo. Não é devido ao fato de que ele é sujeito dos ataques epilépticos que o xamã esquimó ou indonesiano, por exemplo, deve seu poder e prestígio; é ao fato de que ele pode controlar sua epilepsia". Os xamãs, por toda sua semelhança aos epilépticos e histéricos, mostram prova de uma constituição nervosa mais que normal" (Eliade 1964 [1951]:29).
Mais recentemente, num estudo dos "cultos de cargo" da Melanesia, Schwartz cunhou o termo patomimese (pathomimesis) para denotar o comportamento possuído dentro dessas seitas, comportamento que ele argumenta se modelar sobre o comportamento patogênico. Esse comportamento inclui "convulsões ["convulsive seizures"], tremores e outros movimentos aberrantes" (Schwartz 1976:184). A posição de Schwartz ecoa o argumento de Oesterreich:
"Para os melanesianos, e possivelmente para todas as culturas tradicionais, o patogênico e o patomimético são ligados como recíprocos. Um comportamento patogênico como a convulsão acontece ocasionalmente, talvez como resultado de epilepsia ou malaria cerebral. Os sintomas são inerentemente assustadores e dramáticos. As convulsões patogênicas são interpretadas em termos de possessão. Em outras circunstâncias, uma pessoa (ou grupo) precisando acreditar que está possuído ou vítima de um fantasma manifestará convulsões patomiméticas dum tipo que são aceitos por este grupo enquanto validando sua asserção de possessão. Mostrar tais sintomas poderia marcar uma asserção para prestígio na seita, na comunidade, ou como um objeto de terapia, dependendo na situação... [Esta patomimese] é um tipo de conluio entre o ator e audiência, com uma inconsciência submergida ou premeditada deste conluio nos dois lados. [Estas sintomas são] sinais com auxílio mágico." (Schwartz 1976:185).
Wedenoja (1990:287) também aponta a possível natureza patomimética da possessão, e nota mais que "seizures podem ter efeitos duráveis na personalidade, e uma síndrome comportamental interictal de hipossexualidade, agressividade, e um interesse intenso em assuntos morais e religiosos foi identificado" (Cf. Csordas 1994, Good 1994, especialmente Cap.6). Alguns traços desta síndrome parecem corresponder a traços da biografia de Mauro, isto é, o "interesse intenso com assuntos morais e religiosos". Naturalmente, para Seu Mauro patomimese podia ser ainda mais fácil, desde que ele mesmo vivenciou a dissociação das convulsões epilépticas, e em algumas instâncias a relação era de identidade, não de mimese, para os seizures mesmos identificados como sinais de perseguição por espíritos.
Os demônios na garrafa
Outra maneira em que Mauro ficava dissociado era em seu beber, que aparentemente o afligiu por uma parte grande de sua vida. Seu beber era tão estreitamente associado aos seus episódios de possessão que é impossível dizer alguma coisa substancial acerca de seu comportamento embriagado quando não estava possuído. Dona Regina disse que tinha episódios em que ele estava possuído, mas não estava bêbado. Sua vida se alternava em períodos em que era católico, bebia e tinha episódios de possessão; e períodos em que era protestante, não bebia e estava livre de possessão. Um traço enigmático do relato de Dona Regina é que, apesar do fato de Seu Mauro ter escolhido uma denominação pentecostal, a Assembléia de Deus, em que há rituais dissociativos, ela disse que ele não foi batizado pelo Espírito Santo e não falava em outras línguas. Talvez ele tivesse vivenciado dissociação ao orar sem alcançar as formas mais extremas de dissociação oferecidas por esta denominação.
Há um número de relações que poderiam ter existido entre essas três variáveis de associação religiosa, a possessão e o beber na vida de Seu Mauro. O obscuro é quais são os meios e quais são os fins. Primeiro, o protestantismo talvez além de favorecer um motivo para hostilidades frente à sua mãe, pudesse oferecer um meio de adaptação frente ao seu costume de beber, que a seita não permitia, e frente a sua possessão, por lhe proporcionar uma doutrina que afirma salvação e superioridade em relação à doutrina católica. Além disso, e em associação com esses episódios, poderia ter lhe proporcionado uma forma alternativa de dissociação.
O homem e seus demônios públicos
Seu Mauro já manifestava os sinais de alguém com corpo aberto desde ainda muito jovem - até antes do nascimento - mas, a partir de nossa perspectiva, esses sinais ocorridos na infância parecem sintomas de epilepsia. Estamos curiosos por saber se adquiriu na infância o papel de alguém que tem corpo aberto. Isso é de interesse porque a experiência e manifestações exteriores de possessão durante a fase adulta podem ter recebido algum ímpeto da aquisição do papel na infância. Este ímpeto poderia ter tomado a forma de sugestão; ele antecipou a perseguição por espíritos e talvez interpretou estímulos de seu ambiente e de seus estados internos, que de outro modo eram ambíguos, como sinais de perseguição por espíritos. Esta sugestão e a dissociação que aparentemente resultou da desordem neurológica representam duas causas temporãs para o começo dos episódios plenos de possessão. O poder da sugestão é bastante forte pelo que sabemos dos efeitos placebos e nocivos (isto é, os efeitos negativos de sugestão) (Frank e Frank 1991:132-153, Hahn e Kleinman 1983) e da chamada "morte voodoo" (Cannon 1979[1942]).
Como discuti acima, a carreira dos curadores da região segue o mesmo padrão encontrado em outras partes do mundo, ainda que a carreira de Seu Mauro como vítima de corpo aberto pareça, em alguns aspectos, estranha ao padrão geral. Seu Mauro, como expliquei várias vezes, não aceitava ser curador. Ele não cumpriu um papel que, como argumentei, parece funcionar - com eficácia - como um mecanismo de defesa constituído culturamente. Se Seu Mauro tivesse aceitado tal papel, teria pelo menos a possibilidade de gratificação de seu conflito ou conflitos intrapsíquicos duma maneira que beneficiaria a comunidade, além dele mesmo.
Não obstante, a aflição de Seu Mauro tomou um caminho estranho. Seus sintomas - seu comportamento possuído - parecem ser diferentes do comportamento de outras vítimas de possessão por espírito mau. Esses sintomas seriam talvez melhor avaliados se os considerássemos segundo os critérios de disforia e disfunção, as medidas principais de doença mental. Mas o que é mais impressionante com respeito à aflição de Seu Mauro é, paradoxalmente, o quanto estreitamente seu comportamento aparece associado ao papel de curador. Primeiro, Dona Regina mencionou que, com 15 ou 16 anos, os mestres começaram a encostar nele, mas só com 18 ou 19 ele passou a incorporar bem - ele podia agüentar os mestres porque já era grande9. isso sugere claramente a fase de preparação e ajustamento pela qual médiuns em vários ambientes, inclusive o ambiente em que Mauro nasceu, têm que passar de seu estado de aflição a um estado em que eles podem desempenhar o papel do médium. Obviamente no caso de Mauro houve uma fase de desenvolvimento rumo ao papel de xamã, em que ele adquire uma dimensão importante do comportamento associado a este papel. Se em algum sentido ele ficou mais competente no papel de médium, mesmo que este papel não fosse desejado, então talvez a disforia e a disfunção que ele provavelmente vivenciava quando possuído, tivessem sido diminuídas. Isso parece ser o caso de médiuns em outras partes (ex., Obeyesekere 1981).
Segundo, nem todos os mestres que possuíam Seu Mauro eram maus: Tabajara é um de uma classe de espíritos, os exuns, num terreiro de Umbanda na cidade, e ele é concebido - complexamente - como benevolente, servindo para o bem dos mortais. Mariana é uma entidade benevolente neste terreiro como em terreiros de outras partes - de fato, a Rainha de Umbanda. Mais importante, João Cobra Guimarães é uma entidade benevolente tanto no panteão de Seu Mauro como no xamanismo da região em geral. De fato, ele é bastante proeminente na prática do curador que eu mais estudei na Vila.
Finalmente, um terceiro traço da possessão de Seu Mauro poderia se distinguir do padrão mais típico de possessão como aflição pertence à estrutura dos episódios mesmos de possessão. Sessões mediúnicas entre os camponeses da Amazônia, como em todo lugar, são obviamente rituais, eventos que são marcados em tempo e espaço para os distinguir da vida ordinária. Esses marcos de delimitação também se distinguem de episódios de doença. Os episódios de possessão de Seu Mauro claramente não são rituais, mas eles parecem mais delimitados e predizíveis que a plena loucura caótica que parece mais típica para os episodios de possessão negativa: acontecem geralmente de noite e sempre depois que ele bebia. Ele tinha uma platéia, pelo menos às vezes. Sua família tinha o costume de lhe informar acerca dos episódios no dia seguinte.
Apesar desses desvios de comportamento, típicos de alguém sofrendo de possessão por espíritos maus, ele, no final das contas, se conformava a esse modelo, pois da perspectiva dos moradores da Vila, foi morto pelos mestres por não ter cumprido o papel do curador - como foi predito. Os desvios da carreira prototípica me sugerem que Seu Mauro, em vez de estar fixo na fase mais inicial da doença, tinha alcançado uma fase intermediária em que algum tipo de acomodação a sua doença tinha sido conseguido. Isso é mais aparente quando alguém considera as conseqüências da possessão.
Quais são as conseqüências pessoais e sociais de seu corpo aberto? Primeiro, é claro que os espíritos malignos tinham conseqüências sociais negativas, na medida que ele ocasionalmente atuou violentamente para com pessoas e coisas em seu meio. Isso constitui uma diminuição (pelo menos temporária) de sua capacidade de atuar na comunidade. Em termos de conseqüências pessoais, se esse comportamento permitisse alguma gratificação de motivos inconscientes (por exemplo, um motivo hostil para com sua mãe), então acarretaria em algum benefício primário para ele, mesmo que não acompanhado por conseqüências sociais negativas. Segundo, sua possessão por João Cobra Guimarães e outras entidades benevolentes parece não ter tido conseqüências negativas nem sociais nem pessoais. Além disso, poderia ser argumentado que sua possessão pelos espíritos benevolentes, e, talvez, em alguma medida, pelos malignos tinha algumas conseqüências sociais positivas para ele. Especificamente, proporcionou à sua comunidade uma visão do invisível, o mundo do além que tem tantas conseqüências cotidianas para os moradores dessa comunidade. Seu Mauro contribuiu aos modelos de sua comunidade com respeito à vida após a morte e às entidades invisíveis que habitam o universo. Sua experiência particular foi transformada em narrativas acerca da natureza do sobrenatural que ainda estão em circulação: sua carreira de possessão proporciona instâncias dos modelos do mundo sobrenatural, algumas das quais podem ser experimentadas diretamente por aqueles que estão presentes nas sessões mediúnicas dos curadores locais ou por participação em rituais de um terreiro de Umbanda na cidade. Um incidente deste tipo foi descrito num ambiente muito diferente por McHugh (1992): ela conta como a perseguição de uma excêntrica mulher gurung por um bicho maligno da floresta ativou um conceito previamente dormente dessa entidade.
Uma abordagem com respeito à interpretação dos sintomas de Seu Mauro é sugerida por Bourgignon (1989), que compara e contrasta possessão de espíritos com desordem de personalidade múltipla, através de dois estudos de caso. Enquanto Bourguignon encontra vários contrastes entre esta desordem e a possessão, McHugh observa que nos dois estudos de caso "seus alteres aparecem em resposta ao estresse sentido e dá expressão a ele" (1989:380). A possessão se mostrou como um dos modos principais por meio dos qual símbolos operam simultaneamente nos níveis pessoal e cultural no estudo de Obeyesekere sobre ascéticos em Sri Lanka (1981); lá se mostra bem que possessão gratifica motivos inconscientes10.
Mas quais motivos a possessão, por Tabajara, Mestre Viajante e Mariana pode ter gratificado? Foi quando estava possuído por Mestre Viajante que Mauro chamou sua mãe e seu irmão de ladrões; estava expressando hostilidade em relação a eles. No entanto, ele também se machucou por se bater quando estava possuído por Mestre Viajante. Só podemos imaginar o que poderia ter sido a fonte da raiva voltada contra si mesmo. O fato de que há evidências sugerindo que Mauro poderia ter tirado sua própria vida dá algum suporte a essa inferência. Dona Regina disse que, quando ele estava possuído por Mestre Viajante, ficava "tipo louco", sugerindo que seu comportamento quando possuído por outras entidades poderia ter parecido relativamente desprovido de sofrimento - isto é, como as possessões normais de médiuns. Suas descrições dos espíritos que enumerou dão suporte a esta inferência: Dona Regina disse que João Cobra Guimarães gostava de Mauro, e ela não o citou entre os espíritos que perseguiam seu marido. A exceção está na possessão por Tabajara e Mestre Viajante; pelo menos alguns desses episódios eram claramente bastante violentos. Dona Regina disse que Tabajara perseguia Mauro somente - e sempre - quando ele bebia, e que ele o perseguia porque Mauro bebia. Por quê essa associação? É curioso que, mesmo identificando a presença dessa entidade violenta quando estava bêbado, Seu Mauro não deixa de se considerar o agente de seu beber, em vez de projetar seu motivo sobre um alter (isto é, atribuindo a agência de seu beber para outro). Talvez Tabajara expressasse a frustração de Mauro com respeito a seu problema com o álcool um tipo de eu punitivo. De maneira interessante, era Tabajara que perseguia a tia de Mauro quando ela o visitava. Ele a chamava de "macumbeira". À luz de seu desgosto por curadores, essa agressão para com a tia quando possuído parece ser uma expressão de sua hostilidade frente aos curadores em geral. Os protestantes detestam tanto curandeirismo como bebidas alcoólicas. Talvez Tabajara constituísse uma representação de algum tipo de "superego protestante", um crítico projetado de suas tendências para catolicismo. Com respeito à Mariana, só podemos conjeturar sobre porque Mauro teria feito esta identificação. Em Umbanda (Pressel 1977:359, citada em Bourguignon 1989:379; veja também Fry 1985) se observa um número de instâncias de homens com algum conflito sobre orientação sexual que são possuídos por entidades femininas, mas no caso de Mauro não temos evidência nenhuma a esse respeito. Mariana, como a mãe de Mauro, queria que ele se tornasse curador. Seria Mariana algum tipo de sedutora como as sereias e botas que enchem o ambiente comportamental, ou uma representação de sua mãe, ou talvez as duas?
O mestre que, era padre, é especialmente interessante. Nunca ouvi falar de um xamã ou umbandista da região que recebesse tal espírito. Talvez fosse exclusivo de Seu Mauro. Sua possessão pelo padre parece um exemplo transparente da gratificação de um desejo, pois Mauro foi conhecido pelo seu domínio da bíblia e tinha freqüentado o seminário em Belém. Mas por quem ou para que ele rezava quando era possuído pelo padre?
Conclusão
É necessário concluir essa interpretação contemplativa da experiência possessiva de Mauro observando que, apesar do fato de ele jamais ter aceito o papel de curador em sua comunidade, permanecendo no papel do doente, de alguém apenas sofrendo de corpo aberto, parece que sua possessão teve algumas conseqüências sociais positivas, além de benefícios em termos de defesa do ego. Parece que Mauro estava preso a uma fase de transição entre a possessão como sintoma e a possessão como comportamento associado ao papel social do curador, ou seja, entre dissociação como defesa idiossincrática - os episódios não eram completamente "domesticados", estando em conformidade com o comportamento próprio do papel -e dissociação como mecanismo de defesa constituído culturamente, em conformidade com as normas do papel. Por isso, o valor do caso se vê na complexidade que revela nas relações entre sistemas socioculturais e saúde mental.
Agradecimentos
Agradeço a Maria Salete Nery (pesquisadora do ECSAS) pelo trabalho de revisão da tradução do presente artigo.
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Notas
1 Talvez Kleinman simplesmente estivesse tentando apresentar um argumento psicodinâmico para uma audiência pouco simpática a argumentos mais explicitamente psicodinâmicos.
2 Spiro, comunicação no seminário "Anthropology and Psychoanalysis", primavera, 1987, Universidade da California, San Diego.
3 Esse texto, como as demais citações de Rosilene, provém de uma tradução para o inglês de um texto original em português. Ao escrever a versão atual, não tive acesso ao texto original. Tentei, na medida do possível, captar a linguagem do original, que era essencialmente a transcrição de uma entrevista gravada, com parênteses indicando anulações. Rosilene examinou o texto comigo e revisou várias partes breves que eram ininteligíveis.
4 Em um relato, Dona Regina disse que, quando ele tinha mais ou menos cinco ou seis anos, ele assobiava como um curador assobia ("subiava de curador"). Rosilene usava o termo hino de curador para essa música. Nenhuma explicação para seu uso foi oferecida, apesar de minhas perguntas. Tampouco observei o uso deste comportamento entre os especialistas de medicina popular na região, nem ouvi outra referência com respeito isto.
5 Não foi explicado porque isso aconteceu.
6 Eu interpreto que isso quer dizer que os episódios de possessão eram ainda negativos (Cf. Maués 1988).
7 Uma farmacêutica na sede do município me disse que esse remédio se usa para mal, e é receitado mais por curandeiros e por praticantes de Umbanda. Mal, ela explicou, acontece quando uma pessoa vai da água fria para a água morna, ou está fazendo farinha de mandioca e então vai para a água. O corpo fica torto e a perna dói. A pessoa fica paralítica. A mesma farmacêutica me disse que mal-de-gota é quando soluços não param, o que acontece às vezes quando a pessoa está com frio.
8 A meu ver, não é adequado incluir um fenômeno religioso aqui, porque isso seria um MDCC e, por isso, exige um outro modo de avaliar as conseqüências para saúde.
9 O significado disso é que alguém precisa possuir força suficiente - talvez força física - ou maturidade, ou as duas, para receber espíritos. A idéia de que a possessão pode ser vivenciada como fisicamente onerosa, me foi apresentada durante trabalho que desenvolvi em um terreiro de Umbanda perto da Vila.
10 Bourgignon não utiliza os conceitos de defesa constituída culturamente ou de símbolo pessoal em seu tratamento deste tema.