O homem nu/Calamidade

Seus pais estavam brigando de novo, então Kasias decidiu dar uma volta na vila. Pegou a estrada e seguiu caminho, deixando o barulho de tapas e socos para trás. Ele tinha apenas uma faca de cozinha que pegara para se proteger caso acontecesse algum imprevisto e um pouco de carne seca para se manter alimentado.

Andando pelo caminho de cascalho, ficou imaginando se teria mais um encontro fortuito como o daquele dia em que encontrou um urso de passagem. Não havia contado esse acontecimento para seus pais, eles não iriam acreditar de qualquer forma. Sem contar que ele não se importava o suficiente com os pais para dividir essa experiência. Então, ao passar ao lado da floresta, escutou um sussurro:

— Kasias...

Com um toque de curiosidade, olhou em direção à floresta e... nada. Não via sequer uma alma.

— Kasias...

Seguiu em direção à voz que o chamava, sacando a faca de cozinha em uma das mãos despreocupadamente, enquanto mordiscava um pedaço de carne seca com a outra.

— Kasias... – a voz parecia um pouco mais impaciente.

— Já vou, já vou. Seja lá quem seja. Estou indo – respondeu o garoto.

Seguiu a voz por algum tempo, até que olhou para trás e percebeu que estava perdido, pois já não reconhecia mais o padrão das árvores e das plantas. Como se tivesse acordado de um transe, percebeu também que suas roupas, antes limpas, estavam puídas e rasgadas perto dos tornozelos e de suas axilas.

Seguindo sua intuição, correu para perto do riacho e olhou seu reflexo no corpo d’água. Com espanto, percebeu que seu rosto estava um pouco diferente. Ele estava mais maduro, quase como o de um rapaz, seu cabelo havia crescido muito e chegava até depois de seus ombros.

— Mas o que... – recuou surpreso com sua própria figura e tropeçou em um galho que despontava de uma das árvores próximas.

Ele sentiu uma pontada de dor no tornozelo que o fez gritar de dor. Olhou para o pé esquerdo e viu que ele estava virado em um ângulo esquisito. Ao ver o ferimento, suas vistas pesaram e os olhos semicerraram. Então, sentiu o mundo ficando escuro e apagou.

Acordou em uma cama de madeira bem confortável, do tipo que se vê em casas de gente abastada. Um exemplo é o açougueiro de Quant, que tinha uma filha um pouco mais velha que Kasias.

O garoto achou estranho quando olhou para o teto e viu uma abóbada alta de madeira enfeitada com vinhas, na qual alguns pássaros repousavam e cantavam. Ao seu lado uma estante cheia de livros, de frascos vazios e de animais empalhados. Quando se levantou, percebeu que estava no segundo andar de uma casa, como um sótão aberto com vista para o térreo. Lá embaixo havia apenas uma pequena cozinha com um fogão e uma mesinha de madeira, além de uma pia com uma espécie de bomba d’água.

Se tinha uma palavra para descrever a casa era harmonia, pois tudo parecia estar posicionado no local mais correto possível. Era como se o lugar atual dos móveis fosse a maneira natural como que eles tivessem que estar na natureza. Isso, combinado aos tons pastéis da madeira, os tons de verde das vinhas e o acabamento ornamentado dos móveis que traziam uma sensação de paz para a criança. A casa era tão bem-feita e bonita que Kasias quase não percebeu a figura alta de um homem parado à porta.

O homem tinha entre 20 e 35 anos, era definido, e seus músculos pareciam brilhar à luz do sol. Ele possuía um rosto andrógino e longilíneo, que contrastava com seu corpo masculino. Além dos cabelos longos e ondulados de um verde-folha amarrados em um rabo de cavalo. Ele estava completamente nu.

Kasias engoliu em seco, e dirigiu seu olhar para as partes mais “masculinas” do homem. E, com espanto, percebeu que não havia nada lá, apenas pele lisa.

— Finalmente acordou, Kasias? – perguntou o “homem” com um tom amistoso na voz.

— Q-quem é você? – perguntou Kasias, procurando a faca de cozinha que carregava consigo.

O homem não respondeu, simplesmente puxou uma cadeira para perto da mesa e começou a servir um líquido quente em uma xícara enquanto cantarolava. Kasias, ao não achar sua faca, começou a vasculhar com os olhos os itens que estavam na estante, procurando algo para usar como arma.

— Não perca seu tempo – o homem murmurou sem desviar o olhar da xícara, que segurava próxima ao rosto. – Não há nada aqui que possa me machucar.

— Você é o espírito da floresta? – Kasias perguntou. – Ouvi falar de você...

— Sim – o homem fez uma pausa. – E não. Sou, de fato, “da floresta”, mas não sou um espírito – dizendo isso, ele pegou a xícara e a sorveu. – Viu só? Eu existo.

Kasias não sorriu com a brincadeira, e virou-se para o próprio corpo, percebendo que estava vestindo roupas diferentes, de linho e de seda.

— Você me achou na floresta? – pegou, preocupado, em seu tornozelo, mas ele não doía mais. – Onde estou?

— Sim. Surpreendentemente, te achei caído no meu quintal – o homem parecia estar escolhendo as palavras com cuidado. – Quanto à onde você está... Lamento não saber como responder isso em menos de duas horas – o homem sorriu. – E, apesar de termos tempo, há assuntos mais urgentes.

Seu captor pegou um saco em um armário próximo e o botou em cima da mesa.

— Venha comer, o sol já nasceu faz tempo – ele balançou o saco acima da cabeça com um olhar inquisitivo. – Tenho biscoitos.

Kasias estava ciente de sua própria fome, mas ainda estava receoso. Levantou-se da cama e desceu as escadas mesmo assim. Mais uma vez, impressionou-se com a harmonia do local. Enquanto passava a mão pelo corrimão, percebeu que era feito de mogno polido. Então, o garoto se acomodou em uma cadeira em frente ao homem jovial de cabelos verdes, e puxou um biscoito timidamente.

— Mas que falta de educação a minha! – o homem exclamou. – Esqueci de me apresentar.

Ele se levantou e fez uma mesura exagerada, virando-se para o garoto disse:

— O meu nome é Yhormgandr, prazer...

— É um prazer, Yhorm – O homem pareceu surpreso com o apelido. – Você já sabe o meu nome, então não vou me apresentar...

— Sim! Sim! – Yhorm disse, feliz.

— Posso saber de onde me conhece? – Kasias perguntou, curioso.

— Desde que nasceu, Kasias. O seu nascimento foi algo auspicioso.

— Auspicioso?

— Favorável, isto é, para mim – Yhorm suspirou. – Tenho esperado o nascimento de uma criança como você há... Muito tempo.

— Para quê? – o garoto perguntou com o biscoito semi mastigado na mão.

— Para conseguir sair desta floresta.

O clima ficou pesado na sala, e o barulho da madeira estalando era ensurdecedor. Kasias refletiu sobre as palavras do homem à sua frente, enquanto sua mente infantil borbulhava de informações.

— Como assim? – o garoto perguntou com a voz fina. – Você está preso aqui, Yhorm?

— Infelizmente, sim. Não posso sair desta floresta – antes que Kasias pudesse falar algo, o homem o interrompeu. – Foi algo que escolhi para mim mesmo. Eu sei, mas não deixa de ser maçante.

— Não estou entendendo nada… – murmurou Kasias, confuso.

— Vou começar do início… – Yhorm se ajeitou na cadeira e começou a falar:

“Eu sou o guardião desta floresta. Os Deuses me criaram há muito tempopara mantê-la segura de quaisquer males. No começo, era divertido, eu conversava com os animais que aqui viviam e, de vez em quando, trombava com alguns humanos de passagem que me mantinham entretido. O tempo foi passando, e eu fui realmente começando a amar minha existência, pois tinha tudo o que precisava: água, comida e boa companhia.”

“Até que um dia, com meus poderes ainda florescendo, criei esta casa para mim. Aprendi com os humanos a valorizar o conforto e um pouco do luxo. Posicionei-a em um plano diferente, este que estamos agora, o qual apelidei de campo delimitado. Ele é nada mais do que a materialização da essência da floresta em uma dimensão paralela – explico com detalhes depois, e te ensinarei a fazer algo parecido – e, até aí, a história é só alegria, nada de errado poderia acontecer, ou não.”

— Você está familiarizado com o conceito de calamidades? – Yhorm perguntou.

— Mais ou menos – Kasias ainda estava processando tudo aquilo que foi dito – Você quer dizer... Os monstros gigantes?

— Basicamente – Yhormgandr assentiu. – Eles vêm de outras dimensões, mas o que isso significa? Eu vou explicar para você mais tarde.

“Então, uma dessas calamidades, denominada Akel’thut, acabou invadindo esta floresta séculos atrás. Ela devastou tudo em volta, matando animais e humanos como se fossem formigas, e queimando árvores e plantas sem dificuldade alguma.”

“Lutei com a besta por 14 dias e 14 noites, mas logo percebi que não era páreo para ela, pois meu vigor estava acabando e não poderia tolerar mais aquele derramamento de sangue sem sentido.”

— E o que você fez? – os olhos de Kasias brilhavam ao imaginar a luta que o guardião tivera com a besta.

— Bom – Yhorm enrubesceu. – Fiz o óbvio: a prendi no meu campo delimitado comigo.

Kasias gelou. Ele olhou para janela, como se esperasse encontrar algum monstro gigante o encarando de volta, mas nada estava lá.

— Não se preocupe – riu Yhorm. – Ele está longe daqui, em uma seção diferente da floresta.

— Eu entendi até essa parte – disse Kasias. – Mas o que te impede de sair daqui? Tem a ver com Akel’tots?

— Akel’thut – Yhorm corrigiu. – Tem a ver com ele sim, sabe... Você não está familiarizado com o conceito de Manipulação da Lei, não é?

Kasias negou com a cabeça.

— Humanos... – suspirou Yhorm. – A Lei nada mais é do que o conjunto de regras e de equações que os Deuses criaram para manter o equilíbrio deste mundo – o homem explicou. – Elas nada mais são do que a força que te faz viver, respirar, andar e até a força que mantém seus pés grudados no chão e te impede de sair flutuando por aí.

Kasias assentiu, assinalando para que o guardião continuasse.

— A Manipulação da Lei é apenas o modo como os seres vivos fazem um pacto com essas equações que regem por todos nós – ao ver a cara de confusão de Kasias, Yhorm suspirou. – Basicamente, nós podemos oferecer sacrifícios a essa Lei para reescrevê-la temporariamente.

— Que tipo de sacrifício?

— Energia, sua força vital. Deixe-me dar um exemplo.

Ao dizer isso, Yhorm levantou uma das mãos à frente de Kasias e a fez irromper em chamas.

— Wow! – Gritou Kasias, pulando para trás.

Yhorm riu e apagou o fogo com um balançar de dedos.

— COMO VOCÊ FEZ ISSO? É MUITO LEGAL! – gritou Kasias, balançando os braços em êxtase.

Ao ver a empolgação do garoto, o sorriso de Yhorm se alargou ainda mais, expressando profundo orgulho de si próprio.

— Porém, essa Manipulação da Lei, por si só, não vale muito a pena sem condições ou restrições...

— Como assim?

— A quantidade de energia que eu uso para acender esse fogo é muito maior que a quantidade que eu gastaria por, simplesmente, pegar duas pedras, ou uma pederneira, e fazê-las irromper em chamas.

— Então, ela não serve para nada?

— Muito pelo contrário – Yhorm sorriu. – Existe um truque para poder manipular a Lei sem grandes gastos de energia, você quer saber qual é?

— Quero sim! – respondeu Kasias com um brilho no olhar.

— Você só precisa adicionar suas próprias condições e restrições à Lei. Quanto mais limitado seu comando for, menos energia você gasta – ele preparou a mão de novo. – Eu vou usar esse biscoito aqui – disse, pegando um biscoito. – E vou fazê-lo irromper em chamas.

— Sim! Sim!

— Mas o biscoito apenas queimará se estiver na minha boca, e se você estiver olhando diretamente para ele.

Dito isso, ele pegou o biscoito e colocou em sua boca, fechando-a rapidamente.

— Preparado? – perguntou com a boca cheia.

— Estou.

— Então, olhe para o biscoito.

Ele abriu a boca, e Kasias olhou para o biscoito. No momento em que seus olhos focaram nele, o fogo irrompeu da boca de Yhorm em uma quantidade absurda, fazendo-o cair para trás.

— Você está bem, Yhorm? – perguntou Kasias, preocupado e impressionando-se. – Machucou?

Yhorm se levantou sorrindo e sem nenhum arranhão.

— Como eu disse, nada aqui pode me machucar. É uma das condições que criei quando construí este lugar.

— Então, por que não derrota Akel’thut aqui?

— Porque eu tive que criar algumas condições para prendê-lo aqui. Uma delas é que eu não posso machucá-lo.

— Então, por que não sai e o deixa aqui?

— Porque no momento que eu sair desta dimensão, ela deixa de existir. Logo, ele sai também, e volta a destruir tudo em seu caminho.

— E o que você vai fazer, então?

— Eu? Nada... – ele fez uma pausa. – Mas você irá matá-lo.