Carnificina/Raça

O rapaz conduzia seu cavalo sobre o campo de batalha. O cheiro de sangue, tripas e merda lhe subiam às narinas, não sendo uma visão agradável, mas o rapaz já estava acostumado. Ele passou por uma pilha de corpos queimados com o cenho franzido, enquanto um enorme Fürnan o acompanhava de perto, carregando uma grande lança em suas costas. A lança tinha um cabo formado por três vinhas escuras que se entrelaçavam por um comprimento semelhante a um homem adulto. Em uma das pontas, as vinhas se separavam em formato de cruz, e pareciam extremamente afiadas. Na outra ponta, existia apenas um vergalhão formado pela junção das vinhas e, ao longo de toda a arma, havia runas escritas em tinta verde que brilhavam levemente sob a luz do sol, reagindo com o fulgor das chamas ao redor do rapaz. Enquanto vagava, ouviu um gemido baixinho, quase imperceptível, vindo de uma pilha de corpos.

Com facilidade, localizou a fonte do barulho, sendo um senhor de idade, mas não apenas isso. Reparou que seus braços eram mais alongados, pernas atarracadas e coluna levemente maior que o normal, além das feições mais suaves e dois grandes olhos acinzentados e desproporcionais à cabeça. Era um Wogan, toda aquela pilha de corpos eram Wogans, e o senhor estava recostado nela. Ele tinha um ferimento que ia de sua clavícula esquerda até a cintura do lado oposto, vertendo sangue rosado de seu peito exposto.

— Água... Quero água – o senhor, que parecia ter entre 40 e 50 anos, balbuciou.

O rapaz, sem mudar a expressão de seu rosto, pegou nos alforjes de seu cavalo um cantil e o entregou ao velho.

— Obrigado – disse o velho, com a voz balbuciante. – Posso saber seu nome?

— Kasias... – o jovem fez uma pausa e empertigou-se na sela. – O que aconteceu aqui?

— Nada demais – o velho sorveu um gole de água. – Apenas Wogans e Homens, sendo Wogans e Homens.

— O que quer dizer com isso?

— Que nossas espécies simplesmente não conseguem viver em harmonia – o velho fez uma careta. – Vocês sempre vão nos ver como visitantes indesejados em suas terras. Como se tivéssemos a escolha de voltar para casa – uma lágrima escorreu do rosto do velho e se misturou à terra, que sujava sua face. – Nunca poderemos – reafirmou.

O rapaz ficou calado por um tempo e observou seus arredores.

— Posso te curar, se o senhor me permitir... – disse baixinho e o velho sorriu.

— Isso é piedade? Não se incomode, meu tempo nessa terra já acabou faz tempo, não tenho mais nada aqui para buscar ou cultivar.

— Entendo...

— Mas aceitaria uma companhia até a hora em que eu... – o velho engoliu em seco. – Mesmo que seja a de um humano.

— Não sou humano – Kasias respondeu prontamente. – Pelo menos não mais.

— E o que é então? – o velho perguntou sarcástico.

— Eu... – Kasias já não sabia mais, pois nascera como um humano, isso é fato, mas as modificações feitas por Yhorm em seu corpo fizeram ele ser reconhecido como algo a mais. – Deixa pra lá...

O velho observou com curiosidade os olhos magenta do rapaz, mas não parecia ter encontrado alguma anomalia.

— Seja lá o que você for... Ainda é um jovem rapaz, se me permite supor isso. Por quantos ciclos passou?

— Dezessete – respondeu secamente.

— Bom, eu talvez seja um pouco mais velho que você então – deu uma pequena gargalhada, e pegou nos seus ferimentos, sentindo dor e praguejando. – Tenho 33.

Essa revelação pegou Kasias de surpresa, pois esperava que o homem à sua frente tivesse no mínimo uns 50, devido à quantidade de rugas e de cabelos brancos.

— Que falta de educação a minha. Perguntei seu nome, mas não disse o meu... – o homem emendou. – Sou Nirvalus Kaendizus.

— Um nobre, admito que não esperava por isso – Kasias sorriu.

— Não que isso signifique alguma coisa nessa terra amaldiçoada – Nirvalus cuspiu um pouco de sangue. – Um caolho que reina sobre os cegos ainda é um caolho sobre a perspectiva de quem tem os dois olhos.

— Justo – respondeu Kasias com uma careta.

— Esse pessoal que você vê empilhado aí... São os que sobraram dos nobres Wogans, o rei de Camllan, Lundt (maldito seja seu nome), nos prometeu mais terras ao norte do Nix – disse, referindo-se ao grande rio que passava ao norte de Camllan, mas então Nirvalus cuspiu sangue mais uma vez. – Com a ajuda de algumas outras casas Wogans – ele fez uma pausa para respirar pesadamente. – Consegui facilitar a vinda de uma expedição para a tal terra prometida...

— E o que aconteceu? – inquiriu Kasias.

— O que aconteceu? O rei aconteceu. Acontece que as tais terras pertenciam a um lorde da região, desafeto do rei, Lorde Micah. Ele prontamente levou seu exército pessoal para nos destroçar.

Kasias parou um pouco e observou o campo de batalha mais uma vez, então percebeu o quanto estava enganado. Aquilo não poderia ser considerado um campo de batalha, era o local de um massacre. Observou, com um olhar cinzento, um pequeno bracinho decepado e amontoado na pilha de corpos, pelo tamanho poderia pertencer a uma criança de 8 anos

— Nirvalus... – Kasias falou baixinho. – Me conte mais sobre você, quero entender como os Wogans vivem...

Não houve resposta, então o rapaz virou seu olhar para o homem que, há pouco tempo, estava conversando. Seu corpo inerte estava recostado no paredão de carne, a cabeça tombada para frente e os olhos vazios entreabertos.

Kasias soltou um suspiro, desceu do cavalo e, gentilmente, fechou os olhos do homem.

— Nirvalus, te conheci no leito de morte, mas parecia um bom homem. Não sei se tem parentes vivos ou amigos próximos, então darei minhas últimas condolências a você... – fez uma pausa e ergueu as mãos ao céu, seu brinco na orelha esquerda tremelicou, brilhando na cor púrpura.

No momento que fez isso, o fogo que queimava os cadáveres aumentou a intensidade, se espalhando em todas as pilhas. Assim, formou um verdadeiro círculo infernal ao redor do rapaz, consumindo carne, vísceras e ossos dos que ali jaziam. Em pouco tempo, o cheiro de carne queimada foi sumindo, dando lugar ao cheiro de cinzas. Kasias sabia que os Wogans não costumavam queimar seus mortos, pois prefeririam enterrá-los em uma cerimônia quase festiva. Entretanto, o rapaz não tinha tempo para enterrar todos eles, e uma cremação, entre os faradinianos, significava que o morto estava finalmente se desprendendo dos laços com a terra, que o impediam de ser livre.

— Liberdade – murmurou. – Pode ser que não era isso que desejava, mas espero que seja o suficiente para satisfazê-lo.

As chamas finalmente se apagaram, e não havia mais rastro dos corpos que ali estavam. O rapaz deu as costas para a planície atrás de si, não tinha certeza se aquilo que fizera foi uma ação justa, pois as relações de Humanos e de Wogans entre si, e as dos deuses era algo que ele era fisicamente incapaz de compreender. Então, olhando para o céu, se perguntou mais uma vez se os deuses realmente existiam, e se eles olhavam por ele.

“Seriam eles tão injustos ao criarem algumas raças para a grandeza e outras para a perdição e o isolamento? Ou se quer importavam com sua criação? Teriam eles apadrinhado os Wogans? Será que vieram de outro plano? Ou os desprezam como os humanos?”. Pensava enquanto o cheiro de carne queimada e cinzas enchia seu nariz.