Banho/Motivo

Magnun estava começando a ficar com sede, e a estrada seguia de maneira uniforme já fazia uma quantidade de tempo considerável. Kasias olhou preocupado para seu cavalo que parecia dizer “estou com sede, senhor; vamos descansar”, era a súplica que ouvia em sua cabeça. Então, Kasias parou sua caravana pessoal. Dorothy, a Fürnan, olhou para trás atenta, pois estava com fome e suas intenções assassinas provocariam um calafrio em qualquer um que não a conhecesse – e, talvez, aqueles que a conhecessem. Kasias levantou a mão.

— Magnun, fique aqui com a Dorothy. Vou buscar comida e água – sugeriu o rapaz, transmitindo suas intenções aos seus companheiros.

Os animais, como se fosse por mágica, entenderam o que seu mestre havia dito. A habilidade do rapaz tinha uma origem desconhecida até pelo próprio Yhorm. Então, ele desamarrou Jormunn das costas da enorme Fürnan, que pareceu aliviada quando liberada do enorme peso da arma. Depois, olhou para a floresta, retirou um anel de madeira e um colar de miçangas dos seus alforjes. Vestiu-os com cuidado, sem movimentos bruscos.

— Dorothy – o grande animal olhou para ele. – Proteja o Magnun – deu um sorrisinho. – E não arrumem confusões.

Concentrando-se, aguçou seus sentidos e se embrenhou na floresta densa que circundava a estrada. Não se preocupava com bandidos roubando seus pertences, pois sabia que a mera visão de Dorothy os faria desistir de tentar roubar algo. O único risco era uma caravana de soldados do lorde Micah acabar passando pela estrada, o que era pouco provável. Kasias estimava que seriam necessários, no mínimo, 15 homens treinados para abater seu Fürnan. Passados alguns minutos, o rapaz ouviu o barulho de água corrente. Pensou que onde havia água, provavelmente havia comida.

Seguindo pela trilha irregular na floresta com agilidade desumana, finalmente chegou a uma pequena queda d’água com águas cristalinas que desciam pelas colinas. Contudo, outra coisa chamou sua atenção, uma moça de cabelos longos e loiros, totalmente despida, estava se banhando de costas para ele. Após o susto de reparar na existência de outro ser humano, ele praguejou, pois não estava com vontade de forçar uma interação no momento. Além do mais, a situação em que se encontrava poderia ser facilmente mal compreendida pela donzela.

Ele hesitou. Deveria voltar para a trilha e esperar ela sair? Anunciar sua presença? Ou seria melhor fingir que nada está acontecendo, e pegar um pouco da água que escorria das corredeiras? O rapaz foi treinado para muitas coisas, mas situações de interação com estranhos ainda o deixavam confuso e desajeitado. Então, decidiu a segunda opção: pigarreou bem alto para que a jovem o ouvisse.

Ela se estremeceu com o susto e se virou rapidamente para investigar a fonte do barulho. Kasias olhou fixamente em seus olhos, pois achou que era a coisa mais educada a se fazer. A moça era esbelta, mas levemente rechonchuda, do jeito que o rapaz gostava. Seu rosto era comum, nada de especial, com olhos castanhos e uma pinta abaixo do lábio à esquerda. Tentou evitar descer o olhar, mas seus sentidos ainda estavam aguçados. Assim, reparou nos seios de tamanho médio com mamilos rosados, na cintura levemente avantajada e no matagal loiro que havia entre as pernas.

Ela parecia ter por volta da idade de Kasias, embora fosse um pouco mais nova. Todavia, algo sobre ela atiçava sua curiosidade, como se tivesse uma aura nobre, mas não da maneira que os humanos escolhiam seus nobres, era como se ela tivesse nascido para grandeza. Então, a moça aprumou-se e ajeitou a coluna. Parecia com medo, mas tentava não demonstrar, assim suspirou e levantou a cabeça com orgulho.

— Quem é você? O que fazes aqui? – disse com uma voz firme e ríspida.

Kasias praguejou em sua mente, talvez ele não tenha escolhido a melhor abordagem.

— Apenas buscar água para mim e para minhas montarias – apontou para o leito d’água, desviando o olhar. – Meu nome não é importante, e já estou de saída.

Havia várias dúvidas na cabeça do rapaz, mas achou que seria prudente não as verbalizar. Assim que terminou de dizer o que queria, nem esperou resposta e foi direto para a margem do riacho, retirando seu anel. Ele ainda tentava pensar em como escapar dessa situação constrangedora. Então, com o anel em mãos, recitou um pequeno encantamento, e logo o anel já havia se transformado em um recipiente consideravelmente grande de água.

Curioso com o silêncio da moça, ele olhou de relance e viu-a se vestindo na margem do rio, olhando para ele com desconfiança e um pouco de curiosidade.

— Você é o “matador da besta”, não é? Kasias, o abrigado dos clãs faradinianos – ela perguntou em um tom levemente debochado.

Kasias se manteve em silêncio, praguejando ainda mais.

— E você? Quem é? E o que está fazendo aqui sozinha?

— Etáoin, filha de ninguém, sacerdotisa dos Seis Divinos – a garota terminou de se vestir. – Estou aqui, pois estou perdida...

A aleatoriedade da resposta fez o rapaz soltar um riso nervoso, enquanto enchia o recipiente, então olhou bem para a garota. Agora reparava nas olheiras e no rosto murcho por causa da fome, e duvidava da capacidade mental da garota por ela ter se perdido em um lugar que ficava a menos de uma hora do monastério. Contudo, ela não demonstrava vergonha ou algo do tipo, pois sua postura ainda era prepotente e desafiadora, mas ele percebeu uma reação de irritação logo após sua risada.

— Bom, estou indo ao monastério. Posso te levar lá

— Seria uma grande honra viajar com o famoso herói, que conquistou a simpatia de Faradin e Camlann – respondeu sarcástica. – Mas não vou voltar lá, pois vou viajar o mundo – disse com um brilho desafiador no olhar.

— Bom, então boa sorte, tente não morrer de fome, ou ser violada por malfeitores – Kasias virou as costas e foi procurar uma presa para alimentar Dorothy e, talvez, petiscar algo que não fossem rações.

— Ei, espera! – gritou Etáoin, meio sem jeito. – Como pagamento por ter me espionado nua, quero que me acompanhe até a estrada.

Kasias virou confuso, pois a estrada ficava apenas 5 minutos do lugar em que estava, não deveria ser problema algum em chegar nela. Contudo, a garota estava apreensiva, e ele estava certo de que ela não sabia o caminho de volta. Então, balançou a cabeça em sinal de desistência.

— Vou procurar algo para comer, me espere aqui – disse e recitou um encantamento rápido.

Assim, a cabaça cheia de água voltou a se tornar um anel de madeira. Logo, ele o equipou sem pestanejar, apesar de o anel ter aumentado absurdamente sua massa, graças à quantidade de água.

— Tá bom, vou confiar em você. – respondeu ainda insegura.

“Ela confia rápido, meio estranho. Será que ela se garante na porrada se algo der errado? Ou só é bem ingênua mesmo?”. Pensou enquanto se embrenhava na floresta e desmontava o colar de miçangas, o qual lentamente se transformou em um arco e flecha composto.

Etáoin estava satisfeita, pois agora tinha uma companhia para a viagem. E, graças à autoridade concedida pela Deusa, ela sabia muito bem que o rapaz não estava mentindo, e era passivo o suficiente para ajudá-la em troco de nada. A sua aura era simples e bem fraca, como se não tivesse vontade própria nenhuma, e a moça logo entendeu que o rapaz não se via mais como humano e sim como uma ferramenta. A única coisa que a surpreendeu era que a lança exalava uma aura forte – maior que a do próprio rapaz –, e tinha cheiro de ervas doces e especiarias. Como se fosse uma criatura viva ao invés de uma arma.

— Seus papéis são invertidos – disse com uma risadinha.

Alguns minutos depois, o rapaz voltou carregando dois coelhos em uma mão e um javali no ombro. Seus sentidos aprimorados por mutações causadas por Yhorm e sua habilidade de se comunicar com animais faziam dele um dos caçadores mais eficientes possíveis. Ele observou o olhar de curiosidade e de admiração relutante da garota, e resmungou algo baixinho. Jogou um coelho para ela, dizendo: “esse é o seu”. Ao que ela tentou aparar, mas atingiu pateticamente seu rosto.

— Vou te levar à estrada, e você poderá cozinhá-lo.

A garota hesitou, rangendo os dentes, mas suspirou e adotou uma postura doce, com um sorriso de orelha a orelha. Ela tombou a cabeça de lado e perguntou com delicadeza:

— Cozinha para mim?

Kasias parou, olhou fixamente para ela, e soube que seria a viagem de uma hora mais longa que jamais teria. Já ia mandá-la ir à merda e se virar quando teve uma ideia.

— Vou te ensinar a cozinhar, mas antes quero que passe por um teste.

— Teste? – a garota hesitou. – Que tipo de teste?

O rapaz sorriu maliciosamente.

— Quero que faça amizade com minha companheira, o nome dela é Dorothy.

O plano de Kasias de dar uma lição em sua recém-chegada companheira havia falhado. Ao invés de se assustar com o tamanho e a ferocidade de Dorothy, a garota se encantou com a fera e a domesticou facilmente com seu charme. No momento, ela estava deitada ao lado do Fürnan que comia com voracidade o javali que Kasias havia caçado, enquanto o rapaz acendia a contragosto uma pequena fogueira. Ele também já espetava os coelhos, sem o pelo e o couro.

— Ei, aonde vamos? – inquiriu Etáoin, pensativa.

— Vamos? – Kasias resmungou. – Eu vou para o monastério, e você?

— Eiii! Já somos amigos, você tem que me acompanhar – ela se levantou, batendo a poeira de suas roupas. – Além do mais, que homem recusa a doce companhia de uma bela e inocente donzela? A não ser que você prefira rapazes, é claro – completou com um risinho.

— Amigos? Desde quando? Até agora você só me fez perder meu tempo – retrucou o rapaz, irritado. – Além do mais, eu tenho minhas coisas para resolver, não posso ficar acompanhando uma desajeitada qualquer.

Houve um breve momento de silêncio, e Kasias olhou para cima, dando de cara com o olhar irritado de Etáoin.

— O que quer dizer com isso? Desajeitada? Eu? – a garota estava visivelmente ofendida.

O rapaz virou os coelhos na fogueira e não respondeu nada. Recostou-se em uma pedra e fechou os olhos com rugas de irritação aparecendo em sua testa.

— Quando terminar de comer, vou direto para o monastério. Já prepare seu discurso de despedida – disse sem abrir os olhos.

— Eu... Eu vou com você... – sussurrou a garota.

O rapaz abriu os olhos e soltou um leve suspiro para acalmar. Levantou-se e olhou fixo para a moça, que desviou o olhar e foi acariciar Magnun.

— Por que você vai... – começou ele.

— Porque não vou sobreviver sozinha, você mesmo disse. – A garota parecia decepcionada. – O Irmão Bethe tinha razão, eu não sirvo para ser uma aventureira.

— Aventureira? Tipo as dos livros? – Kasias perguntou rindo. – Isso não existe. As pessoas simplesmente se aventuram ocasionalmente, porque não têm escolha. Ou é para sobreviver, ou é porque não têm lugar para voltar.

— Eu quero conhecer o mundo – a garota tentava conter as lágrimas que teimavam a aparecer em seu rosto. – Nunca sai daquele maldito Monastério.

Kasias parou de rir e seu rosto ficou sério., Ele se lembrava dos tempos de sua infância quando queria sair e conhecer o mundo. Isso o fez ficar irritado, pois o sonho ingênuo da garota fazia seu sangue ferver.

— Acha que isso é a porra de um passatempo? Que vai poder dormir bem todas as noites? Que não vai desejar, até mesmo implorar, para ter a sorte de encontrar água doce? – esbravejou o rapaz. – Acredita que vai ter muita diversão e lazer sentada dias em cima de um cavalo com o mísero propósito de conhecer o mundo? Não seja ingênua, se planeja suportar os perigos e os desafios de uma “aventura” tem que ter um objetivo maior que esse.

— E qual o seu objetivo? – retrucou a garota com lágrimas escorrendo.

— Eu… – Kasias congelou, pois não sabia o que responder. Por reflexo quase que respondeu matar Akel’thut, que foi a única coisa que o guiou por um longo período. – Você não precisa saber.

— Essa é sua resposta? Vai me dizer que vaga pelo mundo sem objetivo ou paixão alguma? – a garota enxugou as lágrimas com o dorso da mão. – Logo depois de ter me repreendido por isso? A diferença entre eu e você é que eu tenho um objetivo, por mais infantil que seja, e você parece já ter terminado sua jornada.

“Você parece já ter terminado sua jornada” essa frase ecoou na cabeça do rapaz. Não foi a primeira vez que o pensamento surgiu na sua mente e nem a primeira vez que lhe disseram isso. Então, o rapaz pegou o coelho ainda malpassado e começou a comer, sem dizer nada, enquanto a garota chorava baixinho.

— Vou te levar para o Monastério e, depois disso, nunca mais me verá – disse entre uma mordiscada e outra no coelho quase cru.

Depois de ambos terem terminado de comer, partiram em silêncio pela estrada. Kasias havia deixado a garota ir montada em Magnun, enquanto a acompanhava a pé. Não queria fatigar seu cavalo com o peso de duas pessoas mais seus alforjes.

— Kasias... – disse a garota em certo momento.

— Diga.

— Por que está indo ao Monastério? O que tem de tão importante lá?

— O elixir da vida. Foi incumbido a mim a tarefa de transportá-lo até o Império Vkstri.

— Então é você... – suspirou a garota desanimada. – Não sei se é uma notícia boa ou ruim.

O rapaz olhou curioso para Etáoin, que seguia com o olhar fixo no horizonte.

— O que quer dizer com isso?

— Em breve você saberá – a garota respondeu sem pestanejar.