Fera/Território

— Como é Akel’thut? Sua aparência, digo. – Kasias havia perguntado ao seu mestre entre uma lição e outra.

Yhorm botou a mão no queixo e pensou, o qual parecia estar fazendo uma imagem mental da criatura.

— A maioria das calamidades são meio difíceis de descrever – ele coçou uma barba inexistente. – Afinal, são seres de outros planos de existência e blábláblá.

— A única coisa que sei do meu inimigo é que ele é grande, e é um forasteiro neste mundo. Você tem que ao menos me descrevê-lo para eu saber com quem vou lutar.

— Hmm... – Yhorm fechou os olhos. – Quanto à altura, ele deve ser do tamanho de uma casa de dois andares para três, dependendo do estilo da arquitetura. Ele possui 5 membros que lembram, mas não são exatamente, quatro patas e uma cauda – ele hesitou, percebendo que o garoto estava desenhando algo. – Alguma coisa parecida com chifres sai de seu suposto rosto, que se abre verticalmente para formar uma boca. Ele possui uma cor predominantemente marrom, com detalhes em cinza e vermelho.

— Assim? – Kasias levantou seu caderno de anotações e mostrou ao mestre, que caiu na gargalhada.

— Isso aí é só um javali torto – disse entre um riso e outro para a frustração do garoto.

— Hmm – murmurou descontente. – Mais algum detalhe?

— Sim, sim. A cada pessoa que mata, o rosto aparece em agonia encravada em seu dorso, como se a criatura estivesse colecionando faces humanas. Elas se lamentam e contorcem enquanto ele se move.

— Não vou desenhar essa merda. É muito trabalhoso – resmungou o menino. – Deve ser mais fácil matá-lo do que desenhar esse bicho feio.

— Bom, eu não consigo fazer nenhum dos dois – Yhorm disse com um sorriso amarelo. – Mas tenta a sorte aí.

Já haviam se passado 2 ciclos no lado de fora do campo delimitado do mestre, segundo o próprio. Até porque Kasias não conseguia contar a passagem de tempo em um local que o sol nunca se põe e não se precisa dormir ou descansar.

Faltavam poucos dias para o décimo ciclo de Kasias, e o único animado com isso era o próprio Yhorm. Comemorar o dia em que se nasce era um hábito apenas dos nobres em Camlann, e Kasias estava longe disso por ser filho de fazendeiros que moravam como vassalos do senhor de Quant, Ricardo Treymor. Este, por sua vez, era vassalo de Artemira de Saint-Cardim, que, por sua vez, era vassala do Rei de Camlann, Jhon IV, O Inesgotável.

Eram conhecimentos que Kasias só foi se importar e prestar atenção desde que começou o treinamento com Yhorm. Ele o ensinou o valor da sabedoria e do acúmulo de informações. Contudo, o garoto não estava nem um pouco empolgado com o acontecimento, apesar de suspeitar que o seu mestre havia preparado um presente para ele.

Nascera em um dia que era exatamente o meio do ano, o que quer dizer um solstício. Isso significava que existiam 182 dias antes e 182 dias depois do dia de seu nascimento em um ciclo que passara. Isso expressava, segundo a superstição de Camlann, que o rapaz teria uma aptidão para as artes e a arquearia, se fosse um nobre, é claro. Kasias logo viu que não era seu caso, pois se dava melhor com lanças e espadas, e tinha pouca habilidade e criatividade para ser um artista.

Ele estava pensando justamente sobre isso, enquanto tentava fazer um de seus itens mutados com a lei. Era um anel que só poderia usar uma vez, mas que negaria qualquer ataque a longa distância de um inimigo. Isto é, contanto que o próprio Kasias saiba a localização e a identidade dele. Parecia muito específico para ser utilizado em batalha, mas era perfeito para lutar com Akel’thut. Isso porque ele possuía glândulas radioativas em sua glote, podendo liberar um raio de luz que mataria qualquer um de maneira lenta e dolorosa. Além de ser capaz de violar qualquer barreira.

Quanto mais aprendia sobre o monstro, mais entendia que não havia chance de derrotá-lo sem um plano ou truque de sorte. Era um desafio para qualquer legista e guerreiro do mais alto nível, mas era sua responsabilidade acabar com ele. Além de que seu mestre confiava nele.

Nesse momento, teve uma ideia e foi compartilhá-la com Yhorm. Procurou-o pela casa até que olhou pela janela e viu-o rezando para a árvore do caos. Consistia em uma árvore, obviamente, de raio do tamanho de 4 homens adultos e com altura para tocar as nuvens. Segundo a religião de Yhorm, que ele não deu muitos detalhes, essas árvores nascem em locais onde o destino do mundo ainda não foi escrito. Assim, orar para elas, e realizar promessas e sacrifícios, pode fazer com que você seja responsável pelo próprio destino.

O garoto esperou pacientemente o término da oração de seu mestre, que se levantou e percebeu a presença dele. Então, ele alterou rapidamente sua face preocupada e triste para a face alegre e jovial que sempre tinha.

— Algum problema, Kasias? – seu mentor perguntou com um sorriso.

— Estava pensando... – o rapaz observou o seu mestre com atenção. – O que é exatamente um campo delimitado? E quando poderei ter o meu?

Houve um silêncio, fazendo o sorriso de Yhorm murchar. Seu olhar ficou distante e cinza, então ele olhou para seu pupilo, que tinha um olhar determinado e curioso.

— Vamos entrar, discutiremos isso lá dentro – disse com voz neutra.

Depois de se acomodarem na sala, Yhorm serviu café para seu pupilo e, para si, misturou a bebida com um pouco de álcool destilado a partir de cana de açúcar. Era muito popular em reinos e territórios com vasta extensão litorânea.

— A primeira coisa que precisa saber sobre um campo delimitado é que é a cartada final de um legista. É algo que reflete profundamente em sua alma, como se você transformasse a realidade para que ela tome a forma de sua mente – Yhorm sorveu um pouco da sua bebida. – É a coisa mais absurda e poderosa que alguém pode fazer, e depende muito da sua força de vontade e de sua resolução para fazer algo.

— Então é muito difícil fazer um? – Kasias perguntou.

— Difícil é um eufemismo – sorriu amargamente. – Existem algumas restrições a serem feitas: a primeira delas é que você deve escolher suas vantagens ao lutar em seu território de campo delimitado. A segunda é que você escolhe suas desvantagens, pois a própria criação do campo delimitado é uma delas, visto que ao transformar seus pensamentos em realidade, um inimigo habilidoso poderia se aproveitar disso e expor suas fraquezas e traumas.

— Me parece meio arriscado... – disse a criança.

— Ainda não terminei – disse Yhorm, sorvendo até a última gota de sua bebida. – A terceira é que você deve recitar um encantamento longo, algo como se fosse um poema ou um soneto, que expõe suas angústias e sua vida ao inimigo. E, por último, a quarta...

— Qual é? – perguntou Kasias, já imaginando a resposta.

— Para liberar essa habilidade, você deve sacrificar algo de importante para você, e fazer um juramento – Yhorm repôs sua bebida. – Você deve seguir esse juramento à risca, ou sofrerá graves consequências. Além de que, quanto mais restritivo esse juramento for, mais vantagens você terá em seu território.

Um calafrio subiu às costas do garoto, e ele tinha muito mais para perguntar. Olhava curioso para seu mentor e, julgando pela sua expressão de arrependimento e de dúvida, ele não teve coragem de expor suas dúvidas.

— Mudando de assunto, tenho dois presentes para você – Yhorm voltou a falar com um sorriso.

— Sério? Quais? – o garoto tentou forçar um entusiasmo. – Me mostre!

Yhorm o levou novamente para o lado de fora da casa, e seguiu para uma região de seu território ainda desconhecida para o rapaz. Eles se embrenharam na floresta, avistando uma pequena estrutura de madeira.

— Entre – Yhorm disse empolgado.

Ao que Kasias entrou e viu um dos animais mais belos da sua vida. Era um potro de pelos sedosos e longos de cor preta, com grandes olhos igualmente escuros que o encaravam de volta. Kasias pode entender o estado de espírito do animal, o qual estava ao mesmo tempo alegre por receber uma nova visita e receoso. Então, ele chegou perto do animal, transmitindo suas intenções a ele, assim o cavalo abaixou a cabeça e deixou ser afagado pelo jovem.

— Então, você pode decidir o nome del...

— Magnun – interrompeu o rapaz, emocionado. – O nome dele vai ser Magnun.

Seu mestre sorriu, ainda não tinha apresentado ao rapaz o seu outro presente, mas sabia que ele ia gostar mais do primeiro.

— Seu outro presente está ali – disse, apontando para algo embrulhado por um pano preto e recostado na parede.

O rapaz foi na direção do objeto e tentou levantá-lo, porém não conseguiu, pois era muito pesado. Então, o deitou no chão e o desembrulhou. Era uma lança feita de madeira que, em um dos lados, tinha uma ponta afiada que seguia ao longo do cabo, como três vinhas que se entrelaçavam até se separarem na outra ponta. Cada vinha a 90 graus da outra, formando uma cruz. Ao longo do cabo, havia vários espaços para a inscrição de runas, exceto uma, que já estava inscrita. Então, o rapaz tocou nela e uma tatuagem surgiu na palma de sua mão, mimetizando o desenho inscrito.

— Tente levantar agora – disse seu mestre, colocando a mão em seu ombro.

O rapaz conseguiu levantar a lança com mais facilidade que antes, embora ainda estivesse pesada. Ele olhou para o mestre, tentando procurar palavras para agradecê-lo.

— Essa fui eu que fiz com os galhos caídos da árvore do caos – disse orgulhoso. – Uma obra prima, eu diria. Eu coloquei uma runa que fizesse com que o primeiro a a tocar pudesse ser seu portador e liberar o potencial da lança. Mas ainda tem mais 6 espaços para você customizar.

Kasias sentiu lágrimas rolarem pela sua face. Talvez, pela primeira vez na sua vida, sentiu-se emocionado com os presentes. A primeira vez que recebia algo importante de alguém.

— Muito obrigado... – disse com a voz embargada, segurando o choro e, em seguida, disse a palavra que mais surpreendeu Yhorm em toda sua vida – Pai.