Preparativos/Ritual

Kasias ainda estava surpreso quando ficou sabendo que teria que escoltar um item valioso para o império de Vkstri. Achou que era uma missão banal e que apenas ele poderia dar conta do recado, afinal era simples plantar chamarizes para confundir saqueadores e assassinos de outros territórios.

Antes de ser apresentado ao plano oficial, ele havia esperado que os seus acompanhantes de jornada carregassem cada, um objeto similar ao elixir para atrair seus perseguidores por caminhos diferentes. Aliás, extraoficialmente, era apenas um deles que estaria levando o item verdadeiro, sem nem mesmo saber se era o real ou a cópia. Isso evitaria traições, além de confundir e de espalhar as forças inimigas. Após Lorde Fragatt lhe explicar todos os erros e os riscos de seu plano, o jovem decidiu que era ainda muito inexperiente em questão de planejamento. Uma percepção que fez sua cicatriz causada por Akel’thut arder novamente.

No entanto, como de esperado, Lorde Fragatt não lhe explicou os detalhes do plano, pois ele próprio não sabia, apenas havia lhe avisado que o rapaz poderia encontrar um tipo de diversão no caminho. O que isso queria dizer, Kasias não sabia, mas o olhar de Fragatt tinha lhe dado arrepios.

— É o seguinte – Sua Santidade Dikaeon, o Sumo Sacerdote de Khan, estava falando. – Vocês todos foram indicados pelos respectivos territórios da Aliança como os mais aptos a realizar esse tipo de missão.

A guerreira de Nan’Deru estava quieta com uma expressão firme. Os gêmeos de Xhun haviam parado de conversar em seu idioma natal, e olhavam surpresos para Etáoin. Já o cavaleiro de Camlann parecia pouco interessado na conversa, e olhava fixamente para a parede, perdido em seus pensamentos. Kasias, por sua vez, estava inquieto em um local com muitas pessoas, e tentava se focar no discurso do Sumo Sacerdote.

— Basicamente, é uma missão de escolta – o cavaleiro em branco emitiu um silvo em uma voz doce e cantada, interrompendo o Sumo Sacerdote. – Quem são os inimigos?

— Bom... – o Santíssimo Dikaeon hesitou na resposta. – Existem várias possibilidades de encontrarem assassinos de outros reinos e bandidos de estrada.

— Diga-me mais, Sua Santidade – disse Kasias em uma voz afiada. – Obviamente, não são apenas essas coisas, ou Sua Majestade não teria me enviado para esta missão.

O conselho se entreolhou. Havia uma tensão no ar, pois o cavaleiro havia exposto um ponto importante. Todavia, o Sumo Sacerdote se manteve impassível.

— É claro que iria avisar sobre isso. Afinal, contratamos o jovem matador da besta justamente por sua experiência no assunto – disse, atraindo a atenção de todos ao redor para Kasias.

O rapaz ficou desconfortável, mas por pouco tempo. Quando absorveu o sentido das palavras ditas por Dikaeon, sentiu sua espinha gelar. Então, ouviu dentro de sua cabeça um berro ensurdecedor de um velho inimigo.

— Afinal de contas, o Império Vkstri não é famoso pelo seu exército, não é mesmo? – continuou Sua Santidade. – Além de empregar diversas bestas feitas a mão pela Feiticeira-Imperatriz Ascléa, a nossa rede de inteligência descobriu que eles domaram, extraoficialmente, três calamidades.

A sala se encheu com murmúrios, e a barriga de Kasias se embrulhou. Três? No nível de Akel’thut? Mesmo que algo no que o Sumo Sacerdote havia falado não fizesse sentido, a mente de Kasias imaginava como conseguiriam lidar com algo do tipo.

— E isso importa? – resmungou o cavaleiro branco. – Não é uma negociação de Aliança. Por que eles... – parou, pois seu cérebro havia chegado a uma resposta.

— Acredito que tenha entendido, Sir Veras Dwayne – a guerreira cor de ébano deu um passo à frente. – Oficialmente, as calamidades não são de responsabilidade de Vkstri e, caso algo aconteça com nossa... “carga”, o Império pode simplesmente pôr a culpa na Aliança, e sair com o elixir sem a necessariamente de cumprir o acordo.

— Parece entender bastante de diplomacia, minha querida. Embora temo lhe informar que esse assunto deva ser discutido entre os homens – rebateu Sir Veras, irritado. – Visto que suas emoções femininas podem interferir no nosso planejamento.

— Acredito que não saiba quem sou, então deixarei passar essa – disse a guerreira com um sorriso, mostrando os dentes brancos como a neve. – Mas se repetir algo do tipo para mim, arranco suas bolas, e as jogarei para as bestas da Feiticeira – deu um passo à frente. – Se algum dia pensar em me insultar novamente, tenha em mente que não estará apenas arrumando briga comigo, Oshandra Mentelophep, mas com todo o império de Nan’Deru e meu Digníssimo e Divino Pai, Aubejang II, o deus encarnado.

O cavaleiro empalideceu, pois não tinha ideia de que estava falando com a terceira filha do faraó. E, se tem algo que todo o mundo sabe, é que não é uma boa ideia ir contra o líder apoteótico de Nan’Deru.

— Minhas sinceras desc...

— Basta – disse rispidamente o Sumo Sacerdote. – Não temos tempo para briga de egos.

Dikaeon se levantou e encerrou a reunião com alguns gestos e ordens espalhafatosas.

— Vocês partirão amanhã de manhã – disse passando os olhos entre eles. – Estão dispensados – apontou para Oshandra. – Exceto você, temos algo a discutir.

Kasias foi o primeiro a se retirar, após dar um olhar inquisitivo à Etáoin, a qual virou o rosto e o ignorou. Em seguida, os irmãos de Xhun e Veras saíram, deixando apenas a princesa, o elixir e o Sumo Sacerdote no salão. Então, o rapaz estava voltando para a estalagem quando percebeu o olhar curioso de um dos irmãos de Xhun, que o seguia despretensiosamente.

— Também está dormindo na estalagem? – perguntou, com um leve sotaque. – Prazer, Qin Li Shang, vigésimo primeiro príncipe da dinastia Shang – disse estendendo a mão.

— Prazer é... – Antes que pudesse terminar de falar, uma voz atrás dele o surpreendeu.

— Todos sabemos quem você é – o outro irmão passou ao seu lado e estendeu a mão. – Sou Yuan Li Shang, vigésimo segundo príncipe.

Kasias apertou a mão de ambos, obedecendo a ordem hereditária, assim como diziam os costumes do império Xhun. Isso fez com que o mais velho dos gêmeos levantasse a sobrancelha em surpresa.

— Ao que parece sou o único plebeu do grupo – disse com um sorriso falso.

Os irmãos se entreolharam por um tempo, e caíram na gargalhada com a piada sem graça de Kasias.

— Tem um provérbio no nosso império – comentou Qin, – Que diz que “não importa o quanto você está alto na montanha, importa o quanto da montanha você escalou” – ele olhou fixamente para Kasias. – Apesar de estarmos mais alto que você, segundo o padrão de Camlann, estamos bem atrás para nossos padrões. Afinal, foi você que começou na base da montanha, não nós.

O rapaz entendeu o que o seu novo companheiro quis dizer, e respeitou-o. Por isso, reconhecer seus privilégios e pesar seus méritos requer bastante humildade por parte de alguém.

— Não está pensando em dormir agora, não é? Ainda não anoiteceu completamente – disse Yuan. – Podemos ainda beber e festejar nosso último dia antes da jornada.

O mais novo dos gêmeos também o havia surpreendido. Não conseguiu sentir sua presença até que o mesmo tivesse a anunciado, apesar de seus sentidos sobre-humanos e capacidade de foco absurda.

— Por que não? – perguntou empolgado. – Vocês têm meu interesse e atenção.

Qin o guiou para um canto do Monastério, no qual uma grande barraca ornamentada com as cores da dinastia Shang se encontrava.

— Entre, matador da besta. Vamos beber.

Kasias se abaixou e atravessou a porta da barraca que, como ele esperava, era maior por dentro do que por fora. A barraca era de paredes vermelhas com detalhes em dourado e branco, o chão era bem espaçoso e cabia uma mesa para dois, duas cadeiras, um beliche e um armário com bebida. Este, pelo rótulo, seria Akeshi, que era uma bebida feita a partir da fermentação do arroz, produzida por uma província ao nordeste de Xhun.

— Surpreso? – o mais novo dos gêmeos perguntou. – Eu acho que não. Você deve ter visto coisas mais bizarras. É impressionante o que um legista pode fabricar hoje em dia.

— Você não é um? – inquiriu Kasias.

— Acho que da nossa pequena caravana, apenas você e meu irmão podem manipular a Lei, o resto de nós... – ele hesitou. – Apenas lidamos com as consequências delas.

— Mas chega de papo de trabalho – Qin exclamou feliz. – Já bebeu Akeshi antes, Kasias?

— Não, mas tenho curiosidade – respondeu com um sorriso.

— Então, sirva-se. O que é nosso, também é seu – disse Yuan, já abrindo uma garrafa e distribuindo três recipientes de porcelana.

O rapaz colocou uma dose generosa no seu “copo” e, imitando os irmãos, tomou tudo em um único gole.

— Pela coragem! – os gêmeos brindaram em uníssono.

Já havia se passado um tempo consideravelmente longo, enquanto Kasias contava suas histórias e explicava os costumes dos faradinianos e Camlannianos. Isso porque passou a infância convivendo com os últimos, e a adolescência com os primeiros.

— Uma pergunta – disse Kasias, soluçando após contar algumas histórias. – Se vocês são príncipes, não seria perigoso mandá-los em uma missão?

Qin riu, enquanto Yuan sorriu levemente, servindo mais uma dose para cada um.

— Então, você não conhece muito bem a política do Império – disse Qin, aceitando o copo ofertado pelo irmão. – Apesar de conhecer bastante nossos costumes.

— A linha de sucessão funciona diferente em Xhun – continuou Yuan. – Nem sempre é o mais velho que herda, e nós somos o vigésimo primeiro e vigésimo segundo na ordem hereditária. Alguém como nós só conseguiria se tornar imperador se realizasse um feito impossível, que gere prosperidade para o Império, provando inquestionavelmente que é o herdeiro de direito.

Kasias assentiu, prestando atenção nas palavras de Yuan. Agora as coisas faziam sentido.

— Então nós dois fizemos uma aposta com nosso pai: se um de nós conseguir matar uma calamidade, ele será o imperador – Qin continuou. – E é por isso que estamos tão interessados em você.

— Acho que entendo aonde querem chegar – sorriu Kasias. – Então, já sei qual é a proposta que têm a me oferecer.

— Aceita participar do ritual conosco? Queremos expandir nossos limites com a Lei. – Yuan disse para Kasias.

— E o que ganharia com isso? – Kasias perguntou, inclinando-se para frente.

Yuan sorriu, enquanto Qin começava a se despir, e preparar as runas do ritual.

— Lealdade absoluta em vida – disse amansando a voz, e chegando mais perto de Kasias. – E posse de nossas almas após nossa morte. Você terá direito a todas nossas técnicas e conhecimentos se morrermos antes e, se você morrer antes, pode escolher sacrificar um de nós para retornar à vida.

— Essas são as condições? – Kasias perguntou, virando mais uma dose. – E em troca, eu expando o domínio de Qin com a Lei, e abro o caminho com ela para você...

— Isso mesmo – disse Yuan, também se despindo.

— Então, aceito a sua generosa oferta – disse Kasias com um sorriso, enquanto o círculo mágico feito por Qin brilhava em prateado.

Olhou os corpos desnudos dos irmãos. Eles tinham uma tatuagem de serpente, que começava no braço direito de Qin e terminava no braço esquerdo de Yuan. Enquanto entoavam cânticos em sua língua natal, a serpente parecia dançar no peito dos gêmeos.

Kasias se levantou, já despido, e esperou os cânticos terminarem e o círculo ritual ficar pronto. Então, os dois abriram os olhos ao mesmo tempo e sorriram para o rapaz. Ele se aproximou deles e os beijou, na ordem hereditária. Enquanto se divertiam na noite, Kasias pensou com um sorriso interno que não precisaria estar naquela estalagem repleta de curiosos.