Primeiro passo/Escuridão

A pequena caravana seguia em formação definida pela estrada com Sir Veras à frente, usando roupas todas em branco para a viagem. Levava sua espada em um dos alforjes do cavalo e um escudo de ferro nas costas. Ele estava montado em Vendaval, que era sua égua igualmente branca e orgulhosa, assim como um burrico de carga que o acompanhava com seus suprimentos e armadura brilhante.

No meio, vinha a carruagem na qual estava Etáoin e Oshandra, que foi designada como sua guarda pessoal. E, na posição de cocheiro, estava o Irmão Alfredo que conduzia os dois animais acinzentados e robustos, os quais tinham o árduo trabalho de puxar a carruagem.

À esquerda estavam Yuan e Qin que andavam um atrás do outro em um pequeno veículo semicircular com rodas e com espaço para um acolchoado, que também tinha um lugar para armazenar provisões. Os irmãos o chamavam de carro de sol, pois ele armazenava energia solar em runas de fogo, as quais liberavam calor. Este calor era transmitido para as runas de ar nos eixos da roda, fazendo com que a compressão impulsionasse o veículo, que emitia um jato de gás azul em sua traseira. Era uma invenção autossustentável feita por Qin, pois o calor era produzido pelas runas de fogo, que moviam o veículo, expandindo o ar que, por sua vez, transformava essa energia calorífica em mecânica, recarregando as runas de ar. Além de que a genialidade da invenção proporcionava sua autonomia e conforto, pois permitia que os irmãos viajassem a uma velocidade constante, usando apenas o sol como fonte de recarga. O acúmulo de energia fazia com que o carro funcionasse à noite também.

Ao lado direito da carruagem, Kasias estava em cima de Magnun, com as costas levemente curvadas e aparentemente desarmado. Usava roupas de viagem comuns e esfarrapadas e trazia um olhar cansado. Já, acompanhando pela retaguarda, vinha Dorothy de olhar focado e sentidos aguçados para o menor sinal de perigo. A enorme lança Jormunn estava amarrada às suas costas e em suas ancas carregava alguns cantis de água e de rações.

O plano de viagem era o seguinte: eles pegariam uma região da Estrada Real, a qual indicava que iriam para o sudoeste, porém, após perceberem os inimigos atraídos, usariam uma projeção feita pelo Sumo Sacerdote. Ele seguiria até o fim da estrada em direção à Vkstri, mas, no momento que essa projeção fosse ativada, a caravana seguiria por uma trilha na floresta no sentido norte. Então, iriam contornar o Rio Equidna que delimitava a fronteira entre Camlann e Faradin, passando perto de Nan’Deru e voltando no sentido sul em uma estrada quase reta. Assim, evitariam passar por caminhos mais óbvios e se locomoveriam apenas em territórios da Aliança.

Quando chegassem ao território de Vkstri, a formação mudaria. Utilizariam Kasias de ponta de lança e os outros formariam um círculo ao redor de Etáoin para que, caso encontrassem uma calamidade, deixassem Kasias para lutar com ela enquanto os outros fugiam com a garota. Ao menos esse tinha sido o combinado.

— Parem! – Sir Veras disse, levantando a mão com um punho fechado. – Algo está errado.

— Sir Veras? Qual seria o problema? – o Irmão Alfredo indagou com um toque de curiosidade.

— É a trilha na floresta, pois já devíamos ter a encontrado mais de uma hora atrás – Sir Veras resmungou, olhando para a posição do sol. – Se continuarmos seguindo por este caminho, seremos alvo fácil e passaremos pelos Pântanos de Agravão, o que atrasaria nossa jornada em pelo menos três dias.

— Tem mais uma coisa – disse Kasias, olhando para a floresta, mais especificamente para uma árvore seca. – Já passamos por aqui, estamos andando em círculo.

— Em círculo? Como? Estamos na maldita estrada real, porra. De onde você tirou isso? Acha que estradas dão voltas? – Sir Veras esbravejou.

— Observe... – disse Kasias, arremessando uma pequena faca na árvore seca, que fincou tremulando no tronco. – Vamos andar mais um pouco.

Sir Veras parecia ter entendido o que o rapaz estava tentando fazer, então assentiu com um olhar sério, enquanto o Irmão Alfredo olhava com confusão.

— Vamos ver se sua hipótese está certa, Matador da Besta – Sir Veras disse com sobriedade, coçando a espada com a mão esquerda. – Em frente.

Mais algumas horas de caminhada, e Sir Veras levantou a mão novamente. Ao seu lado direito, uma faca de arremesso estava cravada em uma árvore seca.

— Alguma das aberrações pode me explicar o que caralhos está acontecendo? – o cavaleiro branco perguntou desconcertado, olhando para Kasias e os gêmeos.

Kasias desceu do cavalo, e pegou a sua faca de arremesso fincada na árvore.

— Vejo duas explicações possíveis – disse ele, olhando para seus acompanhantes. – A primeira é que temos um ilusionista nos caçando, confundindo nossos sentidos e fazendo a gente andar em um trecho do caminho. Isso faz mudar nossa percepção espacial, fazendo a gente voltar pelo mesmo trecho novamente.

— Quão provável isso é? – perguntou Yuan, contornando a carruagem.

— Muito pouco, pois enganar uma pessoa sozinha dessa maneira já é difícil, mas enganar também 6 mais montarias... Se alguém fosse capaz disso já deveria ter nos matado há muito tempo, ou feito a gente matar uns aos outros.

— E qual a outra explicação? – Oshandra disse, sem sair da carruagem.

— Um campo delimitado de algo ou alguém... – Qin disse baixinho para a surpresa de Sir Veras.

— Como assim? Estaria, por acaso, me dizendo que o inimigo é poderoso o suficiente para nos colocar em um fodido campo delimitado sem que nenhum de nós perceba? Esse tipo de coisa funciona como um alerta para um legista experiente.

Kasias coçou a barba, pensando como que caíra em um campo delimitado. Não sentiu a presença de nenhum inimigo, nem ouviu o cântico necessário para ativá-lo, muito menos sentiu a influência da mente de seu usuário na realidade.

— Gente – todo mundo virou para a direção da voz de Etáoin. – Já era para estar escurecendo?

Todos se ajeitaram como se tivessem saído de um transe. Perceberam que não deveria nem ser metade do dia, mas o sol já sumia e o céu ficava com um aspecto crepuscular. Então, quase como se fossem treinados para agir em sincronia, todos, exceto Kasias, puxaram suas armas. O rapaz apenas chamou para junto de si a imensa Frnan e começou a desamarrar a lança com aparente tranquilidade.

— Alguma explicação para isso? – a voz de Sir Veras rompeu o silêncio, seu rosto iluminado pelo brilho dourado da espada.

Kasias não respondeu, pois ainda estava tentando colocar os pensamentos em ordem. Logo, Oshandra rodou o facão curvado com a mão direita e sacou uma arma parecida com um chicote com 4 fios. Cada ponto dos fios terminava em uma bola de ferro, como uma mistura de chicote com mangual. Ela ajeitou seu corpo para proteger Etáoin, que estava visivelmente tensa com a situação.

Enquanto a escuridão crescia a uma velocidade assustadora, Qin retirou de sua mochila um cajado muito maior que a própria mochila. Então, ele o fincou no chão com força, fazendo diversas bolas luminosas, como vagalumes, se desprenderam do cajado e rodearam a caravana. Já Yuan havia sacado as facas gêmeas que usava e havia pulado para cima da carruagem para ter visão de todos os lados. As montarias ficaram inquietas e Dorothy se “escondeu” perto de Kasias. Contudo, as luzes feitas por Qin pareceram confortar o coração de todos, e eles se sentiram mais calmos e focados. Todavia, um desespero crescia em seus corações.

— Bom, descartadas as duas outras possibilidades – a voz insegura de Kasias rompeu o silêncio, assustando os demais. – Estamos lidando com um inimigo que tem livre influência sobre o tempo e o espaço, podendo manipulá-los ao seu bel prazer.

No momento em que falou isso, o breu tomou conta da floresta. Se não fossem as luzes de Qin, não conseguiriam enxergar um palmo à frente deles.

— Que tipo de inimigo seria esse? – perguntou Oshandra, ainda focada. – Tem como matá-lo?

— Matá-lo? Temos que nos preocupar em fugir com o elixir. Nós nem mesmo saímos dos territórios do Monastério, e a fronteira de Camlann ainda está a cinco horas de viagem – disse agitado Sir Veras, com sua espada ficando mais brilhante à medida que suas palavras aceleravam.

— De fato, Sir Veras tem razão – disse Kasias preocupado e olhando em volta. – Se fosse possível fugir, invadiremos o território dele e estaríamos totalmente sob seu domínio.

— Dele? Dele quem? – Yuan perguntou, vasculhando a floresta com os olhos impacientes.

— Perdão, me expressei mal – Kasias ergueu a lança e olhou para a floresta. – Disto – resmungou o rapaz. – Estamos lidando com uma possível calamidade.

Ao final de suas palavras, luzes na floresta se acenderam em um local parecido com uma clareira, e cânticos irreconhecíveis e festivos começaram a ser ouvidos por todos. Então um calafrio percorreu a espinha de Kasias, e ele pensou: “mais uma vez, terei que enfrentar aquilo”.