Festa/Deus

O grupo seguiu a pé, embrenhando-se na floresta. Yuan ficou para trás cuidando das montarias e das provisões, assim como o Irmão Alfredo, enquanto o resto seguia na direção das luzes e dos cânticos. Quanto mais entravam na floresta, mais o conforto produzido pela luz do cajado de Qin diminuía e mais temerosos ficavam. Etáoin, que seguia no meio de sua escolta, estava visivelmente abalada. Ela segurava uma pequena adaga de prata, emprestada por Yuan, junto ao antebraço e seguia a passos curtos e incertos. Por outro lado, quem mais parecia tranquilo era Qin, que tocava uma música de sua terra em uma pequena flauta de bambu. Era como se fosse para anular a cantoria que vinha da floresta.

Kasias parecia ter diminuído de tamanho, pois estava pálido e suas olheiras cresceram. Oshandra não parava de olhar ao redor, receosa. Já Sir Veras usava a sua espada como um farol, e se agarrava ao escudo como se sua vida dependesse disso. Um mesmo pensamento passava pela cabeça de todos: “tão cedo? Um planejamento de meses foi destruído em meras 7 horas? Que tipo de destino é esse?”. Logo, estavam perto o suficiente para ouvir a cantoria bem e discernir as palavras que estavam sendo ditas.

RÁ, ELE VAI DESCER... LA LÁ LA RI LA

NOSSAS PLANTAS IRÃO FLORESCER, LA LÁ LA RI LA

DO INFERNO ELE NOS TIROU,

EI!

VAMOS APLAUDIR O NOSSO DEUS

POIS ELE É A VERDADE E A FERTILIDADE

VAMOS APLAUDIR

TODOS SAÚDEM NIDIDHRI!

EI!

ABENÇOADO SEJA NOSSO SENHOR

LA LÁ RI LA LÁ

A cantoria pareceu minar as energias dos viajantes, e nem mesmo a flauta de Qin podia ser ouvida no meio do barulho. Foi quando finalmente chegaram a uma enorme clareira que viram a origem das luzes e da cantoria.

Eles estavam em uma vila no meio da floresta, na qual casas de madeira estavam dispostas de maneira ordenada. Logo no meio, uma pequena torre indicava a presença de um governo central. Pessoas dançavam e bebiam pelos caminhos de uma praça, uma das duas que a cidade tinha. Um enorme bode de madeira pegava fogo, enquanto crianças arremessavam algo nele, rindo e se divertindo.

Sir Veras, que estava na frente, estendeu um braço na horizontal, impedindo os outros de se aproximarem da clareira. Ele estava vestido com uma armadura completa, logo fazia mais barulho que desejava. Mesmo assim, a cantoria os deixava passar despercebidos.

— Deveria ter um vilarejo aqui? – cochichou, o cavaleiro branco.

— Aparentemente não – respondeu Kasias, também cochichando. – Não tinha nada no mapa que indicasse isso.

Com um grito abafado de surpresa, Etáoin deixou cair a adaga no chão. Seus olhos estavam fixos em algo à sua direita. Então, todos se viraram para olhar, no meio da floresta, uma pequena menina de cabelos marrons cacheados e sardas pelo rosto os encarava com surpresa. Ela estava cheia de manchas de sujeira no seu vestidinho cinza. Logo, ela deixou cair uma boneca de pano que segurava e, com a boca arregaçada e olhos lacrimejando, saiu correndo e chorando na direção da vila.

— Forasteiros! Forasteiros! – disse gritando em uma voz esganiçada.

Um grupo de adultos se amontoou ao redor dela e tentaram acalmá-la. Ela apontava para a floresta e chorava. Logo após, mal tiveram tempo de se esconder quando sentiram vários pares de olhos em sua direção. A cantoria parou e ambos os grupos se encararam.

— Não ataquem – disse entre os dentes Sir Veras. – São só civis...

Kasias já havia puxado uma faca de arremesso e planejava acertar as costas da criança antes que ela os dedurasse. Contudo, Etáoin intercedeu, aparecendo no seu campo de visão.

— Está maluco? Iria matar a garota?

— Antes ela que você – disse cerrando os dentes. – Apenas uma de vocês é necessária para que ocorra a paz entre as potências.

— Não sabemos de nada ainda – murmurou Oshandra. – Nem se são inimigos.

— Antes, matar o filhote do que esperar a mãe chegar para protegê-lo – argumentou Kasias com o olhar fixo.

— Calem-se e guardem suas armas, eles estão vindo – Sir Veras disse com firmeza.

Todos obedeceram e saíram do meio dos arbustos, receosos e tensos. Esperavam qualquer sinal de conflito.

— Forasteiros? – uma voz masculina e um pouco jocosa irrompeu estrondosa. – Ah, deve ser uma graça de Ndindhri, que nos enviou companhia depois de tanto tempo. Bem-vindos, viajantes! Sou Orpheu, dono da estalagem e taverneiro de Vilalegre. É um prazer inenarrável recebê-los neste dia santo, o dia do festival da colheita.

A alegria e a receptividade de Orpheu pareciam ter desarmado o grupo, que não esperava por isso.

— Prazer, senhor Orpheu – disse o cavaleiro com uma voz elegante, e fazendo uma leve mesura. – Sou Sir Veras Dwayne, e na minha companhia temos a belíssima princesa Oshandra Mentelophep, de Nan’Deru; Qin Li Shang, o vigésimo primeiro príncipe do império Xhun; Etáoin, filha de ninguém; e Kasias, a criança nascida das estrelas.

Orpheu parecia estar confuso, como se não conhecesse algumas das palavras ditas, ou estivesse tentando relembrar seu significado. Então, ele coçou seu comprido bigode, grosso e marrom.

— Entendo que do lado de fora vocês são importantes, mas não precisam usar sobrenomes aqui. Em Vilalegre todos somos iguais e, ao mesmo tempo, não somos nada em comparação ao grande Ndindhri.

No momento que ele disse esse nome, todos os seus acompanhantes fizeram um sinal cruzando as mãos ao redor do peito. Eles giraram os pulsos em sincronia, revirando os olhos levemente e olhando para cima em êxtase quase sexual. Isso fez os viajantes se entreolharam, enquanto Sir Veras torcia levemente o nariz e o lábio em uma expressão de nojo.

— Venham forasteiros – Orpheu disse feliz. – Venham festejar e compartilhar da glória de nosso deus.

Passados alguns minutos, todos estavam conversando na taverna com Orpheu. Ele explicava sobre as glórias de seu deus, e detalhava como ele havia curado sua cegueira e sua infertilidade. Algumas crianças, filhos do próprio taverneiro, corriam pelo local: Miguel, Samuel e Gabriel Os nomes das crianças foram uma inspiração do próprio Ndindhri, que havia aparecido em sonho para Orpheu. O deus mencionou esses três nomes que significava que eram os guardiões e os mensageiros do divino.

— Esperem um pouco, caros viajantes. Vou buscar algumas bebidas e lhes apresentar minha esposa – o taverneiro disse espalhafatoso. – A primeira rodada é por minha conta.

Quando deixados às sós, se entreolharam nervosos. Eles tinham muito a dizer e se questionar, mas não sabiam por onde começar.

— Esse tal de Ndindhri... Alguém já ouviu falar desse deus? – começou Oshandra.

Ao ver que o resto balançou a cabeça em negação, ela praguejou baixinho.

— Provavelmente é a Calamidade – disse Qin, mastigando um pernil de frango.

Seus companheiros haviam recusado, educadamente, a comida ofertada pelo taverneiro, mas Qin achou um absurdo a recusa. Assim, ele se propôs a comer por todos, dizendo que não se recusava a gentileza de ninguém com um sorriso na boca e uma gula no olhar.

— Qin, se estiver envenenada? – Kasias sussurrou preocupado.

— Relaxa, sou imune a venenos e, qualquer coisa, posso curá-los – disse Etáoin, o elixir da vida. – Além do mais, eles parecem ser gente boa.

Dizendo isso, pegou um pouco do pão quentinho e mergulhou-o no molho de carne.

— Aqui está! Mariya, minha esposa – Orpheu chegou alegre. – Diga olá para os forasteiros, Mariya!

Ao contrário do corpulento Orpheu, Mariya era franzina, porém saudável, com bochechas rosadas e um cabelo escuro quebradiço. Ela tinha sobrancelhas grossas e bem acentuadas, e deveria ser uns 10 ciclos mais jovem que seu marido. No entanto, o que mais chamava atenção na jovem era a enorme barriga redonda que exibia com orgulho, indicando que um quarto filho viria para agitar ainda mais a casa.

— Prazer, viajantes – disse com uma voz de quem acabara de acordar, e fez uma mesura. – Uma honra receber viajantes depois de... Tanto tempo.

O grupo se apresentou à moça um por um. Ela acabou se sentando junto a eles, junto ao taverneiro, em uma grande mesa redonda de carvalho.

À exceção de Kasias, o qual vestia suas armas que ficavam escondidas nos acessórios, todas as armas do grupo foram guardadas em um armazém próximo à estalagem, para o desgosto de Sir Veras. Também não confiscaram a bolsinha de Qin, que parecia inofensiva a olhos não treinados. E, do lado de fora, a cantoria e a algazarra continuavam.

— Então viajantes, aonde estavam indo para terem passado por aqui?

Antes que Sir Veras abrisse a boca novamente e revelasse mais detalhes das suas identidades, Oshandra prontamente respondeu.

— Nan’Deru, pois estamos indo negociar algumas especiarias.

— Ah, sim... Nan’Deru... – disse Mariya como se estivesse tentando lembrar qual local era aquele. – Lembro-me, é aquele que possui as florestas mais altas e os rios mais caudalosos. E onde estão essas especiarias que vão negociar?

— Deixamos do lado de fora da floresta, senhorita, com o irmão de Qin, Yuan e o Irmão Alfredo, da ordem de Khan – Sir Veras Dwayne respondeu, antes que alguém pudesse calá-lo.

— Ah, sim. Então é melhor buscá-los lá. Vamos aproveitar o festival e compartilhar suas especiarias conosco, já que não vão utilizá-las mesmo – disse Orpheu, sorridente.

— Como assim, senhor Orpheu? Por que não vamos precisar mais delas? – Etáoin inquiriu pensativa.

— Porque vocês foram abençoados com a graça de Ndindhri – Mariya disse rindo. – Regozijem-se, pois não passarão mais fome, não sentirão o pesar da velhice, nem o luto da morte e nem a fraqueza da doença – disse, olhando feliz para Orpheu. – Aqui viverão para sempre para cultuar nosso deus.

RÁ, ELE VAI DESCER... LA LÁ LA RI LA

NOSSAS PLANTAS IRÃO FLORESCER, LA LÁ LA RI LA

DO INFERNO ELE NOS TIROU,

EI!

VAMOS APLAUDIR O NOSSO DEUS

POIS ELE É A VERDADE E A FERTILIDADE

VAMOS APLAUDIR

TODOS SAÚDEM NIDIDHRI!

EI!

ABENÇOADO SEJA NOSSO SENHOR

LA LÁ RI RI LA LÁ

A cantoria parecia ter ficado mais alta enquanto eles sentiam a chuva começar a cair e a pingar no teto da estalagem. O cheiro doce de orvalho preenchia o ar, e o casal ao seu lado estava repetindo os gestos que viram do lado de fora da estalagem com os companheiros de Orpheu. Ao longe, uma criança gargalhava, sabendo que sua infância nunca teria um fim.