Kasias olhava para os três corpos aos seus pés. Samuel, Gabriel e Miguel haviam lutado bravamente, mas os três juntos não chegavam ao nível de Akel’thut, o que não significava que foi fácil. Pelo contrário, diferentemente da besta que matara, essas três calamidades possuíam um intelecto mais apurado, usando de chamarizes, de truques e de subterfúgios. Além disso, Kasias experimentou o gosto da morte por duas vezes neste embate, mas seus ferimentos já estavam se fechando. Embora ele soubesse que as cicatrizes seriam deixadas e, de tempos em tempos, a dor fosse voltar.
A natureza do território do rapaz o permitia atacar sem se preocupar muito com a defesa. Em seu campo delimitado, a cada golpe que acertava em seu inimigo, ele tinha direito de anular um ataque vindouro. Infelizmente, isso só funcionava em lutas em que Kasias batalhava sozinho contra uma quantidade maior de inimigos...
Pouco a pouco, viu a membrana da realidade voltando ao normal, e a floresta que circundava o Monastério ia ficando cada vez mais nítida. Viu Sir Veras e Yuan olharem assustados para ele, enquanto Qin intercedia e levava o casal para dentro da casa. Para os demais, passou-se apenas um instante, enquanto para Kasias durou quase um dia em sua realidade particular. Os dois homens olhavam com angústia para as feridas do rapaz e suas roupas maltrapilhas e rasgadas. Eles alternavam o olhar para os corpos das calamidades, finalmente entendendo o que aconteceu. Então, viram o rapaz cambalear e se apoiar na lança, enquanto Magnun vinha resgatá-lo. Após um minuto de choque, Sir Veras correu na direção do rapaz e tentou fechar os ferimentos que ainda não haviam se curado.
Yuan partiu para a floresta para procurar por Etáoin, enquanto Qin olhava ao redor, procurando ajuda para cuidar de Oshandra, que aparentemente havia rachado o crânio. Além de Mariya que estava em trabalho de parto, enquanto Orpheu estava boquiaberto e murmurando: “não foi isso que ele prometeu... Não foi isso que ele prometeu...”.
Os cidadãos de Vilalegre ainda estavam estáticos, como se estivessem congelados. Suas auras visíveis para todos desta vez, se apagando e se mesclando. Então, em um estalar de dedos, todos eles se liquefizeram e foram sugados para a floresta em um banho sangrento. Contudo, suas auras continuavam lá, e mais uma se juntou a eles: a do Irmão Alfredo.
Uma forte tempestade estava se formando e encobrindo os céus de cinza. Barulhos de trovões e o lampejar dos raios tomavam o assoalho terreno. A noite caiu em segundos, tornando-se cada vez mais escura, e as primeiras gotas de chuva começaram a cair na clareira. Os vestígios da vila tremeluziram e sumiram, à exceção da casa de Orpheu, onde se podia ouvir os gritos de agonia de Mariya, com suas primeiras contrações.
— Kasias, fale comigo – Sir Veras gritava em meio à chuva, mas o rapaz fechava os olhos e tentava dormir em meio à confusão. As pálpebras pesadas em meio a gritaria e ao clamor da natureza.
Yuan voltava da floresta confuso, com Etáoin em seus braços. Ele viu Kasias retirando um anel do dedo e o entregando à Sir Veras, enquanto sussurrava algo. Yuan apertou o passo e levou Etáoin para a casa de Orpheu, quando sentiu algo quente em sua barriga. Então, ele levou a mão até lá e sentiu a presença de algo, era a faca prateada que deu à Etáoin. Ela estava cravada em seu intestino, assim ele cuspiu sangue e caiu, olhando para a mão da garota repleta de sangue enquanto retirava a faca. Em meio a lama, pôde ver os olhos inteiramente brancos de Etáoin que o fitavam sem expressão alguma, enquanto ela levantava a perna. Com um chute desproporcional ao tamanho e à força da garota, Yuan foi arremessado em direção da casa de Orpheu, quebrando a porta de madeira e quase caindo em cima de Mariya, que estava deitada no chão perto da entrada. Qin gritou de pavor e susto, enquanto Mariya não conseguia dizer nada com os olhos arregalados. Já Orpheu colocava as mãos na cabeça e chorava.
Vendo tudo, Sir Veras puxou sua espada e ficou entre Kasias e a garota, tentando decidir quem ele deveria ajudar primeiro.
— Etáoin, o que está fazendo? – o cavaleiro branco gritou. – Já acabou, as calamidades morreram.
Sem dizer nada, ela avançou para a casa de Orpheu lentamente. Seus pés descalços na lama e seu vestido, agora branco, totalmente sujo de lama. Ela usava uma coroa de flores que repousava sobre sua cabeça, as quais murchavam conforme ela andava. Assim, Sir Veras chegou à conclusão de que a garota já estava morta, e o que restava ali era Ndindhri. Ele praguejou em voz alta e assobiou, chamando sua égua branca e deixando Kasias com Magnun. Subiu em seu elegante cavalo, e sua espada começou a brilhar o suficiente para parecer que o sol estava nascendo no meio da clareira.
— Avante! – gritou seu brado de guerra, enquanto rumava em direção a garota. – Sinta a lâmina dos deuses verdadeiros, Demiurgo!
Sem se virar na direção dele, Ndindhri seguiu rumo à estalagem, enquanto uma sombra enorme encobria e engolia o cavaleiro com seu cavalo, fazendo com que sua espada se apagasse em meio à escuridão.
Qin pegou um bastão ornamentado e o arremessou para cima. No ar, ele se dividiu em seis e cada um deles caiu ao redor de Ndindhri, fazendo o falso deus hesitar por um momento, desconfiado. Então, um pó amarelo surgiu do chão aos pés da Garota/Deus. Logo, vários raios caíram nos bastões jogados por Qin, que forçaram o ser lá dentro a se ajoelhar por um instante. Foi o tempo necessário para Qin puxar um arco de sua bolsa e engatilhar uma flecha, a qual brilhava fracamente. Então, ele apontou a flecha para a calamidade, que tentava se levantar com esforço. Qin soltou a flecha, que riscou o espaço entre eles, atingindo em cheio o corpo da garota. A flecha explodiu ao toque, gerando um clarão forte o suficiente para deixarem as estrelas sem brilho. Em milésimos de segundo, um som forte e estrondoso veio em seguida, quebrando as janelas da casa e assustando ainda mais o casal lá dentro.
Em choque, Qin observou a garota ainda de pé, com um sorriso no rosto e sem nenhum arranhão em seu vestido. Logo após, Yuan apareceu entre as sombras e surpreendeu Ndindhri, enfiando uma faca em suas costas. A criatura soltou um berro de dor, locomovendo ar o suficiente para arremessar seu agressor a alguns metros. Contudo, o deus continuou sua marcha, enquanto Qin ajoelhava em choque. Seu corpo tremendo de medo, sabendo que não havia nada a se fazer, pois o que quer que fosse aquilo, estava em um patamar muito mais elevado do que poderia compreender. Ele se sentia tentando segurar um maremoto com as próprias mãos. De repente, uma luz forte cortou a escuridão em direção aos céus, alcançando e dissipando as nuvens de chuva.
Sir Veras estava de pé ao lado do corpo de seu cavalo, a armadura destroçada e vários ferimentos ao redor do corpo. Contudo, estava com um olhar focado e resoluto, e, em suas duas mãos erguidas, segurava a espada sagrada para cima, cuja luz dourada atingia os céus e cessava a chuva. Então, Ndindhri parou sua caminhada e se virou para Sir Veras. O deus tinha um olhar de excitação em seu rosto, enquanto abria os braços pronto para receber o golpe.
As vistas do cavaleiro branco estavam se escurecendo, mas sua mente ainda sabia o que fazer. Era algo necessário: “esqueça a missão, o que há de ser feito aqui salvará o mundo”. Logo, em um grito de angústia, de dor, de desespero e de esperança, o cavaleiro desceu a espada com força na direção do corpo da garota, rasgando o próprio céu. Em um clarão, a espada atingiu Ndindhri que gritou em agonia, enquanto a segurava com as duas mãos. A lama sob seus pés esquentava tanto que virou argila, prendendo seus pés.
Qin ouviu um gemido de alívio vindo de trás. Era a voz de Mariya, pois o bebê parecia ter nascido, embora não houvesse nenhum barulho de choro. Algo em sua mente dizia “não olhe para trás, ou vai se arrepender”. Qin ouviu o barulho de algo caindo no chão. Era um corpo, provavelmente de Orpheu. Sangue molhou seus pés, e o travou na mesma posição em que estava. Sem coragem de ver o que aconteceu e com as mãos tremendo, pegou a flauta e começou a tocar uma música que o lembrasse de casa. Logo, sentiu a presença de algo, ouviu passos, mas não ouvia mais a respiração de Mariya, nem qualquer tipo de respiração. Ele estava lentamente se virando para trás quando ouviu o barulho alto de algo se quebrando. Seus olhos se arregalaram quando viu o cavaleiro parado, em choque, olhando para os fragmentos despedaçados de sua arma.
— Uma bela arma – disse a voz de Etáoin. – Mas não foi feita para as suas mãos. Se fosse alguém justo e bom, teria acabado comigo e com o elixir – deu um sorriso. – Mas não é seu caso, não é Veras?
O cavaleiro estremeceu e botou as mãos no ouvido, tapando os ruídos de fora. Todavia, as palavras começaram a ecoar dentro de seu crânio.
— Ou devo te chamar de “O Demônio da Capital”? – a voz debochada de Etáoin podia ser escutada por todos. – Achou mesmo que seus pecados estariam escondidos de um verdadeiro Deus? Embora sua falsa religião e igreja tentem acobertar seus crimes, as famílias das garotas estupradas e mortas ainda choram e procuram vingança.
Uma garota, que parecia ter passado por, no máximo, 13 ciclos apareceu atrás do cavaleiro, sorrindo de forma cadavérica.
— Foi bom? Me violar? Escutar o meu choro e meu desespero? – ela perguntou com uma voz rouca, devido a traqueia quebrada. – E as outras seis meninas? Com elas foi bom?
Ndindhri se aproximou sorrindo do cavaleiro sujo de lama e sangue. Agachou-se ao seu lado e puxou a cabeça dele para forçá-lo a olhar em seus olhos.
— Essa garota – disse, apontando para o próprio corpo. – Me ensinou muito quando nos tornamos uma mente. Agora sei como os homens pensam e agem, e como suas vidas são efêmeras e sofridas – ele sorriu. – Mas eu compartilhei meu conhecimento com ela. Como você acha que ela se sentiu quando soube o que fazia a noite enquanto pensava nela? Dos seus planos de violá-la antes de entregá-la para a feiticeira?
O cavaleiro começou a chorar de vergonha e desespero. Suas pernas bambearam, e ele fechou os olhos para não enxergar o rosto da garota que ele havia dito que protegeria.
— Em homenagem a ela, que me ensinou tanto e agora é parte de mim, lhe darei sua punição! – com um estalo de dedos, mais cinco garotas de idades próximas apareceram ao redor do cavaleiro e começaram a se aproximar dele.
— Venha comigo. Você vai gostar, não vai doer nada. É algo que os adultos fazem. Não quer se tornar um adulto? – cantarolavam, enquanto rodeavam o seu corpo estirado ao chão em posição de desistência. – Vai ser rapidinho... – disseram enquanto pulavam nele.
Qin viu as garotas se amontoando em cima do cavaleiro, mesclando-se a ele e tornando-se uma armadura negra como o vazio. Em um grito de dor e de desespero, o cavaleiro fugiu para a floresta, tentando respirar na sua nova e dolorosa armadura.
— Quanto a vocês – começou Ndindhri. – Só me entreguem o bebê que os deixarei em paz. Nunca tiveram nada além de sentimentos positivos pela minha hospedeira, então não vou julgá-los. Apesar de... – olhou para Kasias. – Bom, a punição dele já foi decidida, e não depende de mim.
De repente, Ndindhri congelou, em choque, olhando para algo além de Qin.
— Mas que merda é...
Qin sentiu um toque suave em seus ombros, e reparou que estava em cima de um círculo de flores. Elas cresciam e iluminavam a noite, trazendo o aroma de sua terra, nostalgia e felicidade. Então, ele olhou para o seu lado e viu uma figura com duas vezes o seu tamanho. Ela estava parada ao seu lado, humanoide, mas totalmente coberta por um tipo de tecido amarelo bem brilhante. Ele não conseguia ver seus pés, embora o tecido se transformasse em coisas parecidas com tentáculos e emitisse um cheiro de algo bem diferente, algo que o próprio Qin não conseguia identificar. Então, a mão, que não era mão, soltou seu ombro, e sentiu uma sensação de paz que nunca sentira antes. Observou a figura alta, e totalmente coberta, caminhar em direção a Ndindhri. Flores nasciam aos seus pés e atraiam todos os animais da floresta para caminharem com ele.
— Olá... Pai – disse com uma voz suave.
— Mas o quê? Não foi isso que planejei. Orpheu deveria... – Ndindhri gaguejou.
— Não sabe de tudo, assim como eu, e ninguém – disse calmamente a figura amarela. – Deveria ser seu sucessor, mas algo interferiu em seus planos.
— Não entendo, por que você...
— Amor – disse rindo. – Algo que não estava em seus planos. Quem diria que algo tão humano poderia nascer entre o convívio de uma alma perdida que não sabia que morreu. Além de uma boneca de barro criada por ti para lhe fazer companhia.
— Quê? – Ndindhri inquiriu. – Algo tão...
— Singelo – interrompeu a figura de amarelo. – O suficiente para alterar o ritual que nasci. O aparecimento do ser perfeito aos seus olhos se tornou o ser perfeito aos olhos dos humanos. Estou aqui para saciar o que buscam.
— Eu sei o que eles buscam: razão, bens materiais e...
— Salvação – disse a figura de amarelo. – Pois eu sou o caminho, sou a razão e sou o herdeiro de tudo que existe nesse mundo. E devo cumprir meu papel.
— Não há razão, nada existe com motivo. Vamos todos... – Ndindhri rangeu os dentes.
— Morrer... Sua resposta foi fraca, pai. Ama tanto os humanos ao ponto de lamentar a falta de sentido em sua existência, tentando unir todos em um ritual que afetaria seu destino e o deles – interrompeu mais uma vez. – Agiu como um pai superprotetor que engole e cerceia as liberdades de seu filho. Seu egoísmo não o deixou perceber a solução ideal para eles.
— Não há solução, não há caminho, não há verdade nem sentido – esbravejou Ndindhri.
— Então se torne eles – respondeu sem hesitar. – Seja o Messias, que os guie a encontrar seu próprio sentido.
— Eu não... – Ndindhri parecia ter murchado.
— Não pode. Eu sei. Foi por isso que nasci – o Messias encostou a “mão” na cabeça de seu pai e o abraçou. – Descanse. Deixe a garota encontrar seu caminho, e sirva como sua ferramenta.
O corpo de Etáoin caiu, como se estivesse dormindo. Messias a pegou em seus braços, levando-a em direção a Qin e deixando ela dormindo ao seu lado. Com um assobio, Magnun chegou ao seu lado, carregando Kasias, Dorothy e Oshandra. Ele afagou os animais e repousou o corpo dos guerreiros ao lado de Qin.
— Eles estão vivos – disse a figura em amarelo. – Cuide bem deles.
Virou as costas e foi caminhando para a floresta, enquanto Yuan retornava para perto de seu irmão.
— Espere – gritou Qin. – Tem muito o que ainda desejo perguntar.
— Esse não é meu trabalho – disse rindo. – É o dele – respondeu, apontando para o andar de cima da estalagem.
Qin e Yuan olharam para cima. Havia um senhor de idade que acenou para eles no segundo andar e, com um gesto, pediu para que trouxessem os feridos e subissem. Então, os irmãos se entreolharam surpresos, e entraram na casa carregando seus companheiros de viagem. Enquanto isso, o Messias entrava na floresta e sumia de suas vistas.