O velho havia posto Kasias, Oshandra e Etáoin em camas separadas. E, com a ajuda de Qin e Yuan, tratava das feridas de seus convidados enquanto fumava um cachimbo de carvalho com um fumo de cheiro peculiar. Ele havia dito aos irmãos para acomodarem os feridos primeiro, pois explicaria tudo para eles depois. Assim que acomodaram os enfermos e a adrenalina baixou, Yuan colapsou com seus ferimentos e teve uma febre leve, mas que o incapacitou, deixando Qin sozinho com o homem mais velho.
— O que deseja saber? – disse, tragando um pouco do fumo.
— Primeiramente, quem é você? – Qin perguntou com serenidade, enquanto fazia um pouco de chá para ambos.
— Sou Aravon, filho primogênito de Orpheu. Isto é, do tempo em que ele estava vivo.
— Você não está meio velho para ser o filho dele? – Qin perguntou automaticamente, esquecendo os bons modos.
— Há milhares de anos, quando a conjunção política era bem diferente da atual, esse local era parte do maior império que esse mundo já viu – disse, ignorando a pergunta.
— Você fala do Império Thenkar – concordou Qin. – Essa não é uma informação nova.
— Havia um garoto que não tinha nome nem casa e morava na antiga capital, a qual hoje são só ruínas – continuou sem se importar com as palavras de Qin. – Desde que ganhou consciência, ele lutava para sobreviver, visto que não tinha parentes ou amigos, nem mesmo sabia falar ou compreendia o que os outros diziam. Se alimentou de ratos, insetos e comida podre, vivendo uns bons 6 ciclos em relativa paz. – O velho fez uma pausa. – Foi quando veio o colapso. Jaurush IV, imperador de Thenkar na época, veio a falecer misteriosamente sem deixar herdeiros – tragou o cachimbo sem se importar com olhar impaciente de Qin. – Cada um dos pretendentes ao trono, seus subalternos, amigos ou parentes tinham um clamor à coroa, cada qual com suas justificativas, exércitos e aliados. Então, tomaram parte do império para si, deixando o antes glorioso Império Thenkar desmantelado em cinco grandes reinos que lutavam entre si.
— O que isso tem a ver com... – Qin interrompeu com uma voz irritada.
— Tudo ao seu tempo, o contexto é importante – disse Aravon dando mais uma tragada. – O pobre rapaz, já tendo passado 8 ciclos nessa época, residia na parte do império que se subdividiu e chamava-se Orlança. Nisso, conheceu uma família de viajantes que se apiedou dele e o adotou. Ensinaram-no a falar e os costumes de sua terra natal, a mesma que a sua, o império Xhun. Na época, mal havia sido unificado e engatinhava como um bebê no meio de gigantes. Quando digo isso, espero que entenda o que quero dizer, não é? Você conhece a história.
— O extermínio... – disse com pesar.
— Por algum motivo, o ser humano nasce com a tendência de odiar e de temer aquilo que lhe é diferente, e com o seu povo não foi diferente – o velho continuou. – Após um tratado de paz entre Xhun e Prindance, outra subdivisão de Thenkar em guerra com Orlança, o rei de Orlança, Linus I, outorgou uma lei de limpeza racial. Assim, denominou todos de Xhun como inimigos da nação e perseguidos pela Lei.
— Aceita? – perguntou Qin, servindo chá para Aravon, que recusou com um menear.
— Não preciso – sorriu enigmaticamente. – Não é preciso te dizer o que aconteceu com a família de nosso querido órfão, não é mesmo? Em resumo, o receio virou desconfiança, a desconfiança virou medo, o medo virou a animosidade, e a animosidade tomou forma pela violência. Os integrantes da gentil família, o pai, a mãe e as duas filhas gêmeas, foram amarrados por cordas e arrastados por carroças até o centro da cidade. Lá encontraram um triste fim sob o cadafalso. – Ele estremeceu e deu mais um trago no cachimbo, como se fosse afastar velhas lembranças. – Nosso querido órfão foi inocentado do crime de ser inimigo da nação, mas foi julgado como cúmplice dos usurpadores de Prindance. A lógica por trás disso? Não sei, pois apenas o velho rei Linus sabia. Assim, o menino foi condenado à prisão preventiva, que só terminaria após o fim da guerra. – Parou um tempo, contemplativo, esperando alguma reação de Qin, o qual se mostrava mais interessado na história e menos impaciente. – O que o alto escalão do poder de Orlança não esperava era que a informação da prisão da criança se espalharia, e a rainha de Prindance, Vanushka e ex-esposa do rei Jaurush IV, usasse uma estratégia tão... – fez uma pausa. – Pouco convencional, espalhando a informação entre seus súditos em uma propaganda negativa do reino de Orlança. Além de declarar o nosso órfão, a quem foi dado o nome de Orpheu (o sonhador na língua antiga), como cidadão honorário de Prindance. Ela também inventou que ele era o filho perdido de Jaurush com a própria Vanushka, culpando o governo de Orlança de ter prendido para evitar que o mesmo se apossasse dos reinos em guerra e fizesse um acordo de paz. Isso fez com que a opinião pública voltasse contra o rei Linus.
— E o que aconteceu com ele? – perguntou Qin, finalmente entendendo para onde caminhava a história.
— Em uma revolta nas portas do palácio real de Orlança, um espião de Prindance, com a ajuda de um infiltrado de Xhun que servia como guarda-costas da princesa, facilitou a entrada dos aldeões revoltosos no palácio. Deixou-os sozinhos com os 3 filhos de Linus.
Ele fez um sinal com as mãos em garra que puxavam energias ruins dos seus pés até a cabeça. Qin identificou como um costume antigo do Império de Thenkar.
—Em fúria, os aldeões não tiveram pena das crianças. Eles as lincharam e as desmembraram, espalhando seus órgãos internos pelo pátio e fincando suas cabeças em estacas – o velho fez uma pausa. –O rei, ao ver tudo aquilo acontecendo, simplesmente forçou a rainha, sua esposa, a beber de um veneno mortal que garantiria uma morte indolor. Então, ele calmamente abriu a janela de seus aposentos e se jogou no pátio, morrendo instantaneamente.
— E Orpheu? O que aconteceu com ele? – perguntou Qin, terminando seu chá e beliscando a xícara que havia reservado para Aravon.
— Enquanto isso, Orpheu, sem saber de nada que estava acontecendo no mundo exterior e tendo passado 8 ciclos dentro da sua prisão, escutou apenas gritos vindo do palácio real e uma multidão cantando algo em uníssono. – o velho fez uma pequena pausa. – Mas a rainha Vanushka, depois de aproveitar o caos para invadir e dominar Orlança, tinha um problema em mãos – continuou Aravon. – Ela havia marcado um casamento com um príncipe de Xhun para unificar os três reinos, mas, segundo as informações que ela impulsivamente falsificou, Orpheu era o verdadeiro descendente do trono. Isso fez com que ela tivesse que bolar uma alternativa para lidar com o problema. Assim, por ter passado uma grande quantidade de tempo vivendo na prisão e sabendo se virar desde a infância, os assassinos enviados pela rainha não conseguiram dar cabo nele – ele deu mais um trago no seu cachimbo que parecia interminável. – Após fugir dos dois profissionais do extermínio, conseguiu aproveitar o caos que estava no reino e fugiu. Mesmo ferido, ele foi para a floresta que circundava a capital – ele fez um gesto para a janela. – Essa que vê do lado de fora.
— Já entendo aonde quer chegar... – Kasias murmurou na porta do quarto.
Os dois homens olharam para o rapaz ferido e encostado no batente da porta. Bandagens cobriam seu tronco e manchas de sangue por toda parte. Qin fez menção de se levantar para ajudar, mas Kasias negou, levantando a mão. Ele se sentou, com um gemido de dor, no sofá ao lado de Aravon.
— Não precisam me explicar nada. Ouvi e vi tudo ao pegar emprestada a perspectiva de Qin – disse, servindo-se de um pouco de chá. – Mas tem uma coisa que não bate nessa história.
— Sei do que está falando, mas já vou chegar lá – Aravon respondeu com um sorriso. – Nessa floresta, conheceu uma família de refugiados: uma mãe viúva e suas duas filhas, uma delas com idade próxima a Orpheu, e a outra ainda muito jovem para se desposar. Ele viveu com eles por um tempo, sustentando-as com pequenos trabalhos de segurança, até que montou uma pequena estalagem para os viajantes que passavam pela estrada. Ela estava recém-aberta em função da unificação de Orlança e Prindance.
Deu um longo trago no cachimbo, que curiosamente não parava de queimar e não acabava o fumo, e suspirou.
— Após a morte da mulher que o recebeu em sua casa, Orpheu desposou a filha mais velha, Mariya, e arranjou para que a mais nova se casasse com um açougueiro que sempre passava por lá. As pessoas foram se assentando na estalagem, então construíram habitações, campos arados, locais de troca, até que foi fundada Vilalegre. – Aravon continuou sua narração. – Como fundador e líder da vila, Orpheu pôde experimentar, pela primeira vez, a felicidade ao lado de sua esposa, Mariya, e seu filho vindouro, Aravon – gaguejou um pouco a contar a última parte. – Doze ciclos se passaram, e um oficial do reino veio condecorá-lo como fundador da vila e lhe garantir os direitos de proteção a ela. Assim ele tinha de fazer um juramento para o rei Nivus I, filho do casamento de Vanushka com o príncipe Lan Li Mei, de Xhun. Para o infortúnio de Orpheu, esse mesmo oficial foi ordenado para matá-lo e falhou. Mas como o oficial não havia demonstrado reconhecê-lo, ele ficou relaxado e decidiu que iria continuar mantendo as aparências como o fundador de Vilalegre. – Aravon fez uma pequena pausa e logo retomou. – Pouco tempo depois de ter mandado Aravon, seu filho, para servir de aprendiz com um ferreiro na capital, a comitiva do rei Nivus I apareceu novamente em Vilalegre e exigiu que os moradores lhe entregassem Orpheu para ser julgado como fugitivo e por ter, como diziam eles, abandonado suas responsabilidades reais. Como ele era muito querido na vila, o povo se recusou – ele deu mais um trago no cachimbo, enquanto reparava que os rapazes estavam totalmente investidos na história. – Então a comitiva do rei botou fogo à vila, e matou todos aqueles que não conseguiram fugir, incluindo Mariya, que estava grávida do segundo filho de Orpheu. Arrasado por suas perdas e vendo todos aqueles que amava morrerem em vão, ele atacou a comitiva e tirou sangue do próprio rei. Mas foi morto no local pela guarda real.
Fez uma pausa, como se estivesse terminado a história, mas nenhum dos rapazes acreditou que ela havia chegado ao fim. Então, Aravon suspirou e deu mais um trago no cachimbo.
— Mas ódio e ressentimento não são coisas que acabam simplesmente com a morte, eles duram de maneira perene. As almas dos aldeões ficaram vagando pelo local, incluindo a do filho, Aravon que, sem suportar o próprio destino, se enforcou na vila que cresceu, deixando filha e esposa para trás – ele fez mais uma pequena pausa. – Em um tormento profundo, a alma de Orpheu continuou consciente por milhares de ciclos, vendo e se lamentando pelos seus companheiros que se sacrificaram por ele e vagavam em loucura pela floresta. Até que um dia, por razões desconhecidas, algo mudou, e as calamidades, wogans e outros seres de planos diferentes começaram a aparecer nesse mundo. Entre eles, apareceu Ndindhri, que não possuía forma física, mas tinha influência sobre a própria realidade. Ndindhri encontrou a alma de Orpheu e propôs um acordo: em troca de comandar as almas e de atrair o elixir da vida para o local, ele teria sua vingança sobre a humanidade que tanto o rejeitou. Tomado pelo peso da morte e pelo tormento da semivida, Orpheu recusou, mas pediu apenas sua esposa e filho de volta, em um paraíso sem dor, sofrimento ou miséria.
“Ndindhri aceitou de boa vontade, mas como não compreendia os anseios humanos, fez as coisas de seu jeito distorcido: como a alma de Mariya já havia partido há tempos, pediu para que Orpheu fizesse uma escultura de barro da própria. Ali ele deveria depositar todas as memórias que tivessem juntos, fazendo a escultura tomar vida. Apesar de não ser Mariya e possuir apenas o que Orpheu sabia sobre ela e nada mais, ele ficou satisfeito com isso e pediu para Ndindhri trazer dessa vez seu filho de volta. Como a alma de Aravon ainda estava presa à floresta foi mais fácil, mas, por algum motivo, a minha alma – admitiu finalmente que a história se tratava sobre ele. – Rejeitava um corpo físico, provavelmente por ter optado por perder o próprio. Então me deixou de guardião de Orpheu, fazendo com que me comunicasse com ele em sonhos e cuidando do seu estado mental”.
“Porém, ao longo de centenas de ciclos, percebi que aquilo não era vida e implorei para que Ndindhri liberasse minha alma. Ele disse que só seria livre assim que ele conseguisse o elixir da vida e tomasse forma humana. Então iria englobar todas as almas e torná-las uma só. Desesperado, contei ao meu pai sobre o plano de Ndindhri, mas ele não se importou, pois queria viver ao lado de seus amados para sempre. Meu pai, ao ser avisado por Ndindhri que o elixir da vida havia renascido, aceitou a tarefa de cuidar dos três experimentos de Ndindhri. Eram partes da própria alma que tomaram forma a partir da conjunção carnal entre Orpheu e Mariya.”
Ele fechou os olhos e se ajeitou na cadeira, pois estava satisfeito que os jovens compreendiam e não duvidavam de sua história.
— Após o parto, Mariya se tornou... Diferente, mais carinhosa, expansiva, e até mais que a verdadeira Mariya. Esse foi o momento em que ela se tornou humana de verdade. – Aravon fez uma pequena pausa. – Ndindhri, em sua clarividência, previu seu fim seria nas mãos do matador da besta, e arquitetou um plano para criar um ser que superaria ele próprio. Esse ser seria responsável por unificar o mundo e, assim, incumbiu novamente meu pai de criar esse ser com Mariya, enquanto o próprio falso deus moldava a realidade para formar o Messias. Mas havia algo que Ndindhri não esperava: que o amor que sentiam um pelo outro passassem ao filho e moldassem seu ser, tornando-o verdadeiramente um salvador da humanidade em um sentido diferente do seu. E foi aí que acabou a nossa história.
Ele se levantou da cadeira, fazendo com que os rapazes pudessem perceber sua transparência e brilho incomuns.
— Agora que lhes expliquei tudo, é a minha vez de ir... – disse com um olhar aliviado.
Qin e Kasias se levantaram quase ao mesmo tempo e o reverenciaram. Se despediram do sofrido senhor.
— Antes disso, quero que digam uma coisa para a garota portadora do elixir – disse, olhando nos olhos de Qin. – “A sabedoria pode ser uma benção, e o conhecimento uma maldição. Então não seja ambiciosa, e tente capturar o mar com uma ânfora, absorva a água lentamente”.
Ao dizer isso, sorriu e seu brilho ficou mais forte, até que se partiu e se espalhou em várias direções; sua alma finalmente encaminhada para a liberdade e o descanso eterno. Os dois rapazes se entreolharam, absorvendo tudo o que haviam escutado. Logo, começaram a empacotar seus utensílios de viagem, pois ela ainda não havia começado.