Pela primeira vez, Kasias conseguiu desarmar e finalizar Yhorm, o qual estendia as mãos em desistência, sentindo a ponta da lança incomodar seu pescoço.
— Estou realmente impressionado – o homem de cabelos verdes disse baixinho. – Se fosse possível, eu estaria suando como um porco agora.
O garoto não disse nada. Recolheu a lança e a pôs nas costas, suspirando de alívio ao perceber que a árdua batalha havia terminado. Ele estava exausto, mas notava um olhar estranho em Yhorm.
— Sabe... – começou o homem mais velho. – Eu realmente invejo seu talento. Tem pouco mais de 11 ciclos e já me superou, que tenho centenas de ciclos de experiência a mais que você.
— Seu treinamento que possibilitou isso, mestre – respondeu Kasias, desviando o olhar, sem jeito. – Se não fosse por você, eu estaria ainda trabalhando na lavoura do meu pai.
A expressão de Yhorm se tornou sombria, como se a culpa o atormentasse.
— Sente saudades da sua família? – perguntou, olhando nos olhos do garoto.
— Claro que não. Meu pai era um bêbado violento e garanhão, e minha mãe era uma mulher fraca e submissa que acatava calada as injúrias dele – a criança respondeu, dando de ombros.
— Não se deve dizer isso deles. São humanos, e humanos erram – respondeu Yhorm desconcertado. – Deveria amar sua família.
— Errar é uma coisa, mas o que meu pai fazia era diferente – resmungou Kasias. – Minha mãe não era exatamente culpada de nada, mas sua falta de reação e de vontade própria me incomodavam – desviou o olhar. – Mas eu amo minha família, Yhorm. Minha família é você e o Magnun.
Os olhos de Yhorm se arregalaram levemente, e um sorriso estampou sua face. Ele bagunçou o cabelo de Kasias, e andou em direção à cabana para que o garoto não visse seus olhos úmidos.
Algum tempo depois, Kasias treinava sozinho com as projeções de Yhorm em seu campo delimitado. O dito “espírito da floresta” podia fazer algumas cópias de inimigos que ele havia derrotado graças à sua incrível habilidade de observação e de memorização de padrões de ataque. Obviamente, como não tinham vontade própria, as projeções repetiam apenas os movimentos que Yhorm havia visto e memorizado. Assim, elas não aprendiam e nem improvisavam estratégias no campo de batalha. Contudo, isso não significava que era fácil, pois nas primeiras tentativas, Kasias havia sido rendido várias vezes por inimigos comuns. Atualmente, conseguia lutar com vários dos mais difíceis ao mesmo tempo, incluindo a presença de um guerreiro antigo chamado Arquemíades. Este era famoso pela imensa força bruta e pela sua capacidade de quebrar paredes de escudos com seu imenso martelo de guerra.
No dia em que conseguiu finalizar todos os inimigos de Yhorm sem se cansar muito, ele olhou na direção de seu mestre, que fumava algo de cheiro forte, enquanto o observava da varanda.
— Mestre, acho que já está na hora, não é mesmo? – perguntou o jovem. – Acho que já posso enfrentar Akel’thut.
Yhorm suspirou, pois realmente estava na hora. Não havia mais nada que pudesse ensinar ao rapaz. Levantou-se e, pedindo para o rapaz esperar onde estava, subiu as escadas, pesarosamente. Ele voltou minutos depois com uma caixa fechada.
O rapaz já estava equipado com diversos acessórios modificados por ele mesmo:
1. Três brincos de prata que se tornavam facões ao serem retirados da orelha e duravam 10 minutos até se tornarem acessórios novamente. Tinham um período de espera de mais 10 minutos até que pudesse usá-los de novo.
2. Um anel de vinhas que só podia ser usado apenas uma vez, o qual negaria um ataque qualquer à média ou à longa distância.
3. Um colar que se transformava em arco, produzindo mais flechas de maneira proporcional à periculosidade do inimigo, mas que gastava bastante energia.
4. Uma pulseira que o tornava resistente ao calor.
5. Algumas bolas de vidro com runas de água e de fogo para formar vapor e diminuir a visibilidade do inimigo.
6. Diversas balas feitas a partir do bagaço de uma fruta cítrica, que aumentavam a velocidade do rapaz em um curto período de tempo.
No entanto, esses eram apenas os equipamentos que vestia. Ele havia criado vários outros protótipos que serviam a outros fins que não a batalha, e vários outros que foram um fracasso total. Ainda assim, lhe faltava experiência para poder criar runas poderosas o suficiente para contra-atacar Akel’thut. E foi por isso que Yhorm deixou 4 dos 5 espaços de runa da lança vazios, pois assim que fossem encravados no objeto, ele não poderia mudá-lo. E era exatamente nisso que Yhorm estava pensando quando sacrificou várias de suas criações para formar essas quatro runas que iria entregar ao jovem naquele momento.
— O que é isso Yhorm? – perguntou o rapaz ao ver a caixa que seu mestre trazia.
— São coisas que garantirão sua vitória contra Akel’thut – respondeu enquanto abria a caixa, revelando as quatro runas, as quais brilhavam refletindo a cor do falso sol.
O rapaz se aproximou e observou as runas. Já sabia ler algumas, mas essas eram complexas demais para serem interpretadas por ele.
— Essa primeira – disse Yhorm, entregando para Kasias a pedra entalhada e brilhante. – Acredito que seja a mais importante do seu arsenal. Coloquei nela a habilidade de negar linhas temporais.
— Como assim?
— Não é muito fácil de explicar, mas vamos lá: ela é capaz de ignorar todas as realidades em que o alvo em seu alcance não foi atingido, e escolher a rota espaço-temporal que a lança acertou o alvo. Ou seja, se tiver uma chance mínima de acerto para seu ataque, ele vai acertar o inimigo sem falhas.
— Isso é... – Kasias disse enquanto colocava a runa. – Bem injusto para falar a verdade.
— De fato – riu Yhorm. – Mas está enfrentando um ser que não obedece às mesmas leis naturais que você, então ser injusto é autodefesa. Você só errará o ataque caso não exista qualquer chance de acertar.
Pegou a segunda runa e a entregou para Kasias. Quando ele tocou na pequena pedra entalhada, sentiu uma leve brisa esvoaçar seu cabelo.
— Essa aqui – disse Yhorm. – É uma proteção contra o vento. Além de melhorar seu equilíbrio, ela é capaz de te proteger contra grandes massas de deslocamento de ar, evitando que você seja arremessado para trás com os rugidos de Akel’thut.
O rapaz, sobriamente, encravou mais uma runa enquanto seu mentor pegava a terceira na caixa.
— Essa é uma runa padrão para lanceiros. Ela serve simplesmente para a lança retornar a sua mão após ter sido lançada – disse e esperou o rapaz encravar a runa para pegar a última. – Está aqui... É bem simples, mas o processo de criação dela é complexo. Ela segue uma equação fixa, que segue o modelo: · F vezes C elevado a R.
— O F varia entre 0 ou:, 0 se o oponente não for uma calamidade, e 1 se o oponente for uma calamidade. C é uma constante de liberação de energia, e R é o fator de periculosidade do inimigo, que representa seu potencial de destruição. Logo, quanto mais perigoso for seu inimigo, mais a lança vai machucá-lo.
— Me parece... – Kasias pensou em um elogio que pudesse englobar a praticidade da lança. – Perfeito. Mal posso esperar para testá-la.
Yhorm sorriu e voltou para a casa a fim de guardar a caixa. No caminho, olhou para trás e chamou Kasias.
— Vamos descansar por hoje. Amanhã levo você ao covil de Akel’thut.
No “dia” seguinte, após um bom período de descanso e de refeição reforçada, Yhorm apareceu à porta do quarto de Kasias com uma expressão sombria.
— Já descansou o suficiente. É hora de enfrentar seu inimigo.
Kasias não disse uma única palavra, apenas pegou a lança e seus acessórios mutados e seguiu seu mestre com um olhar determinado.
— Acho que não é necessário lembrar que não posso entrar no covil de Akel’thut – disse Yhorm com um tom mais sério que o normal. – Foi parte das exigências que tive que ceder para formar esse local.
— Eu sei mestre – respondeu Kasias, um pouco tenso. – Mas não será necessário, um golpe bem dado nele vai ser o suficiente para derrubá-lo.
— Não tenha tanta certeza disso – devolveu Yhorm em um tom fúnebre.
Nesse momento, Kasias percebeu algo. Nem mesmo seu mestre acreditava fielmente em sua vitória, pois ele estava em conflito. Era um estado preocupante, pois no momento Kasias já havia ultrapassado seu mentor, e logo Akel’thut não deveria ser um desafio tão grande. Assim, as primeiras garras sombrias do medo começaram a enevoar a mente de Kasias quando eles chegaram à uma caverna no meio da floresta. A sua entrada tinha altura o suficiente para que se passasse torres de cerco, ou algo muito grande. Ele pôde ouvir ecoando um rosnado baixinho, que parecia uma mistura de porco com cachorro e urso, além do tilintar de grandes correntes.
— Está preparado? – perguntou Yhorm. – Assim que eu liberar as correntes da calamidade a luta vai começar, então tem certeza de que vai enfrentar a criatura agora?
A adrenalina subiu à cabeça do rapaz. Era para isso que estava treinando há tanto tempo. O medo pareceu sumir e seus lábios se contorceram em um sorriso selvagem.
— AKEL’THUT!!! – gritou o jovem. – Te farei pagar pelos seus crimes – voltou para seu mestre. – Liberte a besta, porque vou exterminá-la.
Yhorm estalou os dedos e deu um passo para trás. Os barulhos de correntes pararam e Kasias pôde ouvir a respiração da criatura se aproximando lentamente da entrada da caverna. Kasias preparou a lança em posição de arremesso, enquanto lançou dois brincos ao ar, que viraram facões enquanto caiam. Logo que viu a silhueta da criatura emergir na caverna, arremessou a lança na direção de sua cabeça, enquanto os facões caíam em sua mão.
Antes que a lança pudesse acertar a criatura, Kasias pulou em sua direção com os dois braços cruzados para desferir um poderoso golpe com seus facões. Então, a lança atingiu a criatura no ombro, visto que ela não esperava um ataque a longa distância logo de início. E o rapaz viu o corpo da criatura borbulhando, enquanto a lança penetrava em sua carne. Logo depois, antes que a criatura pudesse reagir, o rapaz cortou sua mandíbula com os facões e os jogou fora, usando a runa da lança para fazê-la voltar em sua mão. Assim, agarrou a lança e a enfiou fundo no peito da criatura, em um golpe de baixo para cima. Isso fez com que gritasse, enquanto os golpes de sua lança pareciam guiados por um movimento divino. Ele girava e cortava a calamidade em vários pontos. Ela estava confusa, e apenas gritava com seus inúmeros rostos encravados em seu lombo.
Kasias atacava como um animal, sem parar, em um combo infinito de estocadas e de cortes até que perdeu a concentração por um milésimo de segundo. Ele viu um dos rostos da criatura com um olhar de súplica. “Pare, humano, isso dói” era a frase da criatura que saiu em uma de suas faces disformes, fazendo-o hesitar. Isso foi o suficiente para uma imensa cauda acertar em cheio o peito do jovem, o arremessando a vários metros para trás. Isso fez o ar escapar de seus pulmões e sentiu o impacto em algumas costelas, que se estilhaçaram. Então, o rapaz caiu de costas no chão e gemeu com a dor, mas sabia que tinha que se levantar rápido. Então preparou a lança para arremessá-la mais uma vez, quando viu um segundo sol sair da boca de Akel’thut. Era um raio luminoso que foi disparado em sua direção a uma velocidade altíssima, derretendo e desintegrando a vegetação próxima.
Kasias mal teve tempo para refletir o golpe com sua lança quando outro disparo foi feito, atravessando sua coxa esquerda e o fazendo perder o equilíbrio. Logo depois, outro disparo foi feito, mas dessa vez a criatura balançou a cabeça para formar uma onda de energia que servia como um chicote. Kasias a rebateu com dificuldade, mas sentiu os pulsos quebrarem com o impacto, arremessando sua lança na direção oposta. Então, ele rolou para o lado, desviando de outro raio da criatura. Ele procurou sua lança, levantando a mão para ativar a runa de retorno, mas percebeu que não conseguia deixar as mãos firmes, devido à dor e ao medo.
Um barulho estrondoso o fez olhar de relance para a criatura que se aproximava em velocidade absurda. O chifre brilhando ao refletir o sol e sua boca se regenerando pouco a pouco para o partir em dois com sua mordida. “Mestre, me perdoe. Eu perdi, falhei no meu objetivo. O único que tinha”, foram seus últimos pensamentos antes do chifre da criatura atravessar seu peito e destruir seu coração. Enquanto desfalecia, trespassado pela criatura, pôde ouvir um tilintar de algo de metal. Algo quente encostou em si e, enfim, era o doce e o frio beijo da escuridão.