Dominação/Luto

— E foi isso que aconteceu na sua jornada? – Lorde Micah parecia bem impressionado. – Encontrar tantas calamidades assim de uma vez me parece conto de fadas, ainda mais nas proximidades do Monastério.

— Em teoria era apenas uma que criou outras, mas não é isso que importa. Temos feridos que têm de ser cuidados antes que continuemos – respondeu Kasias, fazendo a sobrancelha do senhor do norte se arquear um pouco.

— Têm? Está me dando ordens, Matador da Besta? – o lorde parecia estar se divertindo com a ideia, embora tentasse parecer furioso.

— Não senhor, mas seria de grande ajuda se Vossa Majestade auxiliasse nossa pequena caravana. Como bem sabe, o fim dos ataques do império Vkstri seria fundamental para a aliança entre Camlann, Faradin, Nan’Deru e Xhun funcionar de maneira saudável e equilibrada – retomou o rapaz, mordiscando o lábio em impaciência, o maldito nobre estava o testando. – Então lhe peço formalmente por uma intercedência no assunto.

Lorde Micah pareceu satisfeito com a resposta, empertigou-se e sorveu um pouco de vinho.

— Então me permita informá-lo que os feridos já estão sendo tratados por curandeiros do castelo. Não precisa ficar preocupado – disse com um sorrisinho.

Kasias mordeu os lábios, visto que o senhor do norte o irritava. Geralmente era mais passivo quando conversava com gente da nobreza, mas o Lorde Micah parecia saber tocar nos pontos mais sensíveis de Kasias.

— Agradeço, Lorde Billerion. Agora, se me permite, gostaria de requisitar um aposento para eu e Qin passarmos a noite, visto que não precisamos de cuidados médicos.

O protetor do norte meneou a cabeça em concordância e acenou para que uma criada, uma jovem moça Wogan, guiasse Kasias ao quarto de hóspedes. Ele observou a Wogan fêmea, notando que possuía cabelos curtos e castanhos no ombro, corpo ainda em formação e um olhar assustado. Então, ela fez uma reverência à Kasias e apontou para um corredor à sua esquerda.

— Por aqui, Matador da Besta – disse, com a voz trêmula e temerosa. – Seus aposentos ficam nesta direção.

Kasias observou o andar da garota à sua frente em meio ao corredor iluminado por tochas. A fortaleza não tinha muitas janelas, então era difícil saber o horário do lado de dentro, embora o estômago de Kasias indicasse que já tinha passado da hora do segundo desjejum. Então, quando já estavam distantes o suficiente do saguão principal, o rapaz se dirigiu à garota.

— Posso saber seu nome, minha cara? – perguntou suavemente.

— Ritha. Ritha Kaenzidus – respondeu com a voz trêmula. – Já estamos chegando ao seu...

— Kaenzidus? Conhece um tal de Nirvalus? – interrompeu Kasias.

— Sim, é meu pai, senhor – respondeu com os olhos brilhando um pouco. – Você o conhece? Ele conseguiu sobreviver?

— Não – Kasias disse prontamente. – Ele não resistiu aos ferimentos. Acredito que os Wogans do castelo são os únicos sobreviventes da comitiva.

Houve um silêncio ensurdecedor, e os ombros de Ritha caíram um pouco. Todavia, ela continuou a andar lentamente pelo corredor, tremendo um pouco.

— Chegamos, Matador da Besta – disse, apontando para um quarto grande sem janelas no final do corredor, não mostrando seu rosto por completo ao rapaz.

— Obrigado, Ritha – o rapaz respondeu, estando ainda em dúvida de como reagir ao luto da jovem garota. Situações assim o deixavam desconfortável, e ele reconhecia que poderia ter sido mais compreensivo com as palavras. – E... Sinto muito pelas suas perdas.

A garota virou o rosto e voltou a andar pelo caminho que viera, com passos trêmulos e inconstantes. Então, Kasias olhou para o quarto que era simples. Tinha quatro camas de solteiro, uma estante de livros, sem ventilação e com alguns armários e cabides para pendurar objetos pessoais. Assim, deitou-se na cama e fechou os olhos. A ideia de vasculhar o quarto, procurando espiões e assassinos ou escutas, passou pela sua cabeça, mas decidiu que estava muito cansado para lidar com isso, e resolveu confiar na própria sorte e nos seus itens de vigilância automática.

Kasias cochilou um pouco, mas acordou quando ouviu o barulho de passos e algumas risadas vindas do corredor. Abriu os olhos, observando a porta e se sentou. Qin logo entrou no quarto rindo e conversando com um serviçal Wogan, o qual parecia bem entretido em suas histórias.

— Mas ele acabou fugindo. Você tinha que ver, parecia uma jovem gazela pulando a cerca – ele dizia, rindo.

— Já fez amizade Qin? – perguntou Kasias com um sorriso sarcástico no rosto.

Ambos pararam de rir e olharam para ele. Qin o cumprimentou com um sorriso amarelo e o serviçal fez uma reverência, se afastando.

— Belo senso de humor, Matador da Besta – disse Qin, sentando-se e tirando os sapatos enlameados. – Poderia ser um pouco mais simpático, principalmente com aqueles em posição desfavorecida.

Kasias puxou um livro da estante e olhou a capa “Sob o tratado e a ameaça Wogan”. Depois, colocou-o de volta com um olhar de desprezo.

— Não sou como o movimento anti-wogan – disse o rapaz. – Não os odeio e até os trato como gente normal, mas a aparência deles me dá asco.

— Tenho certeza de que pensam assim de você também – disse Qin, puxando um livro de sua bolsa aparentemente infinita. – Leia, talvez deixe seu coração mais leve.

Kasias olhou para o livro que seu companheiro oferecia. Tinha uma capa comum de couro de veado com algumas folhas amareladas e costuradas junto a ela. Pegou e olhou o título “Diário de Maddenym Berrot”. Ele estava no idioma de Xhun, que Yhormgandr o ensinara a ler e a compreender entre uma lição e outra.

— Que tem ele? Por que leria um diário de uma moça qualquer? – perguntou, folheando as páginas.

— Não uma moça qualquer, mas de uma princesa Wogan, da época da conjugação – disse Qin, olhando fixamente com um olhar perdido para o livro. – Uma mulher impressionante.

Kasias ficou mais interessado, abriu a primeira página e leu a dedicatória.

Para meu filho, Qin Li Shang.

Espero que essa leitura seja benéfica a você, e que saiba incorporar algumas das virtudes que estão presentes na história. Em resumo, acredito que vai aprender uma valiosa lição de um povo mais estruturado do que podemos imaginar.

Que sirva de lição para você, e que aprenda mais sobre humildade e sobre os deveres de um imperador.

— Isso foi... – Kasias começou.

— Presente do meu pai, o Imperador Mu Li Shang – respondeu Qin, vendo algo que Kasias não podia ver. – O único presente que ele me deu, e também o item mais valioso de minha bolsa. Mas acho melhor que você o tenha, pois precisa absorver mais seu propósito.

— Já disse, não tenho aversão aos Wogans, só acho que...

— Deixe suas explicações para depois. Absorva a história primeiro – Qin disse firme.

Kasias virou a página e leu o prefácio. Este estava em língua Azeral, que é falada por Faradin e Camlann.

“Se você está lendo isso, caro leitor, quer dizer que se importa ao menos um pouco com a gloriosa cultura Wogan. Neste diário, quero demonstrar a você que não somos os monstros que acreditam. Assim, vou relatar parte da minha vida antes do evento conhecido como conjugação, sendo uma história que acontece em um outro mundo, meu lar, e terra natal de todos os Wogans. Espero que entenda a necessidade de nos acolherem em seu plano e de como não fomos culpados por essa tragédia.

“Att: Maddenym Berrot, última da casa Berrot e antiga princesa de Avaros”.

— Espera um pouco, quer dizer que isso relata o que aconteceu antes da conjugação? – Kasias arregalou os olhos. – Não sabia que Xhun tinha um conhecimento tão antigo.

Qin meneou a cabeça e olhou para Kasias, sendo um olhar que o rapaz nunca havia visto antes.

— Acredito que vai se surpreender com o conteúdo, pois poucas pessoas sabem da existência desse livro. E a maioria acredita que ele foi há muito tempo perdido – soltou um sorriso. – Mas nada escapa aos olhos de Xhun, lembre-se disso.

Qin parecia uma pessoa diferente quando falava do livro. Algo acendia em seus olhos, um sentimento que Kasias já vira antes: paixão. O seu companheiro parecia estar apaixonado pelo livro, ou pela pessoa que o escreveu. Isso fez o rapaz se interessar ainda mais pela leitura, embora se mantivesse cético quanto a sua capacidade de influenciá-lo.

— O que tem de tão especial nesta mulher? – perguntou Kasias. – Você me parece... Aficionado por ela.

— Não apenas por ela, mas a cultura Wogan é fascinante – deitou-se na cama, animado. – O antigo mundo deles... Avaros, era fascinante. Os Wogans colonizaram todos os territórios e se estabeleceram em uma hegemonia, na qual cada tribo tinha no mínimo dois idiomas: o de sua terra e um mundial. Eles possuíam atendimento médico disponibilizado para cerca de 60% dos habitantes, de maneira gratuita, e suas artes e tecnologia alcançaram muito mais do que podemos imaginar. Por meio de ondas de um elemento chamado Rádio, os líderes de cada região podiam falar com toda a sua população, existia...

— Chega – interrompeu Kasias. – Acho que entendi o conceito. Vou ler para saber mais.

— Antes disso, eu adaptei uma pequena canção de amor feita por um Wogan que se separou de sua amada na época da conjunção – disse Qin, puxando um instrumento de cordas muito utilizado em Xhun. – Não sei se ficará bom na minha voz, mas vou tentar.

Seus olhos...

Amendoados...

Pratas, como lua

Brilham mais que estrelas...

Mais que minha alma pode compreender

Por que nos separamos?

Seus cabelos...

Cacheados...

Pretos, como própria escuridão

Iluminam meu coração...

De uma maneira singela e incompreensível

Por que nos separamos?

Seu sorriso...

Encantador...

Lábios doces como mel

Foge o mal perante seu esplendor

Não consigo entender...

Por que nos separamos?

Seja pela vontade D’ele...

Ou por forças além do divino...

Sei que essa melodia não chegará a você

Não suportarei saber

Que morrerei sem te reencontrar...

Por que nos separamos?

Ao final da canção, Qin fraquejou um pouco com lágrimas nos olhos. Kasias estava impressionado, mas sentia que algo estava faltando. Compreendia tudo o que havia sido dito, mas algo na métrica parecia errado. Foi então que Qin respondeu sua dúvida, sem saber.

— Essa música – disse suspirando. – Faz mais sentido na língua unificada dos Wogans, Wogen. E a melodia segue em um padrão, intercalando rimas a cada duas linhas, em uma proporção fixa de 20 palavras por estrofe. À exceção da última, que tem 30, sempre utilizando tons abertos no final. Uma composição admirável e genial, para dizer o mínimo. A tradução não chega nem perto, e temo morrer sem escutar a versão original cantada por um Wogan.

— Verdadeiramente impressionante – disse Kasias, surpreso. – Qual é o nome dessa canção?

— Sentimentos à distância – disse ele, bebendo um pouco de água.

Kasias, então, olhou para o livro em suas mãos, um dos últimos símbolos nesse mundo de uma cultura tão maravilhosa. Passando a mão na capa, como se fosse algo vivo, lembrou de Nirvalus e de sua filha Ritha. Ele sentiu pena, não pela situação atual de ambos, mas pelo desperdício e pelas tradições surpreendentes que correm o risco de serem apagadas.