Alrramone sorriu depois de absorver as lembranças de todos os viajantes. Como não podia sair da floresta, esta era a maneira que encontrou de viver a vida e se entreter. Já Kasias olhava para baixo, desviando a cabeça com vergonha. Apesar de suas palavras, o rapaz não gostava de compartilhar seus segredos com alguém, não era uma sensação agradável, muito menos quando era feito à força.
— Matador da besta – Alrramone disse e deu uma risada. – Foi bom te conhecer. Conhecer uma existência... Singular.
— Sua parte do acordo agora – disse Qin, se intrometendo entre o olhar de Alrramone e de Kasias.
— Hmmm... Por onde começo? – perguntou e olhou para sua plateia como se fosse um artista, coçando o queixo delicado. – Vamos começar pelos desaparecimentos.
Ele se levantou da pedra com um pulo, e começou a dedilhar seu instrumento musical.
Saúdam, saúdam
Pois ELE veio nos salvar.
Os céus se dobram e aplaudem,
Nossa redenção ELE veio agraciar
Em um…
A lança de Kasias explodiu a pedra em que o espírito da floresta estava sentado há pouco tempo. Todos olharam em choque para o rapaz, que, com uma runa, trouxe a lança de volta à sua mão.
— Sem gracinhas – o rapaz disse, e estava vermelho de impaciência. – Seja direto.
Alrramone engoliu em seco, finalmente percebendo a ameaça que antes estava implícita no rapaz.
— ELE os levou – Alrramone disse baixinho. – Começou com o rebanho, mas vai chamar as pessoas também – ele fez uma pausa. – Na verdade... Não levou, ele atraiu.
— Ele quem? – perguntou Kasias, ameaçadoramente.
— Ele não tem nome, mas pode chamá-lo de Messias ou de Salvador, você escolhe.
As costas de Kasias arrepiaram ao se lembrar da figura de amarelo que vira alguns dias atrás. O que quer que fosse aquilo, não era algo que poderia lidar. Em escala, Ndindhri era centenas de vezes mais poderoso que Akel’thut, mas aquele ser, cria do falso Deus, era algo que existia em uma medida à parte. Era como se não houvesse comparações para ele, como algo único e inigualável, uma singularidade na existência.
— E o que ele quer?
— Depende. O que você considera como salvação? – Alrramone perguntou e soltou um risinho. – Não sei o que ELE considera, mas tenho certeza de que é algo que difere de você.
Kasias ficou calado. “Salvação? Salvar quem? De quê?”, pensou. Ele não sabia as respostas, tampouco imaginava que Alrramone sabia de algo, mas ainda havia duas perguntas a serem respondidas.
— Os círculos nas plantações – interrompeu Qin. – O que são?
— Partes do meu ritual, para afastar os homens de vermelho da minha floresta – ele respondeu, se ajeitando no chão e pegando seu instrumento, assim tocou suavemente notas de tom ameaçador. – Demorei demais, e eles chegaram mais cedo do que o esperado.
— De onde eles são? O que querem? – Álvida intercalou no meio dos ouvintes.
— De onde? De todo lugar, imagino. São seguidores do grão-mestre Dreyfus, um humano qualquer. Sabe-se lá de onde ele veio – respondeu e fez uma expressão de repulsa. – Mas a fortaleza deles está em toda parte, então só podemos evitar a chegada deles por meio de interferências com a Lei – ele fez outra pausa. – Quanto ao que eles querem... Vocês já sabem a resposta: o elixir da vida.
— Você está falando que aqueles homens de vermelho eram... – Álvida começou.
— Vocês gostam de chamá-los de “caçada carmesim” – Alrramone afirmou. – Tanto pelos seus mantos vermelhos e pelo seu objetivo, quanto pela trilha de corpos que eles deixam.
— Não me parecem muito impressionantes – Kasias bufou. – Se são estúpidos o bastante para cair no truque que fiz com suco de groselha...
— Teve sorte, é claro. Mas eles também não se importam que seja uma farsa – continuou Alrramone. – O conceito de tempo é diferente para eles, pois podem simplesmente retornar a qualquer momento e pegar o elixir sem que tenha se passado instantes na percepção deles.
— Isso complica muita coisa... – Kasias murmurou preocupado.
— Por quê? Tem alguma ideia de como eles fazem isso? – Qin perguntou, fazendo os olhos de Alrramone brilharem.
— A fortaleza deles é provavelmente um construto atemporal em um campo delimitado – Kasias respondeu e fez uma pausa. – Meu mestre havia dito que apenas 7 pessoas conseguiam fazer algo assim na história, sendo ele uma delas.
— Nunca ouvi falar. O que seria isso? – perguntou o jovem guerreiro de Xhun.
— Basicamente um campo delimitado que ganhou consistência o suficiente para se tornar algo separado da realidade. Ele age independentemente das Leis que regem o mundo, tornando seu criador quase onipotente em suas regras.
— Caceta! – disseram Álvida e Qin quase ao mesmo tempo.
— E isso não é tudo. Segundo o que o espírito falou, é uma fortaleza móvel. Ou seja, vai nos seguir onde quer que estejamos, e pode aparecer a qualquer momento e nos sugar para dentro – disse Kassias e suspirou.
— E o que vamos fazer? – Qin perguntou aflito.
— Nada, apenas esperar e confiar que podemos derrotá-los em seu território – Kasias respondeu e balançou a cabeça
— Você consegue? – perguntou Qin com suspeitas. – Me parece algo absurdo de conseguir.
— Acredito que sim. Meu campo delimitado é especialmente forte contra exércitos, e possui um grande efeito de sobreposição.
— O que isso significa? – inquiriu Qin.
— Que as regras que eu submeto à realidade são flexíveis o bastante para não anular regras alheias. Então ambas as regras são bem aceitas e os campos se fundem.
— O que acontece se regras se anularem?
— Paradoxo... – respondeu, suspirando, Alrramone. – Uma bela visão, se me permite.
— Como assim? – Qin perguntou e olhou para o espírito, que brilhava os olhos, enquanto Álvida, cansada da conversa, pôs-se a caminhar na direção do rio.
— O tecido da realidade se colapsa, e todos na região afetada são lançados para algum lugar – respondeu Kasias com um sorriso macabro.
— Algum lugar não – Alrramone interveio. – É muito vago essa informação, mas pode-se apenas dizer que os envolvidos somem, e nunca mais são vistos. É isso que diz as lendas, pois não possui nenhum relato de que algo desse nível tenha acontecido – deu um sorriso presunçoso. – Raramente há combate entre duas pessoas que possuem campos delimitados devido à sua raridade. Isso porque pessoas que possuem um geralmente evitam usá-lo com pessoas que também possuem a mesma habilidade. Eles sabem que pode acontecer algo além da compreensão humana.
— Mas tem o caso também das calamidades – Kasias adicionou. – Elas próprias funcionam como um campo delimitado, e agem de acordo com suas próprias regras. Mas, felizmente, possuem uma desvantagem conceitual contra nós – ele sorriu de nervoso. – O que significa que a nossa própria existência é elevada quando se luta com um deles, como se fosse uma ajuda divina, sobrepujando suas habilidades.
— Por que isso acontece? – Qin perguntou e olhou para Kasias, que deu de ombros.
— Talvez porque existimos para esse propósito – Alrramone respondeu e ficou sério pela primeira vez na conversa. – Como se fôssemos os anticorpos da natureza, que querem expulsar as criaturas de fora.