Despertar/Inquilino

A garota abriu os olhos mais uma vez. Ela estava em um quarto iluminado, bem claro, e com uma cortina semitransparente que esvoaçava de acordo com o vento. As oscilações da cortina faziam sombras no chão, que a observavam se levantar. Com um grunhido quase inumano, a garota se pôs de pé. Ela usava um vestido leve, típico de enfermos e totalmente branco. Ao seu lado via uma moça cor de ébano, aparentemente dormindo, com um semblante preocupado.

A garota olhou fixamente para o lado de fora, e viu pássaros em círculos cantando, além de um pequeno pasto a alguns metros abaixo dela. Ela estava em um castelo, bem rústico por sinal, e nada como as novelas de aventura haviam descrito. Então, estendeu a mão para o sol, como se tentasse agarrá-lo para junto de si, fechando o punho lentamente, eclipsando o astro-rei.

Algo dentro de si havia mudado, e sentia-se menor e atemorizada, como se soubesse que toda sua vida não era nada perante a um ser superior. No entanto, ao mesmo tempo, sentiu alívio, pois, se nada importava, então seu destino e seu futuro também não importavam. Assim, ela abriu os dedos que engoliram o sol, reparando nos quentes raios solares que escorriam entre eles, um fragmento de algo menor. Todos somos uma peça de quebra-cabeças, e o sentimento de já ter visto a obra completa, ou ao menos parte dela, assombrava sua cabeça. Isso porque suas memórias ainda estavam confusas. “Qual é eu nome?”, perguntou. Um eco ressoava em sua cabeça, repetindo uma única palavra, Ndindhri. Essas sílabas, que não pareciam combinar muito, ressoavam. Ela recusou o chamado, pois aquele não era seu nome. Então, outra voz, uma rebelde e volátil, disse um nome: Etáoin. Ela repetiu com os lábios o som do nome, sorrindo. “Será o meu nome?”, pensou. Ainda não era uma resposta, pois essa palavra nomeava uma parte dela, que havia se tornado algo bem maior.

Um vento forte bateu sobre seus cabelos, e ela reparou que a sombra causada pela sua mão fazia uma figura macabra no quarto. Era como se uma garra monstruosa estivesse próxima de agarrar a moça de pele escura. Contudo, ela sorriu, pois, ao mesmo tempo que se sentia menor e insuficiente, sabia que era mais poderosa que qualquer outro. Seu sangue fervilhava de excitação. Ela olhou novamente para o sol, a luz não era tão forte, pois já viu luzes maiores. Há muito tempo atrás? Ou apenas há alguns minutos? Não sabia, o tempo lhe parecia um tanto irrelevante se comparado ao que tinha visto em seus sonhos.

Sua boca estava seca, rachada talvez. Então avistou um riacho que passava a alguns metros abaixo de onde estava. Assim, ela estendeu a mão em concha, enquanto sentia a água. Etáoin levou a mão à boca, que foi revitalizada com o líquido precioso. Um pouco de água escorria pelos seus dedos e molhou seu vestido. O distante riacho continuou seu curso, e um pequeno peixe cinzento se debateu aos seus pés, implorando por água. Logo, ela se agachou, pois também estava com fome. Assim, pegou o peixe, e seus olhos se encontraram com os dela, fazendo-a perceber que a trajetória do peixe tinha acabado em suas mãos. Ele nasceu, viveu e se locomoveu justamente para isso: ser devorado por ela.

Foi a primeira vez que se sentiu emocionada desde que acordou. Então, ela abriu a boca e mordeu a cabeça do peixe, partindo seu crânio e cuspindo-o fora. Com cuidado, enfiou a mão em suas entranhas e retirou aquilo que não deveria ser consumido. E, com uma só mordida, engoliu o animal fresco, que fora feito especialmente para ela.

“Khan é misericordioso e belo... Tudo isso que existe tem o mesmo propósito”, ela finalmente percebeu como se lembrasse da conversa que teve, talvez há milênios, com a criatura que hoje mora nela. “Isso é arte, a visão completa da figura, com lágrimas nos olhos.”

Então, ela se ajoelhou no quarto e começou a louvar Khan. Não o Deus dos mortais, mas o Deus real, cujo nome ela não sabia e nem sabia que existia um nome. Contudo, ela podia percebê-lo. Os deuses dos mortais eram suas ferramentas, e apenas um poderia ser unicamente livre: o Criador. Era aquele que usou seu pincel sagrado para mostrar a ela a Arte Primordial, e somente para ela, pois este era seu papel.

Ao mesmo tempo em que chorava e cantava, seu semblante estava alegre e resplandecente, até que uma voz a fez sair de seu transe.

— Etáoin? Você acordou? – era uma voz conhecida, mas não lembrava de quem era. Então se virou para trás, e viu dois homens a encarando.

O primeiro deles, dono da voz que a despertou, era levemente rechonchudo e tinha uma cara lisa. Parecia com a de um bebê, e seus olhos eram levemente rasgados, como se estivessem esticando seu rosto. Ele era bem alto, vestindo roupas floridas e voluptuosas, e olhava para ela com espanto. Já o segundo parecia estar mais curioso com a cabeça de peixe perto da janela e com o sangue nas mãos da garota. Ele tinha uma pele morena, queimada pelo sol, e suas feições eram bonitas. Tinha o cabelo escuro em um rabo de cavalo que caía sobre sua clavícula, além de lindos olhos magenta que inspecionavam o quarto. Ambos estavam encharcados, dos pés à cabeça, embora eles não parecessem se importar. O segundo rapaz estava inclusive sem camisa, apesar do frio, mostrando uma terrível cicatriz em cima de seu osso esterno, além de algumas tatuagens pretas e vermelhas sobre o corpo.

— Vocês? – ela perguntou confusa, pois sabia que os conhecia, mas não lembrava de onde. – Venham louvá-lo comigo.

— Louvar a quem? – o homem mais alto de olhos rasgados perguntou, enquanto o moreno seguia com uma expressão curiosa, porém debochada e arrogante.

— Ao Pintor – ela respondeu com os olhos marejados. – Vocês não viram a pintura completa, mas estou aqui para garantir que saibam dela.

Os homens se entreolharam e a seguiram, ajoelhando-se cada um ao seu lado. Ouviram-na cantar, com voz embargada e nada melódica, apesar de ser dito de maneira doce e singela. Ela cantava em uma língua antiga, que somente clérigos e monges sabiam. Era a língua dos deuses, que eles usavam para se comunicar. Os dois rapazes tentaram acompanhar o cântico da moça, enquanto um deles, o de olhos magenta, preparava pedras com algo inscrito e as colocava ao seu redor. Ela sabia o que era isso, sabia que ele iria fazer um ritual, mas não sabia o motivo. Algo em sua cabeça falava para ela impedi-lo, mas sua fé acreditava que deveria aceitar a “ajuda” do frágil mortal. Então, com um movimento suave, ela parou de cantar e pôs as duas mãos sobre o peito. Ela tombou a cabeça de lado, olhando para o rapaz com um sorriso radiante. O rapaz sorriu sem graça de volta e, com um olhar preocupado, colocou o polegar na testa da garota, fazendo tudo se apagar instantaneamente para ela.

Qin olhava preocupado para as feições adormecidas de Etáoin. A moça suspirava suavemente, e tinha um sorriso quase lunático na face. Era um sorriso que acreditava ser a expressão última da alienação.

Kasias se sentou na cama, com um olhar cansado e um pouco pálido, franzindo a testa e tentando entender o que aconteceu. Contudo, antes que um dos rapazes pudesse fazer algo, um resmungo desviou suas atenções. Oshandra levantava da cama em um movimento rápido. Uma de suas mãos foi rapidamente para a cintura, como se procurasse sua arma. Piscando os olhos algumas vezes, ela reparou a presença de Kasias e de Qin, que a observavam com um rosto neutro. Ela pigarreou: “O que aconteceu? Com as calamidades?”.

— Bom... – Kasias começou. – Eu matei os três filhos de Ndindhri. Só que nasceu mais um que conseguiu fugir, mas parece não ter interesse em nada perigoso.

— Muito sucinto, Kasias. Você deveria... – começou Qin.

— Não importa. E Ndindhri? Onde está ele?

Ambos os rapazes se entreolharam e apontaram, simultaneamente, para a garota adormecida. Com uma expressão confusa, ela virou a cabeça e franziu o cenho por alguns segundos. Então olhou para Qin, procurando por explicações.

O rapaz suspirou e resumiu a história de tudo o que havia acontecido desde que ela tinha adormecido. Contou sobre a luta e os pecados de Sir Veras, sobre a derrota completa que sofreram nas mãos de Ndindhri, e pela derrota do próprio falso Deus em vista de um ser muito superior. Ele contou também sobre a história que haviam escutado do rapaz chamado Orpheu, e tudo o que se desenrolou a partir disto. Disse onde estavam e o motivo, explicando sobre o exército vermelho, ou “caçada carmesim”. Fez isso sem pular muitos detalhes, mas, ao mesmo tempo, sendo objetivo e completo. Já Oshandra ouviu calada toda a história, interrompendo poucas vezes para fazer perguntas, ou observar algo sobre uma diferente perspectiva.

— Mas, então, quem está neste corpo? Etáoin ou Ndindhri? – perguntou ela, bem preocupada.

— Não sabemos – respondeu Kasias. – Mas meu palpite é que não seja um nem outro, mas sim um indivíduo que nasceu da junção de ambas as almas – fez uma pausa. – Vamos chamá-lo de Etándhri. – Ninguém riu de sua piada. O rosto de ambos estava sério, e ele se sentiu um pouco sem graça. – E, então? O que vamos fazer? Abortar a missão? Sem nem ao mesmo sair de Camlann? – Kasias inquiriu finalmente.

— Tem um jeito de separá-los, acredito – Oshandra começou. – Só que teríamos de ir para a capital de Nan’Deru: Ophe’lia.

— Qual é o seu plano? – perguntou Kasias.

— Um xamã, especialista em manipular almas, que é um súdito de meu pai – respondeu ela, mordendo os lábios. – Mas tem um porém...

— E qual seria esse porém? – perguntou Qin, enquanto Kasias pegava mais fumo para mascar.

— Eu fui excomungada de Nan’Deru. Posso voltar apenas depois de completar a missão, então seria a minha redenção.

Ambos os rapazes abriram a boca fazendo “oh” e a fecharam rapidamente. Mais uma vez teriam de mudar a rota e fazer algo completamente fora do esperado, sendo que nem haviam deixado o país ainda.

— Bom... – disse Kasias, mascando fumo. – A gente dá um jeito quando chegar lá. Não deve ser tão difícil convencer o imperador a perdoar a filha.

O olhar de Oshandra se tornou mais escuro, como se uma sombra passasse tampando sua fronte. Todavia, ela sorriu e confirmou com a cabeça, deixando os rapazes desconfiados. Assim, começaram a discutir o próximo passo, mas escutaram três batidas na porta. Então, Qin abriu-a e deu de cara com seu irmão, Yuan. Ele entrou com alguns pedaços de carne seca e um olhar relaxado.

— Então, gente, o que perdi?