Amanhecer/Mudança

Oshandra estava desconfiada quando acordou, isso porque Kasias estava voltando de algum lugar com uma cara que ela nunca havia visto antes. Era uma cara misteriosa e inchada, ela sabia que algo nele havia mudado, como se alguém tivesse tirado um peso de seu corpo. Foi mais atencioso que o normal, chegando a dar bom dia e se deitar brevemente com seus animais. Algo tinha acontecido, algo drástico, e ela não sabia o que era e nem se incomodaria em perguntar. Apesar das primeiras impressões positivas, sabia que o rapaz às vezes agia de maneira irritante para afastá-los, ele não gostava de contato e lhe parecia meio oblíquo quanto a relações humanas.

Era importante salientar que isso se devia, principalmente, ao passado misterioso que trazia, o qual a princesa conhecia poucos detalhes. Ela sabia que não havia sido fácil: perder a vila, sacrificar o destino e matar uma calamidade antes de completar 13 ciclos de vida era insano. Isso sem contar que a sua capacidade de criar um campo delimitado indicava um grande trauma na vida. Entretanto, ela não era empática ou inocente o suficiente para acreditar que isso era o bastante para justificar algumas de suas ações. Os olhares que ele dava para Álvida a deixava enojada, e pelo que Etáoin contou de seu primeiro encontro, não era exatamente alguém atencioso e gentil, não com humanos ao menos.

Sua arrogância e imprudência eram vistas com maus olhos até mesmo por Qin, que era seu maior companheiro na viagem. Diversas vezes viu os príncipes de Xhun pedirem silenciosos perdões para os outros membros da comitiva, por atitudes impulsivas e impensadas do rapaz. Então, de modo geral, não gostava dele. Embora não fosse um cuzão e nem um criminoso como o Sir Veras, suas atitudes a desagradavam, mas sabia que poderia confiar, ao menos um pouco, nele. Assim, decidiu deixá-lo descansando e foi olhar a carruagem, na qual Etáoin dormia profundamente sob o encanto do rapaz. Segundo ele explicou, o encanto só seria desfeito quando o próprio dormisse e, desde então, ele não havia pregado os olhos há bastante tempo. Mesmo reclamando e praguejando, ele ainda se doava pela equipe.

Viu Álvida retirando seu manto de invisibilidade e chegou perto dela. Ela estava com uma cara de quem acabou de ter um bom sonho. A nobre sorriu para ela e fez uma reverência com a cabeça, abrindo espaço para ela se sentar junto. Notou que a moça tinha alguns grãos na mão, os quais comia sem prestar muita atenção. Então, ela pegou um pão relativamente novo de sua mochila e entregou-o à Oshandra, que o aceitou educadamente.

— Obrigada, Lady Billerion – disse, fazendo um sinal de respeito.

— Não há de que... – ela falou respeitosamente, como alguém do campo, sem usar o vocabulário nobre e “frufru” da maioria dos lordes.

— Teve uma boa noite de sono?

— Boa o suficiente para não me preocupar com as caminhadas noturnas de nosso digníssimo “protetor”, e você?

— Boa o suficiente para nem perceber que ele saiu até vê-lo voltar.

Ambas riram por um tempo e se entreolharam. Não confiavam umas nas outras, mas parecia que o convívio poderia mudar isso.

— Me conte, princesa. Como é viajar o mundo em busca de aventuras? – Álvida começou com um sorriso frouxo.

— Não é tão bom quanto parece. E se fosse por escolha própria, eu gostaria mais de viajar – fez uma pausa. – Mas como não é, sou forçada a ficar longe do meu lar.

— Mil perdões, eu não sabia que...

— Pois é, mas ao menos estamos voltando para Nan’Deru. Seja lá o que isso signifique para mim.

— Posso saber... O que foi que aconteceu? – perguntou receosa.

— Se realmente quiser... – disse e olhou para a cabana dos príncipes de Xhun e para Kasias, que mascava um fumo. – Vou tentar resumir, mas é uma grande história.

— Bom, se isso te ajudar, posso escutar – respondeu, com um tom de voz diferente, tentando ser mais gentil.

— Alguns ciclos atrás, eu e meus irmãos, Makelu e Íaman, fomos em uma comitiva diplomática. Nós íamos oferecer um acordo de rendição a uma tribo rebelde, os Naksthi, que são conhecidos por seus rituais de encantamentos. Nesses rituais são gravadas tatuagens em seu corpo, que garantem aptidões físicas sobre-humanas, em troca de uma dor lancinante que nunca se cessa. A viagem durou três dias, mas finalmente chegamos na tribo. Ela estava cercada por tropas imperiais de Nan’Deru e estava quase sendo dizimada, mas isso não estava nos planos do meu pai. Se ele assim desejasse, sem sair de seu trono, ele poderia obliterar a tribo rival e fazê-la de exemplo para as outras.

— É o que meu irmão faria, se pudesse – completou Álvida.

— Não duvido, mas meu pai verdadeiramente ama seu povo, e é amado de volta por eles. Ele quer ser visto como um deus de amor e de perdão, não aquele que julga e pune. Embora ele faça, relutantemente, os dois papéis. Logo, ele mandou a gente para escutar pessoalmente as exigências da tribo. Isso serviria também como um treinamento para nós, seus sucessores.

“A situação era lamentável, pois havia crianças ressecadas e mortas de fome, cadáveres nas ruas, famílias chorando a morte de seus guerreiros e civis, construções antigas desmoronadas, e uma história e cultura quase definhando. Foi, então, que me afeiçoei à imagem de uma pequena garota, que possuía pouco mais de 3 ciclos, plantando uma alva flor sobre o túmulo de sua mãe, enquanto cantava uma música de ninar comum em sua língua.”

O rosto de Oshandra mudou um pouco, tornando-se nostálgico, e ela sorriu triste.

— Isso me fez lembrar de minhas origens, pois eu também fui de um vilarejo tomado pela guerra. Minha família só sobreviveu por causa da generosidade de meu pai, que se apiedou de minha mãe e a desposou. Mesmo ela já tendo uma filha pequena, que sou eu, e ainda me colocando na linhagem do trono. Não sei se você me entende, mas aquela menina era eu, se não tivesse tido sorte. Então decidi ser a luz e a sorte dessa garota, por isso me aproximei e perguntei seu nome. Ela me disse qual era, e eu disse que seu nome mudaria desde então. Seria Lirua Mentelophep, pois eu a adotaria e daria um futuro digno para ela.”

“E, então, voltei com ela para minha casa, ficando quase quatro ciclos nela, conversando e negociando o acordo de paz por meio de cartas e de viagens esporádicas. Nesse meio tempo, me afeiçoei a Lirua e aos órfãos de guerra, assim decidi que cuidaria de todos e os levaria ao palácio. Assim como, eu fora uma vez salva, eles também teriam a salvação. Eram sete diminutas figuras que me seguiam para todo lado. Mas uma coisa que não esperávamos, era que os Naksthi pudessem ainda formar uma resistência. Logo que chegamos pela primeira vez, eles abriram os portões e nos receberam de braços abertos, mas uma unidade separatista sempre planejou um golpe. Nossas cabeças eram seu alvo, pois queriam provocar o meu pai e pegar reféns da família real.”

A pálpebra do olho da princesa tremeu, e ela segurou bravamente as lágrimas que teimavam em cair.

“Eu decidi ganhar a confiança deles, e participei do ritual para me tornar parte da tribo. Assim, por três dias, fui deixada sem água e comida, presa sem ver o sol para preparar-me para a pós-vida. Quando esse tempo passou, eles me ofereceram um banquete e me fizeram deitar com o líder da vila, um senhor que mal sabia o que estava fazendo de tão caquético, as ele foi gentil. Não sei o quanto sabe de encantamentos, mas a virgindade de uma moça é um poderoso ingrediente para a manipulação da Lei, e isso permitiu que eles fizessem meus ritos. Então cobriram a minha pele de tatuagens, com diversos significados e me disseram que as dores nunca cessariam. Entretanto, em troca, conseguiria um poder além dos reinos humanos, quase tão grandioso quanto o poder de um legista habilidoso. Ainda doem, minhas tatuagens. Elas nunca pararam de doer, não importa o que eu faça, mas é a minha sina, eu acho.

“Assim que o ritual terminou, preparamos para fechar o acordo de paz. A confiança deles em mim foi o bastante para acabar com as dúvidas dos sábios da tribo, mas não dos separatistas. Então, no meio da conferência, utilizaram um composto químico estrangeiro que explode ao entrar em contato com a atmosfera, o que vitimou vários de nossos homens e boa parte dos anciões da tribo. E foi nessa explosão que meu irmão, Íaman, perdeu sua vida… No meio da confusão, os separatistas invadiram a comitiva e mataram os órfãos, incluindo Lirua, que eu estava prestes a chamar de filha. Neste momento, o ódio e a confusão tomaram conta de mim, e os encantamentos seguiram os meus sentimentos, tornando-se uma jura de sangue.”

Oshandra estremeceu e fechou os olhos. Seus lábios grandes e macios tremiam ao falar.

— Quando dei por mim, a vila estava em ruínas. Eu ria por cima dos corpos dos separatistas, enquanto segurava a cabeça decepada de meu irmão, Makelu, que tentou me impedir. As tropas, que cercavam a tribo, bateram em retirada. Isto é, aqueles que sobreviveram. A partir deste dia, fui conhecida como a princesa de sangue, ou Besta de Naksthi. Fui excomungada de todos os meus deveres e perdi os meus direitos. Somente serei perdoada no dia em que eu provar, diante do meu pai, que tenho valor e que me arrependo de meus atos.”

— E você... – antes que Álvida pudesse perguntar, os irmãos Xhun saíram da tenda.

— Vamos? O tempo urge – disse Qin, e todos se levantaram para sair.