Kasias estava se cansando de dirigir sem dormir. Já haviam se passado mais oito horas, e ele tinha conseguido estancar os ferimentos de Qin a custo de suas últimas runas. O rapaz não iria conseguir criar encantamentos de última hora, não depois de perder sua última runa. Contudo, era necessário para estabilizar a situação de seu companheiro que ainda não havia acordado. O lado bom é que finalmente via resquícios de algum tipo de civilização antes de atravessar o deserto. Havia estradas de barro pouco usadas e algumas cabanas ao longe, as quais o faziam pensar que as periferias de Nan’Deru eram pouco povoadas. Isso levava a outra questão, de como eles faziam para defender suas fronteiras. Seu questionamento logo foi respondido quando algo tampou o sol. Eram duas asas enormes que bateram acima de sua cabeça em alta velocidade. Elas estalaram em seus ouvidos como trovões.
Seu cansaço falava alto, mas seus instintos foram mais incisivos. Antes que pensasse, sua lança estava em mãos e ele observava o pouso de uma enorme criatura em sua frente. Era coberta por penas prateadas e douradas, tinha o pescoço curto e parecido com o de um primata, e possuía uma penugem carmesim. O rapaz alternava o olhar entre a cabeça proporcionalmente pequena, meio humanoide da criatura e que possuía uma venda azul nos olhos, e sua cauda pontiaguda e longa como a de uma arraia. Era um Adwain, um animal quase em extinção, devido à falta de presas e de competição entre espécies, o qual vivia nas savanas de Nan’Deru. O rapaz pôde observar três guerreiros, de armadura dourada em seu dorso leonino, olhando desconfiados para ele.
Antes que pudesse fazer algum movimento de combate, Kasias ouviu o barulho de mais asas batendo. Eram mais três dessas criaturas, com guerreiros em seus dorsos que estavam os cercando. Ele tinha pouca chance de revidar no estado em que estava, e não conseguiria proteger Qin ferido daquele jeito. Então, levantou as mãos em sinal de desistência.
Um dos guerreiros deu uma ordem e os outros dois desceram da montaria, cercando o rapaz em uma postura desconfiada, mas amistosa. Um deles vasculhou o carro e encontrou Qin, o sangramento do guerreiro de Xhun havia parado, mas ela ainda estava inconsciente. O kalashtar, membro da guarda de elite da família real de Nan’Deru como Kasias havia deduzido, gritou algo para seu comandante, o qual assentiu e também desceu da montaria.
— Kasias, o Matador da Besta? – perguntou o comandante kalashtar com um forte sotaque.
O rapaz assentiu apreensivo com as vistas quase tombando pelo cansaço e sono.
— Estávamos lhe esperando – disse com um sorriso. – Nosso magnânimo faraó previu sua vinda, e lhe separou aposentos na capital. Venha descansar e se regozijar, enquanto louva seu nome.
Kasias hesitou, pois a capital ficava no centro do império, assim não havia como chegar em menos de quatro dias, mesmo voando incansavelmente em um Adwain. Isso sem contar que ainda não sabia do paradeiro de Oshandra, Etáoin e os demais. Algo na situação não se encaixava, mas ele estava muito cansado para pensar nisso. Então, antes que pudesse dizer algo, o capitão da guarda pegou um apito longo, feito de algo que parecia serem ossos de alguma criatura, e o soprou. Todavia, era um barulho inaudível para os ouvidos de Kasias. Então, pouco tempo depois, um raio de luz desceu dos céus e criou uma fina membrana na frente do capitão da guarda.
— Esqueci de me apresentar, sou Youpi, capitão dos kalashtar – disse com um sorriso de dentes brancos e perfeitos, estendendo a mão. – Entre no carro do faraó.
Kasias apertou a mão do grande homem de armadura dourada e deixou-se guiar por ele, que o fez atravessar a fina membrana de luz. Ele fechou os olhos por conta da claridade e os abriu novamente. Em choque, percebeu que estava dentro de uma enorme metrópole, com pessoas que passavam com seus afazeres e roupas típicas. Comerciantes bradavam promoções e outras iscas para locais e turistas e, ao longe, ele sentiu o cheiro de pão recém torrado, fazendo seu estômago roncar.
Kasias percebeu lentamente que estava em uma praça, ao lado de um chafariz que vertia água em um pequeno poço. Ele viu uma criança olhando na direção dele, antes de jogar uma moeda de cobre na fonte. A cacofonia inesperada o abalou um pouco, mas logo foi se acostumando ao local. Com um sobressalto, não viu os membros da guarda nem Qin. Isso fez sua ansiedade começar a atacar novamente, sendo aliviada apenas quando os viu do outro lado da praça. Eles pousavam seus Adwains, que carregavam o carro de Qin em suas patas galináceas. Então, viu dois guardas que carregavam Qin em uma maca, apressados para algum local. Logo, Youpi vinha na direção do rapaz, sorrindo.
— Gostou da primeira viagem no carro do faraó? – perguntou e gargalhou, observando o olhar perplexo do rapaz. – Com sua graça e onipotência, podemos nos locomover mais rápido que o pensamento em todo o nosso enorme território.
— Isso foi... – Kasias tentou analisar o que havia acontecido, e chegou a apenas uma conclusão: não tinha ideia de como o faraó havia feito isto. – No mínimo, impressionante.
— Não é? – disse Youpi rindo e batendo nas costas do rapaz com vigor. – Venha, o faraó o espera em seus aposentos.
O guarda o conduziu entre as espaçosas ruas da metrópole, as quais se mantinham livres apesar da grande quantidade de pessoas em fluxo. Kasias foi prestando atenção na arquitetura, e reparou que a maior parte das casas eram padronizadas em questão de forma e de material. Era utilizado, principalmente, arenito e granito em suas construções, com formato parecido a uma pequena pirâmide de teto cortado horizontalmente. Entretanto, entre as casas havia várias distinções de pinturas, de tecidos e de enfeites diversos, como se estivessem celebrando a pluralidade de ideias com várias cores diferentes e formas distintas. Também, entre os espaços das casas piramidais, tinham jardins suspensos que ligavam cada uma, apresentando frutos e verduras de diversas formas e cores, o que dava um ar refrescante à paisagem.
As barracas dos comerciantes eram simples, sendo a maioria de madeira, e algumas com detalhes em metal ou pedra. Contudo, cada uma era montada e exposta de uma maneira singular. Observar a capital de Nan’Deru, Ophe’lia, era como observar várias gotas de tinta formando uma grande pintura, pois era lindo, caótico e dinâmico.
Chegando mais ao centro da cidade, Kasias pôde perceber algo despontando no céu. Era uma imensa estrutura em formato de templo que rasgava os céus, como uma tentativa da humanidade de ultrapassar o divino. Já ouviu falar disso, e era o milagre arquitetônico nomeado de Zigurate, uma das construções mais belas do mundo e lar do faraó de Nan’Deru, o observatório das estrelas. Assim, subiu por vários minutos as extensas escadarias que rumavam ao primeiro andar do templo, observando a cidade ao redor de uma altura respeitável. Quando finalmente chegou ao primeiro andar, viu a sala do trono. Era um enorme saguão repleto de ouro e de pedras preciosas, com vários tecidos espalhados pelas paredes e teto. Além de um enorme e imponente trono dourado, no qual repousava um homem.
O faraó possuía um cabelo crespo raspado dos lados e um olhar firme e severo, porém relaxado. Sua cabeça tombava levemente de lado e repousava em um de seus braços que se recostava ao trono, utilizando-o de apoio. Usava várias joias que pendiam por todo seu corpo, e um fino tecido de seda branca e roxa. No entanto, sua presença era incomensurável, podendo fazer o próprio Ndindhri se sentir uma criança que toma bronca de seus pais. O orgulho e a ambição do homem podiam ser sentidos como se fossem névoa espessa na sala. Então, Kasias, instintivamente, se ajoelhou, pois aquele homem era um verdadeiro deus na terra.
— Saúdam o faraó, o Deus vivo, rei do sol e do deserto, patrono de Nan’Deru, possessor de tudo que existe sobre esse mundo, sendo aquele que desafiou o vazio: Aubejang II! – uma voz ecoou dentro da sala do trono.
Kasias mal percebeu o arauto a poucos metros de si, o qual disse a introdução do faraó. Também não viu os guardas dourados que o rodeavam atentos, porém relaxados. A aura de seu líder poderia ser vista até por Kasias, que irradiava e distorcia o espaço ao seu redor. A maior lição de humildade que havia visto. “Sempre há um peixe maior”, disse Yhormgandr uma vez.
— Saudações, Matador da Besta – disse o faraó em voz autoritária, porém gentil. – O que aconteceu com o resto da sua caravana?
— Saudações, Grande Rei. Separei a caravana em duas para evitar a captura do elixir da vida em Kamanana, em um ardil dos inimigos. A maior parte dos combatentes foi reduzir as forças inimigas, enquanto sua filh... Oshandra levou as escravas e o elixir por um caminho alternativo.
— Compreendo. E o que o levou a tomar essa decisão? Não seria melhor ir todo mundo pelo caminho alternativo? E por que vocês estão ao norte? Sendo que o Império Vkstri fica ao sul?
— Infelizmente... – Kasias hesitou. – O elixir foi corrompido por uma calamidade, e não temos tempo suficiente para despistar inimigos, enquanto uso parte de minha energia e das runas para mantê-lo desacordado. Esse também é o motivo de estarmos ao norte, pois Oshandra nos disse que existe um legista especializado em almas por aqui, o qual pode nos ajudar a liberar o elixir e retornarmos à viagem.
O faraó não parecia surpreso, nem demonstrou reação diante das palavras de Kasias. No entanto, fez um gesto para um de seus servos, que saiu da sala tranquilamente.
— As histórias batem então – o faraó disse, parecendo um pouco aliviado. – Mas temo não ter boas notícias para você.
Houve silêncio por algum tempo, e Kasias pode ouvir o som do próprio coração batendo com a ansiedade.
— O elixir está em segurança e ainda dorme, mas sei que você não durará mais dois dias o mantendo assim – disse ele, levantando uma sobrancelha. – As escravas já estão bem acomodadas e bem servidas, mas temos algumas notícias negativas para você.
— Quais, Grande Rei?
— A primeira delas: Oshandra está presa nos calabouços por ter infringido a lei de retorno – disse, fazendo o queixo de Kasias cair. – Segundo: o legista que manipula almas está desaparecido. Terceiro: o império Vkstri infringiu o acordo de paz com nosso território, então não ajudaremos mais na missão. E quarto: tivemos avistamentos frequentes de cavaleiros carmesins em nosso território.
A ansiedade de Kasias estava quase evoluindo para uma crise de pânico, mas ele tentou continuar firme no chão. Embora fosse visível a tremedeira em seus joelhos, também não sabia por onde começar.
— Além do mais, temo não ter mais tempo para papear com você nesse dia. Youpi o levará aos seus aposentos, nos quais você poderá ter sua noite de descanso sem se preocupar com o elixir. A calamidade está sob controle em meu território, pois ele não ousaria atacar alguém enquanto estiver aqui.
Antes que Kasias pudesse falar algo, o servo, que Aubejang II havia despachado há pouco tempo, retornou com uma prisioneira presa por correntes. Era Oshandra que parecia bem, apesar de tudo, mas isso não diminuía a preocupação do rapaz. Kasias abriu a boca para falar, mas Youpi interveio antes que algo fosse dito, provavelmente salvando a vida de Kasias. Ao mesmo tempo em que o puxou para uma porta lateral, em direção a saída de Zigurate.
Passados alguns minutos de silêncio constrangedor e agoniante enquanto Youpi conduzia Kasias por Ophe’lia, finalmente chegaram a uma grande casa, que possuía um chafariz na frente e um lindo jardim repleto de flores típicas da região.
— Você vai ficar aqui – disse ele com um sorriso amistoso e reconfortante. – É uma embaixada para diplomatas, bem luxuosa, sendo apenas para visitantes de honra – deu uma risada. – Apesar de tudo, acho que vai se sentir à vontade. Seu cavalo e sua Frnan já estão lhe esperando.
Essa informação fez seu dia melhorar um pouco. Kasias ainda não havia raciocinado tudo o que o faraó falou com ele, pois ainda estava muito cansado e precisava urgente de descanso. “Bem, se Ndindhri acordar, deixe o faraó lidar com isso. Que se foda, preciso dormir”, pensou. Era a única coisa que passava por sua cabeça no momento. Então, cambaleando, foi na direção à casa, com as chaves que Youpi lhe dera na mão, mas antes olhou para trás e perguntou:
— Youpi, quando poderei visitar Qin e os demais?
O guarda coçou o queixo e pensou um pouco, olhando para cima. Depois olhou para o rapaz, e disse com um sorriso.
— Acho que amanhã ele já pode receber visitas. Se preocupe em dormir primeiro, vou buscar as serviçais Wogans para você. Elas vão cuidar de suas necessidades durante sua estadia, afinal – ele deu de ombros, como se não entendesse o conceito. – Elas são “suas”.
— Obrigado, e tenha um belo resto de dia – disse, tentando sorrir.
Abriu a porta da casa, mas quase não reparou no que tinha dentro, pois foi direto para os estábulos ver seus amigos. Logo viu Magnun pastando feliz e, ao fundo, Dorothy tomando banho de sol próxima a um lago artificial. Kasias cambaleou na direção deles e abraçou Magnun, que fez a festa quando ele chegou. “Mestre, que bom, que feliz! Você está vivo, você voltou, quero cenouras”, isso era o que Kasias escutou em sua cabeça repetidamente. Contudo, não respondeu, pois já estava dormindo pesado.