Decência/Aceitação

Depois de um lanche, de um banho e de um pequeno descanso, Kasias resumiu o que aconteceu desde que entraram em Vilalegre para Etáoin, enquanto Ritha tomava uma xícara de café usando suas novas roupas com pompa. Etáoin ouviu tudo com atenção, mas Kasias decidiu deixar alguns detalhes de lado: como a verdadeira identidade de Sir Veras, e o que ele queria fazer com ela. Contudo, suspeitava que Ndindhri já tinha contado, ou que contaria cedo ou tarde. Isso porque ele foi o vetor da notícia para o resto do grupo. Além do mais, achava suspeito que a última calamidade que encontraram tinha algo a ver com Ndindhri, pois o cavaleiro que foi transformado por ele acabou virando um servo da criatura. E, provavelmente, Yuan também se tornou mais um membro do exército macabro daquele ovo estranho.

Ele tinha que pensar em algum plano de contingência para lidar com a calamidade, e em um para impedir o avanço de Dreyfus. “Mas, por que era vital para o plano matá-lo?”, pensou. Apenas uma possibilidade percorria sua mente: Ndindhri precisava de Etáoin para algo, que ele via como a salvação da humanidade. Contudo, Dreyfus a queria por outro motivo, ainda oblíquo aos seus olhos. Havia também o problema da feiticeira, “foi ela quem enviou a calamidade? Por quê? E o que ela quer com o elixir?”, pensou. Ndindhri também parecia ter uma boa ideia do motivo, mas não se preocupou muito sobre isso.

— Kasias – Etáoin disse ríspida. – Você dormiu? A gente estava conversando – o rapaz olhou para ela, que tinha um cenho franzido e uma expressão de desaprovação no olhar.

— Na verdade, eu tenho algo a fazer – Kasias disse e se levantou bruscamente. – Desculpe, Etáoin, mas gostaria que ficasse aqui com Ritha e Lorrene.

— Como ousa, ó grandioso Kasias, deixar três damas lhe esperando, enquanto vai resolver problemas. Não tem coração? Ou entre as pernas só tem um enfeite de jardim real? – disse com deboche. – Ó Ritha, o que iremos fazer sozinhas sem a presença de um grande e poderoso macho alfa para nos proteger?

Kasias revirou os olhos, enquanto Ritha fingia estar extremamente amedrontada de ser deixada sozinha. Ele pôde ouvir Lorrene resmungando na cozinha: “dama é um caralho de Grîst. Sou uma senhora, mas se me botar para cuidar desse jovenzinho aí, arregaço o peruzinho dele”. Então, o rapaz percebeu que era sua deixa. Ele se sentiu um pouco sujo, e foi de encontro à porta com calafrios. Assim que ele saiu, as garotas entreolharam-se e começaram a rir. Etáoin puxou sua cadeira para perto do sofá onde Ritha descansava e ofereceu um pão doce, o qual a garota aceitou.

— Ritha, não é? Está gostando de Nan’Deru? – perguntou com um sorriso.

— Demais – enfatizou a jovem Wogan. – Mest... O Kasias me libertou e me deu dinheiro para explorar a cidade. E todos aqui foram muito gentis comigo – os olhos dela brilharam. – Já comeu Arameji?

— Não. O que é isso? – perguntou confusa.

— Vem comigo, vou te mostrar – ela disse e pegou a mão de Etáoin, tropeçando nas próprias roupas brilhantes e espalhafatosas, e a levando à despensa.

Pegou uma pequena caixa ornamentada em cima de uma das estantes. Ela tinha desenhos de espirais entalhados em madeira de árvores tropicais.

— Experimente – disse, abrindo a caixa e mostrando uma espécie de massa folhada com carne assada e um molho vermelho. – É farinha de mandioca com carne de costela de boi assada no mel, e um pouco de creme de tomate com maçã.

Etáoin olhou desconfiada. O prato não tinha uma má aparência, pelo contrário. Entretanto, a lista de ingredientes a deixou desconfortável. Decidiu provar mesmo assim.

— É uma delícia – disse com os olhos brilhando. – Admito que não esperava que fosse tão bom – olhou para sua nova amiga e sorriu.

Conversaram mais um pouco na despensa até que Etáoin reparou em um pequeno embrulho escondido no canto, junto a um bilhete e a algumas fitas brilhantes.

— O que é isso? – perguntou, chegando perto.

— Ah – Ritha expressou, ficando um pouco sem graça. – Por mais que Kasias tenha falado que ele não me libertou esperando nada em troca, eu...

— Ah, entendo – Etáoin disse, sorrindo. – Mas não pode mimar ele demais. O ego dele já é grande o suficiente sem nós por perto, imagina com uma garota fofa entregando presentes para ele.

— Não pensei dessa maneira – ela disse corada. – Eu só fiquei mal por não poder retribuir.

— Retribuir? – Etáoin perguntou, ficando séria um instante e olhando fundo nos olhos de Ritha. – Amiga, escute. Nenhuma pessoa em sã consciência e com boas intenções teria um escravo. Te libertar é o mínimo que podemos fazer e, de certa forma, é o nosso povo que lhe oprime – ela fez uma pausa, e segurou os ombros da garota. – Eu entendo a sua intenção, de verdade, e a admiro por isso, mas nem mesmo o babaca do Kasias acha algo razoável a posse de escravos. Todos que são no mínimo empáticos acham essa situação terrível. E nos sentimos culpados por isso.

Ritha calou-se por uns instantes, lágrimas começaram a cair de seus olhos.

— O meu ponto é – continuou Etáoin. – Todos nascemos para sermos livres. Você tem sua gratidão ao Kasias, mas ele não te deu liberdade, ele apenas te devolveu – ela abraçou a amiga. – Não se contente com pouco, pois tenho certeza de que até aquele troncho gostaria que você fosse feliz, e não se sentisse endividada por ele ter feito o mínimo para ajudá-la. Me entende?

Ritha fez que sim com a cabeça, enquanto chorava. Apesar de sinceras e duras, as palavras de sua amiga lhe traziam conforto, depois de tanto sofrimento, de humilhação e de desespero. Ver alguém disposto a estender a mão a ela tinha sido algo especial, e ela não saberia nunca como retribuir o favor. No entanto, depois de ouvir isso, ela finalmente entendeu. Ele não fez isso, porque era um santo ou um homem de coração puro, tampouco porque esperava algo em troca, ele fez isso simplesmente porque era o mínimo que alguém decente poderia fazer. Seus padrões eram muito baixos. Isso não significava que ela não sentia gratidão pelo rapaz, pelo contrário, agora percebia que ele não era uma única pessoa entre várias. Era só que as pessoas com quem ela tinha convivido até então eram aquém da decência.

— Mas só por curiosidade – Etáoin começou. – O que foi que você comprou para ele?

— Eu queria algo que fosse útil – disse, entre um soluço e outro. – Então gastei quase todo o dinheiro em uma pedra mágica.

— Pedra mágica? – Etáoin olhou preocupada. – Como assim?

— É só jogar no inimigo, que ele perde todos seus movimentos. Depois disso, é fácil ganhar – disse, ainda chorando.

— E você gastou quanto de dinheiro nisso? – Etáoin perguntou, mordendo o lábio inferior.

— Três partes em quatro. O resto comprei em roupas e em comidas típicas.

— Ritha...

— O que foi?

Antes que pudesse dar mais um sermão, ouviu uma batida firme na porta, porém educada.

— Vou atender – Ritha disse e levantou-se rapidamente, esfregando os olhos lacrimejantes e indo em direção à porta.

Ela abriu-a com um sorriso e perguntou:

— Pois, não?

Dois homens de armadura dourada, pele escura e cabeça raspada a olharam de volta.

— Saudações. O Matador da Besta está?

— Não, acabou de sair – ela respondeu, estreitando os olhos. – Querem que eu deixe um recado para quando ele voltar?

— Sim, claro – disse o mais baixo deles depois de observá-la e concluir que são aliadas de Kasias. – Avise a ele que o príncipe de Xhun acordou e que procura pelo seu irmão. Tenham uma boa noite – fizeram uma reverência e saíram marchando.

Ritha olhou preocupada para Etáoin, que mordia os lábios novamente.

— Pobre Qin, ele ficará arrasado – a jovem Wogan murmurou.

— Vai mesmo – Etáoin concordou e ficou pensativa. – Acho melhor... A gente dá a notícia para ele, sabe? O Kasias pode ser mais próximo dele, mas é tão delicado quanto um Fürnan. Ele não saberia lidar com os sentimentos do Qin.

— Mas Kasias nos mandou esperar aqui – ela afirmou um pouco receosa.

— Foda-se ele. Ele não manda em mim e nem em você. Além do mais, é uma situação atípica; é para um bem maior.

Ela puxou a mão de Ritha e a levou por entre as ruas limpas, mas cheias, de Ophe’lia. A jovem Wogan seguiu de cabeça baixa pela multidão, descendo e subindo ladeiras, passando por becos, e se perguntando como Etáoin sabia o caminho. Até que enfim chegaram ao Zigurate, sendo a maior coisa que Ritha havia visto desde então. Era um monumento feito para ferir os céus com o orgulho dos homens, como um grande rasgo na paisagem, que ao mesmo tempo parecia artificial, também a completava. Ela já havia o visto de longe, mas deste ângulo, olhando para cima, não pôde evitar de se sentir pequena e insignificante perante à estrutura.

Na porta estava escrito algo no idioma de Nan’Deru, porém outros períodos em idiomas que não reconhecia estavam a seguir. Aparentemente, era uma repetição do mesmo período em línguas diferentes: “Minha vontade deverá subjugar o paraíso, e meu destino é o destino dos homens. Nesta terra que entras, só tem um Deus, e seu nome reverberará pelas montanhas e pelos desertos”. Antes que pudesse refletir a grandiosidade dessas palavras, as portas se abriram. Ambos os guardas, que estavam bloqueando a passagem, recolheram suas alabardas e deixaram-nas passar. O olhar em seus rostos parecia distante. Etáoin sussurrou algo bem baixinho, o suficiente para Ritha não escutar, mas a jovem Wogan deu de ombros e passou mesmo assim. Assim, elas passaram por uma infinidade de corredores e portas, chegando na enfermaria.

A primeira coisa que viu quando entrou foi a figura de Qin enfaixado. O seu braço esquerdo seguia até pouco antes do cotovelo e terminava em um cotoco sangrento coberto por bandagens. Dois guardas em sua frente fizeram uma reverência e saíram, deixando-o sozinho por alguns instantes. Então, ele puxou uma flauta da cabeceira de sua cama e começou a tocar uma linda música, que encheu o coração de Ritha de aceitação, de luto e de saudades. Viu a silhueta do homem de cabelos longos e lisos olhando pela janela, enquanto tocava seu réquiem, parece que ele já sabia da notícia. Qin perdeu quem mais amava neste mundo, mas seu semblante não demonstrava tristeza ou raiva, apenas serenidade.

Ao fim da música, ele abriu os olhos e virou-se para trás, observando as duas moças que o olhavam. Etáoin tinha um semblante preocupado e confuso, mas Ritha segurava as lágrimas, estando visivelmente emocionada por ele.

— Mas que bom que vejo duas lindas moças me esperando após uma notícia tão trágica – ele disse e deu um sorriso fraco. – Venham até aqui. Senti saudades suas, Etáoin, e quero te conhecer melhor, jovem Wogan.

Etáoin se aproximou receosa, como se Qin fosse um objeto frágil que precisasse de cuidados. Ela não parecia entender suas atitudes, e esperava mais raiva, tristeza ou algo mais explosivo. Entretanto, isso era porque não conhecia bem o guerreiro de Xhun e sua filosofia de vida. Já Ritha se aproximou educadamente, pegando um jarro de água. Ela colocou em um copo um pouco do líquido, e ofereceu-o ao guerreiro ferido com um olhar piedoso, mas resignado. O contraste entre as duas garotas fez Qin sorrir novamente. Era claro perceber quem havia passado por mais perdas, e quem valorizava mais a aceitação, rechaçando a vingança, o ódio ou a raiva.

— Qin, eu... – Etáoin começou, querendo se desculpar, mas sabia que esse ato seria errado. Ela iria de encontro às convicções dos irmãos, mas a culpa a remoía por dentro. Era por causa dela que Yuan morreu, e que o sobrevivente havia perdido o braço. – Desculpe.

— Se sente culpada? – Qin perguntou e olhou para ela de maneira séria, apesar de ter apenas nove ciclos a mais que a garota, era claro que ela não havia amadurecido o suficiente para entender quem era o verdadeiro culpado da situação. – Pois não sinta. O nosso objetivo desde o princípio era caçar e matar uma calamidade. Meu irmão deu a vida por esse objetivo, mas falhou. O único culpado é ele, então não se martirize por isso.

A frieza e a serenidade nas palavras de Qin a surpreenderam, mas ele não estava de todo errado. Era algo simples e cru: seu irmão falhou no objetivo, assim como todos os outros. A calamidade era simplesmente forte demais para ser derrotada por eles.

— E o que vai fazer agora, Qin? Vai continuar a viagem conosco? – Etáoin perguntou, sendo recebida com um afago na cabeça.

— Não será necessário – Qin disse com um olhar doce, mas sério e determinado. – Vou apenas limpar caminho para vocês continuarem.

— O que quer dizer com isso? – perguntou a garota.

— A calamidade que nos atacou em Kamanana, ela vai nos esperar na saída de Nan’Deru. Ela tentará interceptar a nossa ida à Vkstri.

— Como sabe disso? – Etáoin perguntou surpresa.

— Kasias passou aqui e me disse – ele respondeu sem pestanejar. – Além do mais, é conveniente, não? Nossos objetivos se encontram até certo ponto. Após matar a criatura, voltarei para casa e serei imperador.

— Kasias esteve aqui? Como ele pôde saber disso? – Ritha perguntou quase ao mesmo tempo que Etáoin.

— Isso ele não me contou e nem planeja me contar, mas confio nele.

— E você vai... – Etáoin começou e olhou para o braço perdido de Qin. – Derrotar a criatura?

— Com toda a certeza.

— Qin... – Ritha começou a falar. – Pelo que ouvi da criatura, isso é suicídio. Você não planeja...

— Acredita que não consigo derrotá-la?

— Nem mesmo Kasias conseguiu.

— Tem uma grande diferença entre eu e ele, de fato. Mas nada me faz pensar que eu perderia para a criatura – ele respondeu e olhou para as garotas. – Enquanto estive desacordado, consegui finalmente atingir meu ápice.

As garotas se entreolharam confusas, mas decidiram não tentar entender ou argumentar. Elas apenas deixaram o príncipe fazer o que deveria ser feito. Logo depois. souberam que Qin ainda não tinha recebido alta, mas insistia com os médicos e enfermeiros para ser dispensado do Zigurate. Ele queria poder descansar na casa provisória de Kasias, junto com seus companheiros.

Como não possuíam autoridade o suficiente para prendê-lo, os médicos desistiram de argumentar, mas convenceram-no a levar um enfermeiro para cuidar dele. Era um grandalhão gentil de cabeça raspada nas laterais chamado Lugher. Foi então que voltaram para casa, enquanto esperavam o descanso de Qin e o retorno de Kasias. Três dias se passaram.