Kasias penetrou por entre os corredores escuros do subterrâneo de Zigurate, pois acreditava que Oshandra tinha ficado presa em um quarto ou aposento particular. Isso porque era uma princesa e filha do chamado “deus vivo”. No entanto, para a sua surpresa, o faraó havia ordenado que ela fosse presa nas masmorras comunais, lugar que os criminosos comuns ocupavam.
“Ao menos ele separou uma cela para ela”, pensou Kasias com amargor. Assim ficaria mais seguro – para os outros prisioneiros, é óbvio. “Talvez prender Oshandra junto com outros presos seja uma solução para reinos que a população carcerária exceda o limite de locais disponíveis”, pensou com um toque de sarcasmo. Os guardas o deixaram na frente da cela dela, mas não pôde ver com detalhes o que tinha lá dentro devido à escuridão. Então, Kasias viu um vulto se mexendo e ficando sentado, enquanto o barulho das correntes passava pelos seus ouvidos.
— Kasias... – começou ela. – Bem-vindo à minha humilde residência. Gostaria de uma xícara de café? Ou prefere chá?
— Oshandra, pelo menos não perdeu o bom humor.
— A que devo sua visita?
— Nada em específico, só vim perguntar se quer que eu retire você daí.
Ao dizer isso, ambos os guardas que vigiavam a cela ficaram tensos e seguraram a respiração. Contudo, não olharam para o rapaz e mantiveram sua postura.
— E enfrentar meu pai? Só pode estar louco.
— Ele não ousaria perder parte do seu exército, e talvez se ferir em batalha para evitar a fuga de uma prisioneira. É mais provável que só aconteçam... Alguns problemas no caminho, e para o resto de sua vida.
Ouviu uma risada dentro da cela, mas a voz da moça estava fraca, mais do que o rapaz imaginava.
— Não será necessário. Meu julgamento será amanhã, morrerei ou...
— Ou?
— Ainda tenho um truque na manga, mas é irrelevante no momento – disse ela.
— Talvez, então, nós devêssemos discutir isso em um local mais reservado – disse e olhou para os guardas. – Vocês sairiam gentilmente se eu pedisse com educação?
Nenhum deles se mexeu, mas um deles fechou os olhos e soube que a única coisa que poderia fazer era rezar para que Aubejang viesse salvá-lo. Era impossível enfrentar um legista e sair vivo para contar a história. Então, houve silêncio por alguns instantes. Quando o soldado piscou, Kasias já não estava mais lá, muito menos Oshandra.
— Pronto, assim está bem melhor – Kasias murmurou, olhando para sua companheira de viagem.
Ela estava suja e maltrapilha, além de estar pálida e mais magra. Contudo, ela ainda tinha um quê de realeza.
— Que lugar é esse? – Oshandra perguntou enquanto olhava ao redor, observando os espaços vazios, as manchas de tinta luminosa no céu e um intenso infinito que se prolongava à distância.
— Meu campo delimitado. A maior obra de arte produzida pelo homem e, também, um reflexo da minha alma.
— Por que ela é assim?
— Nem mesmo eu sei. Já refleti várias vezes sobre isso, mas não cheguei a nenhuma conclusão – ele mentiu, pois sabia muito bem o que isso significava.
— Me parece... Solitário – disse Oshandra com pesar. – E frio. Você se sente assim o tempo todo?
— Apenas enquanto respiro – brincou o rapaz, fazendo algumas luzes piscarem em tom amarelo. – Mas não viemos aqui falar de mim, então me diga seu plano.
Oshandra massageou os seus pulsos, que estavam sem correntes, e decidiu deixar suas preocupações quanto ao ambiente de lado.
— Não tenho plano. Vou apenas pedir para decidir minha punição.
— Você vai pedir para ser exilada de novo? Acredito que não vai funcionar uma segunda vez – ele disse, sentando-se no “chão” que não existia.
— Não – ela disse e mordeu os lábios. – Decidi que vou continuar a viagem com vocês, custe o que custar.
— Por quê? Nada além do dever lhe comanda a continuar, e Etáoin está em boas mãos agora.
— E você ainda pergunta? Já parou para pensar o que a Imperatriz quer com ela? Ela pode se machucar, ser torturada, ou alvo de experimentos. Ela...
— Ela aceitou seu destino. Por que você não pode fazer o mesmo? A sina dela é ser usada como um objeto especial na coleção de Ascléa, e a sua é morrer por ordens de seu pai.
— Destino? Logo você está dizendo isso? Achei que não acreditava nessas coisas.
— Não até eu vê-lo.
— Do que está falando?
— Não importa o que faça em sua jornada, o princípio e o fim não se alteram. Tudo está predeterminado.
— Não entendo, logo você... Se tornou alguém tão passivo e fraco – ela disse, fazendo uma cara de nojo. – É um covarde se acredita nisso. Nunca teve liberdade para começo de conversa, pois está preso em si mesmo.
— EU SEMPRE FUI ASSIM – esbravejou, fazendo-a se sobressaltar. – NÃO SOU O HERÓI QUE ACREDITAM QUE SOU, OU O GUERREIRO QUE SALVA DONZELAS. EU NEM MESMO PEDI POR ISSO!!!!!
— Kasias... O que aconteceu?
— Aqui, eu não posso mentir – ele disse, tentando se acalmar. – Você está vendo o que realmente sou: um garotinho assustado, covarde e sem saber onde ir. Sempre tentei lutar contra este tal de destino, matei e fiz atrocidades, quebrei tabus e fiz o impossível acontecer. E tudo isso mudou algo? A Bruxa me mostrou tudo, não há esperança! Nada que eu fizer vai mudar alguma coisa.
— Mudar? Do que está falando? Que Bruxa? Kasias, você não está fazendo o menor sentido.
— Eu tentei tantas vezes – o rapaz disse, tremendo de ódio. – Em todas as probabilidades o resultado deu o mesmo: esta missão vai fracassar.
— Kasias, acalme-se. Vou contar meu plano, ok?
— Diga.
— Nós vamos conseguir isso juntos – ela disse, pegando na mão dele. – Confia em mim.
O rapaz desviou o olhar, mas Oshandra pôde ver, em seus olhos cor magenta, um desespero e estresse enorme. No entanto, lá no fundo viu também uma centelha de esperança.
— Meu pai não se tornou poderoso assim à toa – ela começou. – Todos os faraós recebem uma benção ao assumir o trono, tornando-se imunes a doenças, ao cansaço e até mesmo a fome e a sede. Mas em troca, se o povo adoece, eles também adoecem. Um governante é a sombra de seu povo, então se o povo está bem, o faraó também o está.
Kasias assentiu, isso tudo ele já sabia, pois era uma tradição milenar em Nan’Deru. Ser faraó é muito exaustivo psicologicamente, além de que a quantidade de governantes que cometem suicídio na história de Nan’Deru é um número absurdo.
— Mas meu pai decidiu ir além – ela continuou e Kasias a olhou. – Nan’Deru passava por um período de estiagem, de revoltas, de crise econômica e de guerra civil. Ele, então, decidiu que o povo não precisava de um rei que os observava de longe, e sim, de um Deus que os acompanhava de perto. – Kasias pareceu mais curioso após essa frase. – Ele juntou os maiores legistas do reino para um único ritual. Um ritual de compartilhamento de destinos.
— Do que está falando? – perguntou, pois se lembrou do ritual que fez com Qin e Yuan, mas não parecia que ela estava falando disso.
— Por 15 dias e 15 noites, os legistas prepararam meu pai para o ritual. Ele deveria ficar desperto e consciente durante todo o processo, pois os legistas tinham que preparar seu corpo para o que haveria de vir.
Kasias começou a duvidar da história de Oshandra. “Que ritual seria tão grandioso assim sem afetar a realidade como um todo?”, pensou.
— Então, no décimo sexto dia, colocaram meu pai em seu trono dourado. Eles fizeram um esquema para que, um a um, todos os habitantes viessem e dissessem se aceitariam ou não o ritual. Aqueles que não aceitaram, se mudaram para a periferia do reino, onde tem pouca ocupação. Meu pai deu terras e suprimentos, e ajudou em sua viagem. Mas aqueles que aceitaram, receberam a glória do Deus Vivo.”
“Do que ela estava falando? Como isso era importante para explicar seu plano?”, pensou confuso.
— Este processo durou dois meses. Meu pai estava no limite da exaustão, mas todos os requerimentos foram cumpridos. Então ele tinha que começar seu sacrifício – ela explicou. – Um bom guia, é aquele que mostra o caminho, mas um excelente guia, é aquele que compartilha o caminho contigo – ela sorriu ao recitar isso. – É um antigo provérbio de nosso país, e se aplica perfeitamente à sua decisão. Assim, ele ofereceu às leis da natureza o termo do contrato. Todos aqueles que aceitaram, seriam agraciados com a benção do faraó e seriam protegidos de todos os males exteriores. Mas, em troca, parte de suas almas seriam absorvidas pelo meu pai quando morressem.
— E para que ele fez isso?
— Lembre-se de que o país estava em guerra por falta de recursos. Mas eu ainda não terminei os termos do contrato, pois ele tinha uma cláusula excepcionalmente dolorosa para meu pai – ela explicou. – Cada dor, decepção, abuso ou injúria sofrida por seus súditos, assim como cada momento de felicidade, de prazer ou de alegria, ele sentiria todos eles. Ele passou por todos os males que seus súditos já sofreram, e continua passando por todos os males que eles ainda sentem. Assim continuará sofrendo por todos os males que sofrerão, até sua mente, ou seu corpo se romperem. Mas em troca, ele ganhou o poder absoluto, prosperidade, poder militar, bons tempos e até mudanças no clima e no tempo. Tudo eram parte da vontade DELE. E seus súditos, ao morrerem, se tornarão parte DELE.
— Isso é um absurdo! Nenhum humano conseguiria manter sua sanidade após isso – Kasias retrucou. – Que tipo de maníaco faria isso consigo mesmo?
— Aubejang II conseguiu. Ele manteve sua sanidade e se tornou o primeiro Deus a construir o paraíso perfeito na terra.
— Uma aberração, isso sim. A quantidade de estresse que ele...
— Não importa – ela interrompeu. – Um governante existe em função do povo, não em função de si. Se sacrificar e tomar as dores de seu povo, isso é um verdadeiro rei, um verdadeiro Deus.
— E o que isso tem a ver com seu plano?
— Vou pedir pelo julgamento da “Avesta”.
— E o que seria isso? – perguntou o rapaz.
— Uma punição sem precedentes até agora, e só pode ser aplicada por meu pai. Tem seu nome baseado no espírito da vingança – ela respondeu e tremeu um pouco. – Ele tem a alma de todas as pessoas que eu já fiz algum mal, então ele pode me fazer passar por todos os males que já cometi. Isso dentro de minha mente, e me perturbando com centenas de espíritos vingativos.
— Está maluca? Isso vai acabar com você.
— Se minha consciência sobreviver a isso, estarei livre de todos os meus pecados, e poderei ir junto com vocês. Assim como poderei retornar para casa, depois de tanto tempo – ela respondeu e uma lágrima escorreu de seus olhos amendoados.
Kasias desfez o campo delimitado. Para os guardas que observavam de fora, parecia apenas que ambos haviam sumido por pouco mais de 5 segundos e reaparecido da mesma maneira, como se nada tivesse acontecido. Contudo, decidiram acreditar que isso era uma ilusão, ou algo que inventaram na própria cabeça.
— Então, te aguardo no final do teste – Kasias disse, parecendo bem mais frágil que a própria Oshandra, mas ela decidiu não ressaltar isso.
— Obrigada por entender, Kasias.
— Não, eu não entendi – ele rebateu e a olhou uma última vez antes de se virar para ir embora. – Mas você decide o que faz. Não tenho o dever e nem o direito de opinar sobre sua decisão – ele virou de costas e saiu andando pelo caminho que entrou. – Te vejo na fronteira de Nan’Deru.