Tentação/Solidão

Kasias se aconchegou no sofá de sua residência provisória. Etáoin estava dormindo, pois não era uma pessoa muito matinal. Já Ritha estava lendo um livro sobre plantas, ou algo assim. Kasias não prestou muita atenção, mas a garota estava lendo bastante os livros da casa, o que era uma boa notícia para ela. Por outro lado, Lorrene não quis sair de seu papel de escrava, dizendo estar muito velha para mudanças, então continuou limpando a casa. O rapaz não reclamou, mas achou o fato curioso. Assim, fez uma nota mental para pesquisar melhor sobre este fenômeno: “por que pessoas mais velhas se tornam resistentes a mudanças?”.

Decidiu turistar pela cidade, pois ainda não o tinha feito. Ele estava sempre sendo arrastado de um lugar a outro, e, sem Sir Veras, Oshandra, Yuan ou Qin por perto, ele era o único que poderia tomar decisões na missão. Logo, ele passou pelo pátio e viu Dorothy deitada de barriga para cima, enquanto Magnun olhava para ele com súplica: “Vamos correr, mestre. Vamos brigar com alguém. Meus cascos estão pedindo por adrenalina”. Então, ele chegou perto de seu cavalo e o afagou. Magnun não estava amarrado por nada, mas nunca saiu de perto de seu dono, por algum motivo que Kasias não sabia.

— Magnun, deixa eu te perguntar. O que fará quando eu morrer? – perguntou com curiosidade.

“Vou chorar, mestre. E depois me vingar, matando o inimigo e o arrastando pelos campos. Depois morrerei”. A resposta de seu cavalo o surpreendeu, deixando-o levemente emocionado.

— Magnun, quero que viva, entende? – o rapaz disse, olhando firmemente nos olhos do equino.

“Quero que você viva também, mestre” disse, lambendo sua bochecha e se deixando afagar mais de perto.

— Estou pensando. Não levarei você nesta última viagem – ele disse, oferecendo uma maçã ao animal.

“Sem chances, vou com você”, relinchou de volta, irritado.

— Magnun, não sei se entende isso, mas você... – o rapaz hesitou, era algo difícil de dizer. – É meu único amigo. O único que me acompanha desde a infância, e quero que viva uma vida longa e feliz.

“Pois a viverei, mestre. Junto com você”, respondeu. O rapaz abraçou o cavalo bem forte e uma lágrima desceu pelo seu olho. Ele não queria passar por aquilo novamente.

— A verdade é que a missão vai falhar – Kasias disse baixo, evitando que mais alguém escutasse. – E eu vou morrer.

“Isso nunca foi um impedimento para mim. Quando você morrer, estarei lá, junto com você. E lutarei até o fim com você”.

— Você não entende. Não estou fazendo isso somente por você – disse e olhou determinado para seu fiel amigo. – Faço por mim também… É um sentimento mesquinho e egoísta: não quero perder mais ninguém. E você e Dorothy foram os únicos que me restaram, apesar de ela...

Olharam ao mesmo tempo para Fürnan, que rolava na lama enquanto repetia uma canção infantil na cabeça. “Esta aí é totalmente ‘dodói’ das ideias” disse Magnun, fazendo o rapaz rir alto.

— Entende, agora? Vou deixar Dorothy em um santuário de Fürnans para que ela tenha sua merecida aposentadoria. E vim perguntar para onde deseja ir após este lugar? Nunca se reproduziu, ou viveu selvagem e livre como seus antepassados. Então, qual seu plano a partir de agora?

“Te seguir até o fim” disse para a frustração do rapaz.

— NÃO! Não será esse seu destino.

O cavalo pareceu refletir um pouco, e disse: “se é o que deseja, cumprirei, mas se voltar vivo, não se esqueça de mim”.

— Claro, Magnun. Volto para te buscar.

Kasias abraçou mais uma vez seu amigo, e foi caminhar pela cidade. Ele ficou sabendo que teria um festival no dia, bem no centro, para comemorar o dia de nascimento do faraó. Então, Kasias passou por multidões multicoloridas, pessoas embriagadas, rindo, dançando e bebendo. Ele chegou em uma barraquinha em uma das ruas principais.

— Bom dia. O que tem de bebida forte e comida para acompanhar? – Kasias perguntou para o atendente, que era um jovem rapaz. Ele era mais novo, com dentes brancos e reluzentes, e sorriso brilhante.

— Aqui tem vodka, rum, vinho, cachaça e cerveja – disse sorrindo. – Tudo importado, do bom e do melhor. E tem também algumas frutas para acompanhar. Já de comida, eu tenho pãezinhos de trigo e mandioca, além de carne seca.

— Vou inventar, então: 30% de cachaça, 30% de vodka e o resto de suco de maçã – Kasias disse e deu uma piscadela, passando as moedas referentes ao preço que considerava justo. – E me vê um pãozinho de mandioca.

— É para já, chefe! – respondeu, empanando o pãozinho e preparando o drinque.

Quando tinha preparado tudo, o jovem reparou que havia recebido um extra em dinheiro pelo serviço, o que alargou seu sorriso. Já Kasias reparou que o rapaz também fez dois drinques, um para ele e um para si. Ambos tomaram um gole do drinque, fazendo caretas comicamente parecidas ao provarem o forte sabor de álcool.

— Sugestão de nome para a mistura, chefe? – perguntou o rapazote, sorrindo.

— Vamos apelidar de... “Matador de Bestas” – disse com um sorriso de canto de boca.

— Belo nome chefe. Toma aqui seu pãozinho, e aproveite o festival – disse, fazendo um sinal religioso com a mão. – Que o Rei dos Reis lhe abençoe.

Com poucos goles da bebida, o rapaz já estava ligeiramente eufórico. Sua resistência a dano e a toxinas era desativada sempre que tomava álcool. “Afinal, tinha de curtir um pouco a vida, não é mesmo?”, pensou. Ele continuou andando pelas ruas da cidade quando algo lhe chamou a atenção. Era uma senhora que aparentava ter entre 70 e 80 anos. Ela era albina e corcunda, e estava sentada em uma cadeira com toques ritualísticos ao redor de tudo. Havia várias pessoas fazendo fila para serem atendidas por ela, a qual parecia fazer algum tipo de performance. Kasias se aproximou lentamente e sentiu o olhar enevoado e leitoso da velha se voltar para ele. Um arrepio subiu pela sua coluna, pois a idosa era bem sinistra. Além disso, seu sorriso caquético fazia com que ele se lembrasse da experiência que teve com o pós-vida.

— Você aí, jovem rapaz estrangeiro, aproxime-se. Deixe-me ver de perto sua linda face! He He He He...

Kasias viu a multidão abrir espaço para ele passar com uma grande boa vontade. Se tivesse que chutar, diria que era uma honra tremenda ser notado pela velha senhora. Então, ele deu mais um gole em seu drinque para ganhar coragem, e seguiu na direção da senhora, que o observava sem vê-lo.

— B-bom dia, minha querida senhora. A que devo a honra? – disse, forçando um sorriso.

— Sem formalidades, jovem Kasias. Somos mais conhecidos do que você pensa – disse, olhando fixamente para algo que parecia estar além dele.

— Como você... – começou, mas refletiu um pouco. – Então, é você... Escutei algumas lendas, mas não sabia que eram verdadeiras.

Ela estendeu uma de suas mãos caquéticas para o rapaz, acariciando sua bochecha. Uma lágrima escorreu de seu olho direito, enquanto o esquerdo se encheu de sangue.

— Quando vou tê-lo novamente? – ela perguntou. – Sinto saudades, jovem rapaz. Quero lhe proporcionar seu merecido descanso.

— Em breve, mais do que imagina.

— Diz com tanta certeza... Mas no fundo ainda me teme.

— Tudo o que vive há de temê-la. Isso é instintivo, apesar de a ti pertencermos.

— Palavras belas, mas vazias, não acredita nelas – a velha rebateu e deu um risinho. – Você parece mais surpreso que deveria. O que você viu para não acreditar na minha presença?

— Você nunca veio conversar comigo, não nos outros ciclos. O que mudou?

— Os outros ciclos eram conjecturas, este é o que importa. A bruxa te mostrou o que pode acontecer, mas não pode te afirmar o que VAI acontecer. Isso nem mesmo eu posso dizer, ou você.

— A quem pertence o destino?

— Ninguém.

— Por que veio até mim?

— Você que veio. Sua presença me chamou aqui, somos mais interligados do que parece, não acha? Toda a maracutaia que fez com as Leis naturais servira para me atrair e para me afastar. Seu campo delimitado é um templo para mim, e talvez seja por isso que eu o ame mais que a maioria.

Kasias ficou em silêncio. A imagem da senhora flutuava em sua mente, mas algo parecia errado. Então, observou um homem com olhar perdido e vazio perto dele, e decidiu observar a velha usando o ponto de vista dele. Assim, usando os olhos do homem, pôde ver uma linda moça de seios fartos e totalmente nua. Ela tinha pele escura e brilhante como se tivesse passado óleo sobre toda sua pele, com lábios convidativos e mãos estendidas. Atrás dela havia um paraíso de árvores, de vinho, de animais e de paz inenarrável. Foi então que entendeu a multidão. A vida dentro de Nan’Deru poderia ser melhor que todos os outros reinos, mas ainda sim tinha seus defeitos. Isso porque a mulher, que se encontrava diante dele, estava aqui para findá-los, era assim que ela os atraía.

Kasias voltou a usar os próprios olhos, e fitou de novo a velha albina que o observava com curiosidade e um sorriso maroto. Algo pesado pareceu segurar seu coração e sua respiração ficou entrecortada, enquanto percebia que todas essas pessoas estavam sendo atraídas para o mesmo local que ele, mas com objetivos e motivações diferentes.

— O que acha do meu método de caça? Nojento? Triste? – a senhora perguntou calmamente. – Talvez você tenha a impressão errada sobre mim. Não sou a Morte, mas me alimento dela e, assim como essas pessoas a procuram, você também a procura, não é?

Kasias fechou os olhos e respirou, fazendo que não com a cabeça. Algo inebriante estava ao seu redor, como se fosse uma névoa putrefata de pensamentos.

— Sim, você me procura, desde que se entende por gente. Você entende que sua vida não faz sentido, que seus objetivos e suas ideais não fazem sentido. Você não sabe pelo que luta, nem porque simplesmente não desiste – ela continuou enquanto Kasias abria os olhos e via a senhora se transformando na bela moça novamente. – Você sabe que é fácil se livrar disso.

Kasias estendeu a mão. “Estava disposto a continuar? Era seu dever. Contudo, no fundo, era mesmo? O que ele ganha ao se sacrificar por outros? A sua vida toda foi assim, e ele continua cada vez mais sozinho”.

— Kasias, venha com a gente. O que está fazendo sozinho aí? – disse Ritha, e sua voz pôde ser ouvida nas ruas lotadas.

Kasias olhou na direção da voz. Ritha e Etáoin estavam olhando para ele. Ritha, com um sorriso amistoso, e Etáoin com um sorriso debochado. Ao seu redor nada. A multidão e a senhora tinham sumido. Então, suando frio, ele se levantou com um sorriso falso e foi andando na direção das garotas, sem olhar para trás.