Ferreiro/Deicídio

Qin se aproximou da criatura, e Kasias estava a rastreando por meio de um elo metafísico que possuía com Yuan desde seu falecimento. “Lealdade absoluta em vida e posse de nossas almas após a morte”, as palavras ressoavam na cabeça de Qin novamente. O ritual foi mais útil do que imaginou, afinal deu de bandeja os meios para conseguir realizar o seu desejo.

Qin pôde ver um pequeno esquadrão de cadáveres reanimados, surgindo ao redor do odioso ovo azul. Sir Veras estava entre eles, por alguma razão que desconhecida. “Talvez, após fugir pela floresta, tenha tombado com uma calamidade e perecido em suas garras? Ou algo mais sinistro?”, pensou. Qin não sabia, mas o que mais o incomodava era o fato de que não via o seu irmão em lugar algum. Então, ele virou seu carro de lado e o estacionou a uns 500 metros do ser desconhecido. Ele ainda não sabia exatamente o que eram as calamidades, e a explicação de Kasias não ajudou muita coisa, mas isso não importava.

— Veja bem, todo nosso destino, passado, presente e futuro estão reunidos em um livro imaginário – disse Kasias há um tempo, pegando um tomo qualquer de alquimia e o abrindo. Então ele mostrou-o para Qin. – Essa página aqui é onde já estamos, mas todo o resto já foi pré-definido. Entretanto, para a gente, existe uma ilusão de que as coisas são consequentes uma da outra, mas na verdade, somos apenas uma parte de algo maior e uno.

— E o que isso tem a ver com as calamidades? – Qin perguntou na ocasião.

— Não há como provar isso, mas uma teoria bem aceita pelos acadêmicos é que essas criaturas, assim como os Wogans e outras anomalias mais raras, vieram de outros livros – ele respondeu e pegou outros tomos e os colocou um ao lado do outro. –Mas aí vem a maior questão. O que aconteceu há 1000 ciclos para permitir a entrada dessas criaturas? Por que isso possibilitou a existência dos legistas e as anomalias nas Leis naturais? E o mais importante, como fechar este caminho ou o utilizar a nosso favor? São questões teoricamente metafísicas, que não podem ser testadas ou provadas em nenhuma circunstância.

Aquilo gerou uma confusão na mente de Qin quando foi explicado, mas com o tempo, as peças se encaixaram. A verdade é que ele era um erudito, mas ao mesmo tempo sabia que não seria ele a descobrir os mistérios do mundo. Ele não tinha tempo nem a aptidão necessária para isso, mas conhecia alguém que o tinha: Ascléa. Ela estava viva há 1000 anos, então talvez ela soubesse de algo. “O que isso tem a ver com o elixir? Se é que tem a ver”, pensou ele.

Esses questionamentos deixaram de ser importantes quanto mais pensava neles. “Se o remédio não existe, não há doença”, pensou nesse ditado popular em Xhun. Se não há como resolver um problema, nem tente, não perca seu tempo. Contudo, algo ainda cutucava o fundo de sua mente, como se ele tivesse alguma informação disponível, uma peça para o quebra-cabeça, mas não soubesse qual.

Qin olhou novamente para o ovo, a uma distância boa, e decidiu que era a hora de dar descanso aquelas pobres almas aprisionadas. Então, ele retirou apenas duas coisas de sua mochila quase infinita: uma pequena bigorna e um martelo.

Deu a primeira batida com o martelo, enquanto recitava uma melodia:

Bang!

Essa é a história...

Bang!

Do sol e da lua

Bang!

O sol brilhava tanto

Bang!

Que a lua se recolheu

Bang!

Ó, doce ilusão; Ó, paraíso perdido

Bang!

Para ter a lua de volta

Bang!

O sol daria tudo que criou

Bang!

Tudo que conquistou

Bang!

E assim o fará

Bang!

O sol agora descarta tudo que tem

Bang!

Seu destino

Bang!

Honra

Bang!

Para conseguir de volta à lua

Bang!

Mas sabe que não é possível

Bang!

Então estes sacrifícios...

Bang!

Sentiu algo quente em seu peito, então olhou e viu que uma faca havia o atravessado. Ele não olhou para trás, pois não queria ver o rosto de seu irmão desfigurado daquela maneira. Logo, Qin ouviu um chiado enorme que lembrava uma risada, vindo do ovo, mas não se abalou:

Serão para outro meio

Bang!

O meio da glória

Bang!

E o sol, então, honrará a lua

Bang!

Com apenas um único golpe

Bang!

Que atravessará as estrelas

Pode ver a sombra de seu irmão desmanchando, e o exército que rumava em sua direção derretendo sob a luz do sol que crescia em suas costas. Qin viu também Sir Veras tentando se esconder da luz, mas sendo absorvido por ela. O campo árido e quase sem vida do local começou a florescer, rios nasceram e diversas flores de sua terra surgiram em meio à paisagem. Este era seu campo delimitado, que foi emprestado por Kasias, como um reflexo de sua alma. Várias páginas de livros voavam e eram consumidas pela luz, além de um som harmônico de uma flauta. Este era resultado de um vento que corria pelas colinas em formação. Então ele se levantou e segurou a arma recém-construída, vendo a mochila e o carro, assim como todas suas invenções, desaparecerem no ar.

Sua arma era simplesmente um pedaço de ferro quente e afiado, sem guarda e empunhadura, nem nada do tipo, mas brilhava como o sol. Pôde ver ao fundo uma pequena lua ao redor do ovo, trazendo-o para perto de si. Logo, Qin preparou seu golpe em posição diagonal. Um golpe que, se acertasse em algo humanoide, cortaria sua clavícula esquerda até a cintura do lado direito.

Quando o ovo estava em posição adequada, ele desceu a lâmina em um movimento simples, mas que tinha força o suficiente para atravessar a casca. Esta era formada por nada mais, nada menos, que o próprio infinito. Existia um espaço infinito entre a casca e o interior do ovo, mas a lâmina do homem poderia alcançá-la, uma lâmina formada por puro desprendimento e serenidade. E, então, o ovo se partiu. De dentro dele, pôde-se ouvir o choro de uma criança. E foi a última coisa que Qin ouviu antes de cair imóvel sobre a relva, com um sorriso satisfeito no rosto.