Kasias abriu os olhos, pois a conexão com Qin e Yuan havia sido rompida. Então parecia que seu plano havia dado certo. Desta vez, o ovo não iria interrompê-los e levar um dos seus. Todavia, ficou preocupado com Qin, porque não sabia se ele tinha sobrevivido ao encontro. Contudo, agora ambos estavam livres de sua conexão, afinal a regra implícita, que nem mesmo os rapazes de Xhun sabiam, era que este acordo iria durar até um deles matar uma calamidade. Um truque sujo, talvez, mas era justo na cabeça de Kasias. E, se parar para pensar, é um raro ato de benevolência.
Kasias olhou para Etáoin, que estava se brincando com Dorothy, que tentava mordê-la de brincadeira, enquanto a garota se esquivava. Como suspeitava, a conexão com Ndindhri deu mais um poder absurdo para ela: uma espécie de clarividência absoluta. Embora o próprio rapaz não soubesse de suas limitações e sua potência. Etáoin parecia encarar tudo com naturalidade, e sabia, provavelmente, de algumas coisas que o rapaz ignorava. No entanto, ele decidiu confiar na garota, embora a influência de Ndindhri ainda o mantivesse irrequieto. Por enquanto, os dois pareciam ter o mesmo objetivo, que era entregar o elixir à Ascléa.
Ele considerava as implicações morais de seu ato. Era uma ordem superior, e eles sabiam o que estavam fazendo, ou assim esperavam. Todavia, estava também preocupado com a integridade moral, mental e física de Etáoin. Ele não sabia o que a feiticeira queria com ela, embora a garota tivesse uma ideia, e não compartilhasse isso com ninguém. Pelo que ouviu da imperatriz, era improvável que ela causasse mal à Etáoin. Isso porque, apesar de ser uma tirana impiedosa, ela costumava ter clemência, e até mesmo demonstrar benevolência com quem ela simpatizasse ou julgasse inocente. Entretanto, “isso seria um empecilho caso ela quisesse usar o corpo da garota para um ‘bem maior’?”, pensou. Isso ele não sabia, mas planejava protegê-la quando chegasse a hora. Contudo, ele não sabia até quando poderia ir contra a imperatriz e autodeclarada bruxa, como nem sabia por quanto tempo iria ficar em Vkstri em favor de Etáoin.
De acordo com suas experiências passadas e com suas tentativas anteriores, ele nem mesmo chegará a Vkstri, pois a missão falhará. Contudo, aquilo que a bruxa havia mostrado para ele eram apenas conjecturas, não o fato atual. Como disse a senhora que vira no festival: “o destino a ninguém pertence”. Ainda assim, o plano daria certo, ele tinha fé, pois é isso que restava ao rapaz.
— Kasias, está acordado? – a voz de Ritha o tirou de seu transe momentâneo.
— Ah, sim. O que foi? – perguntou confuso.
— Eu descobri algo – disse baixinho. – Amanhã é o dia de Etáoin. Devemos comprar presentes?
— Claro que não. Ela é insuportável.
Ritha fez uma careta de desaprovação, e Kasias já sabia o que seria dito em seguida.
— Você é um maldito insensível, sabia? – ela disse e mostrou um pedaço longo de tecido rosa escondido atrás de um baú de ferramentas. – Já preparei o meu presente. Vou fazer um vestido para ela. É melhor que faça algo também.
Foi a vez do rapaz fazer uma careta.
— Não quero – disse com desgosto. – E desde quando manda em mim?
— Desde quando você não tem a maturidade emocional ou a habilidade social para viver independente. Precisa de alguém que manda em você para que seja um ser humano de respeito.
Silêncio. Kasias abriu a boca indignado, mas não sabia o que dizer. Infelizmente, ela estava certa, assim como Aubejang havia dito com outras palavras. Kasias não tinha a habilidade de ser um líder ou de tomar grandes decisões, e suas reflexões sobre as coisas eram vazias. Logo, ele precisava de alguém que lhe indicasse o caminho, pois foi assim sempre: seus pais, Yhormgandr, Lorde Fragatt, Oshandra e agora até Ritha queria fazer esse papel para ele. Assim, ele se sentiu inútil, mas não queria dar o braço a torcer. “Pelo menos ainda há algo que só eu posso fazer”, pensou.
— Está bom, então. Vou arrumar um presente para ela, não se preocupe.
Ritha olhou com uma cara desconfiada para o rapaz, que apenas fez um sinal de desaprovação. Logo depois, a mandou se afastar, ao que ela, relutantemente, obedeceu.
— Seu escroto! – disse, mostrando a língua para ele.
Ele ignorou e continuou a fazer o que estava fazendo, que eram conjecturas… O mistério que mais o incomodava era quem tinha mandado aquela calamidade em seu percalço. A resposta só podia ser Vkstri, mas mesmo que eles quisessem violar o acordo, não fazia sentido mandar uma calamidade para matá-los. Ao invés de uma que fosse mais sutil, que pudesse roubar Etáoin ou levá-la como refém. Ele não tinha dúvidas de que o plano de quem quer que fosse que tivesse mandado a criatura ao seu encalço, queria todos mortos. Aquilo não era uma calamidade qualquer, era uma máquina feita para matar e se tornar cada vez mais forte.
A decisão de usar Qin para matá-la foi a mais acertada. Ele sabia que não tinha nada no seu arsenal que pudesse ferir o ovo. Talvez apenas se utilizasse algo que estava guardando para o confronto com o Grão Mestre Dreyfus. Qin, por outro lado, ainda não havia decidido as regras de seu campo delimitado e, como ele era de natureza especial – só poderia ser usado contra uma calamidade, e só poderia ser usado uma vez –, ele tinha um enorme potencial escondido: era a única coisa capaz de destruir algo indestrutível. E ainda havia os cavaleiros carmesins.
Kasias acreditava que eles seriam o último empecilho que teriam de superar para atravessar a fronteira. Assim que atravessassem, eles não poderiam atacá-los. Ironicamente, os únicos locais que eles não ousariam invadir eram Nan’Deru e Vkstri, por causa da influência de seus governantes e de seu tremendo poder. Contudo, não era uma chance tão real assim, pois evitá-los não seria a melhor escolha. Oshandra não poderia ajudá-lo no combate, pois seria a guarda-costas de Etáoin. Além do mais, Ndindhri não possuía poder suficiente para manifestar algo no mundo físico, embora… Uma ideia cruzou pela sua cabeça: “É isso”, pensou, “a peça que faltava, assim o plano estará garantido”.
Kasias pegou o mapa mundi que tinha na casa emprestada e circulou um estreito entre a fronteira de Nan’Deru e Vkstri, ainda nas planícies de Faradin. Não importa onde, nem quando eles vão aparecer, eles têm passe livre pelo espaço-tempo, mas ainda sim seguem leis primordiais. Então, ele só tinha que fazer algo: “o presente é a chave”. Assim, ele se levantou da cadeira e pôs-se a procurar algo em seus pertences, levantando olhares curiosos de Etáoin, Ritha e Lorrene. Logo, pegando uma lasca de madeira, ele saiu correndo da casa em direção ao mercado principal da cidade.
— Que merda foi essa? – perguntou Etáoin, olhando para suas companheiras.
— Vai saber. Talvez ele tenha finalmente perdido a razão – Ritha respondeu confusa.
— Se me permitem dizer, minhas queridas. A minha experiência como mulher me diz o seguinte: o rapaz está “atiçado” – Lorrene disse com um sorriso malicioso.
— “Atiçado”? – Ritha perguntou.
— Em outras palavras, o sangue dele foi todo para a cabeça do pau – disse Lorrene, sem pudor. – E ele vai caçar alguém que o satisfaça nas ruas – ela parou por uns instantes. – Sim, é assim que os homens funcionam, confiem em mim.
Ambas fizeram uma cara de nojo, mas concluíram que era melhor não questionar Lorrene.
— Será que ele encontrou alguma foda temporária aqui em Nan’Deru? Quando ele teve tempo? – perguntou Etáoin, curiosa.
— Etáoin, você está andando muito com Lorrene. Lord... Kasias não faria isso. Ele é um cavalheiro – rebateu Ritha.
Etáoin olhou para ela com uma cara de quem dizia “você acha mesmo?”. E se levantou, indo na direção da porta.
— O que vai fazer?
— Espiar, óbvio. Quero ver o que ele está aprontando.
— Isso não é nem um pouco legal, amiga – Ritha disse, mas foi segui-la mesmo assim.
Quando estavam quase chegando na porta, ela abriu. Logo, puderam ver a figura de Oshandra, olhando para elas com um sorriso no rosto.
— Então, garotas, sentiram minha falta?
— Oshandra!!! – Etáoin disse e a abraçou como se fosse uma velha amiga, enquanto Ritha sorria e cumprimentava-a.
— Como vão, meninas? Estão bem? – Oshandra disse com um sorriso encantador.
— Muito melhor agora – Etáoin disse sorrindo, e Ritha confirmou com a cabeça.
— Como você está, Oshandra? Já se sente melhor? – perguntou Ritha, bem tímida.
— Melhor impossível. Vou apenas descansar este resto de dia e amanhã iremos viajar. Uma escolta será disponibilizada por meu pai.
As garotas mais jovens entreolharam-se. Ritha podia perceber o nervosismo no olhar de Etáoin, pois, querendo ou não, ela estava sendo tratada como um objeto de troca. Ela não gostava disso, e seu futuro ainda incerto a perturbava. Logo após, elas passaram um tempo conversando sobre futilidades e até se esqueceram do comportamento estranho de Kasias mais cedo.
— Etáoin, o que espera que aconteça contigo na corte de Ascléa? – Oshandra, de repente, perguntou taciturna.
— Não sei – ela respondeu e olhou para o chão, tremendo um pouco a voz. – Ela só precisa do meu sangue, não de mim. Então é provável que assim que ela conseguir o que quer que seja... Eu vou... – ela estremeceu. – Bom, pelo menos realizei meu sonho, não é? Sempre quis viajar pelo mundo.
Ritha segurou sua mão e afagou sua cabeça de maneira gentil. Oshandra olhou para elas por um instante e se levantou. Ajoelhou-se perante Etáoin, e fez uma postura típica de cavalaria.
— Todo membro da corte precisa ter cavaleiros o protegendo, não é mesmo? – disse com um tom de voz sério. – Pois aqui me apresento como a primeira cavaleira da ordem de Etáoin. Se me aceitar, viajarei com você até o inferno, e a protegerei de todos os males que se apresentem em seu caminho. Serei seu escudo, sua lança, sua espada e seu castelo – olhou nos olhos da garota. – Conte comigo para sua proteção, minha senhora, pois lhe garanto que a guarda real de Nan’Deru contém os melhores guerreiros de todo o mundo.
Etáoin engoliu as lágrimas, e olhou firmemente para a nobre guerreira que lhe jurava lealdade.
— Aceito suas juras, Sir Oshandra. A partir de agora, seu dever e sua honra serão me proteger. Espero que suceda em sua tarefa, pois assim como sua vida é minha, minha vida é sua.
Neste momento, Kasias abriu a porta e se deparou com a cena de consagração. Todos se viraram para ele, que ficou um pouco sem graça e entregou um pacote ornamentado para Etáoin.
— Sei que seu dia é amanhã, mas tome isso. Será de grande ajuda – disse rabugento, e foi em direção ao seu quarto.
Etáoin ficou em choque e sem saber o que dizer por alguns instantes. Um silêncio sepulcral dominou o quarto por alguns segundos, e tudo que ela pôde dizer foi:
— O-obrigada? Kasias? – olhou na direção do quarto dele, e ouviu um grunhido de aprovação.
— O que é isso? – perguntou Ritha, encantada com o pacote.
— Vou abrir – Etáoin disse receosa.
Quando ela abriu o pacote, viu um colar feito de vinhas marrons e entrelaçadas entre si. Tinha um pingente de ametista pendurado, além de um anel de prata com algumas runas verdes brilhando. Junto dos presente havia uma nota escrita:
Parabéns!
1. Caso sinta que tudo está dando errado e será perdido, toque a runa do anel três vezes em sucessão rápida;
2. Caso se sinta sozinha e não tenha ninguém em que possa confiar, retire o pingente de ametista do colar e jogue-o nas chamas.
— Delicado e gentil como um camelo – ela disse e sorriu, enxugando as lágrimas.
Mostrou o colar e o anel para suas amigas, mas escondeu a nota em um compartimento de sua roupa. Ela não queria que as outras vissem, sabia que não era nada de mais, mas ainda assim era algo pessoal. Etáoin sorriu para elas e aproveitou seu último dia em Ophe’lia o máximo que pôde, pois, no dia seguinte, tudo iria mudar. E ela iria voltar à temível jornada, cujo final ainda era incerto.