Kasias estava deitado em uma poça de sangue, seu próprio sangue. Jormunn havia sido partida em pedaços com o impacto, e alguns fragmentos se agitavam em seu dorso. O corpo de Dreyfus estava irreconhecível, espalhado por toda parte nas planícies de Faradin. Kasias tentou se levantar, mas reparou que não sentia suas pernas. Nada da cintura para baixo parecia fazer parte dele, provavelmente um dos fragmentos havia rompido a base de sua coluna.
Ele ouvia o barulho de batalha, mas estava virado para o lado errado, então não conseguia ver o que estava acontecendo. Kasias tentou se arrastar para o lado, mas a dor lancinante que sentiu, em praticamente todo o seu corpo, o impediu de continuar. Por algum motivo, os ataques dos tentáculos de Ndindhri haviam ignorado sua nulificação de dano e de regeneração absurda. Alguma propriedade que ele possuía e o próprio Kasias não entendia qual. Então, ele viu, em uma árvore próxima, um abutre o observando. Ele estava esperando que Kasias morresse, mas era a chance de ele perceber algo… Assim, Kasias pegou a visão do pássaro emprestada, e olhou para a batalha que ocorria não tão longe dali.
Os guardas Kalashtar enfrentavam uma guarnição de 2000 homens. Por mais que fossem a nata dos guerreiros, eles não durariam muito contra tantos homens treinados. Também viu Youpi devastando a linha de frente do inimigo, montado em seu Adwain. Os cavaleiros estavam tendo trabalho, mas uma chuva de flechas mirava a carroça que Oshandra usava para fugir, junto de Ritha e de Etáoin.
“Eu... Tenho... Que... Ajudar...” Kasias pensou enquanto se arrastava colina abaixo apesar da dor. Um rastro de sangue formava por onde passava. No entanto, quanto mais tempo passava, mais ele sabia que era uma esperança vazia. Ele não podia fazer nada, e seus olhos encheram de lágrimas. “Assim como a bruxa me mostrou, certos pontos são imutáveis no fluxo do tempo”.
Suas vistas estavam escurecendo, e respirar doía bastante. Uma enorme angústia preencheu seu coração, e ele se sentiu com muito sono. “Não, não posso... Morrer. Não quero morrer” o rapaz pensou e se arrastou pouco a pouco; mais alguns instantes e ele iria alcançá-los… Então, ele parou de se mover, ainda de olhos abertos e repletos de lágrimas. Uma das mãos ainda tentando agarrar algo que não podia alcançar.
De repente, ele estava na casa de Yhorm novamente, mas as coisas pareciam diferentes. Tudo estava em tom pastel, como se fosse um sonho… Ele se levantou da cama onde estava e tentou checar seus ferimentos, mas não encontrou nada de anormal, até mesmo sua cicatriz havia sumido.
— Este é o pós-vida? – Kasias murmurou em voz alta. – Por que me sinto tão calmo?
— Ainda não – uma voz surgiu detrás dele, fazendo-o se sobressaltar.
Uma figura alta e cinzenta o encarava. Ele tinha membros finos e longos, olhos grandes e escuros, e sua pele parecia névoa, espalhando-se ao vento. Ele estava de cabeça baixa para não encostar no teto.
— Quem é você? – Kasias perguntou apesar do susto, mas não sentiu hostilidade, nem violência; muito menos medo, apenas tranquilidade.
— Um mensageiro, apenas. Vim encaminhá-lo.
— Para onde?
— Para onde ninguém nunca voltou, ou poderá voltar.
— Como é lá? – tentou parecer sarcástico, mas soou como realmente era: uma criança, perdida e assustada.
A criatura se manteve em silêncio, se servindo de uma xícara de café e oferecendo outra para Kasias, que aceitou relutantemente.
— Não sei, apenas guio até a porta. O que acontece depois está além de minha jurisdição.
— Entendo – Kasias disse e sorveu um gole de café.
Estava bom, mas parecia faltar algo essencial.
— Você percebeu, não é? – a criatura perguntou e soltou um risinho triste.
— Percebi. Só não sei o que percebi.
— O café aqui não existe de verdade. Ele apenas ativa a sua memória padrão de quando você tomou café. Assim, é a média exata de todos os cafés que tomou na vida, igual a tudo mais que consumir aqui.
— Compreendo. E como é o café para você?
— Não tem gosto.
— Desculpe.
— Não peça, não é sua culpa – ele disse e se sentou na cadeira. – Estou pronto para ir assim que você estiver. Enquanto você não quiser, podemos conversar.
— Claro, ainda preciso refletir sobre algumas coisas. Não sei se terei a... – disse e engoliu em seco. – Oportunidade.
— Sinto muito.
— Como você disse, não sinta. Não é sua culpa – Kasias repetiu e sorriu.
A criatura sorriu, e pegou um enorme tomo, folheando as páginas em alta velocidade. Quando fazia isso, várias expressões faciais diferentes.
— Desculpe por isso – disse ele. – Mas é a única maneira que tenho de conhecer o mundo físico.
— O que foi isso? – perguntou Kasias, confuso.
— Estava lendo sobre sua vida. Desde seu nascimento até seu último instante.
— E o que achou?
— Triste, sozinho, mas ainda sim...
— O quê?
— Não tenho a palavra certa para dizer, mas tem algo que não entendo – disse o mensageiro.
— Pois pergunte – disse Kasias e sorveu o último gole de café, pegando um biscoitinho de milho.
— Por que você luta? Por que se esforçou tanto, sendo que não tinha a motivação necessária? Por que se sacrificou por uma missão que não lhe dizia respeito?
Foi a vez de Kasias ficar em silêncio, pois não sabia da resposta. Então, deu de ombros e forçou um sorriso.
— Quem sabe? Nem eu sei. Mas na hora, me pareceu a única escolha possível.
— Humanos... – ele disse e soltou um suspiro. – Vocês são tão... Interessantes.
— Você tem o tomo da vida de todo mundo com você?
— Sim, na verdade... Mais ou menos, há algumas exceções.
— Você pode me mostrar o tomo de Ascléa Vkstri?
— Não o possuo.
— Por quê?
— Não posso revelar, é confidencial. Ordens superiores.
— Quem são seus superiores? Os deuses?
— Algo assim. Também não posso dizer, sinto muito.
— Você não se frustra? As coisas acontecem sempre do jeito que eles querem. Não nos dão explicações, assim sofremos, vivemos e morremos às custas de um plano desconhecido. Não é irritante?
— Minha opinião não importa – ele rebateu e olhou fixamente para Kasias. – Aqueles que não têm o poder para mudar algo, não deveriam criticar ou blasfemar contra o destino – ele repetiu roboticamente.
Kasias percebeu que ele também estava farto disto, mas não tinha o poder para mudar algo.
— E se eu disser que posso mudar o destino? Mesmo que seja em pequena escala, e mesmo que seja um pequeno desvio?
— Impossível, as coisas não são lineares. Elas já aconteceram. Apenas a sua percepção que faz com que elas pareçam estar acontecendo umas depois das outras. É uma ilusão, pois tudo ocorre ao mesmo tempo – ele respondeu e apontou para o livro. – Aquelas palavras não podem ser reescritas.
— Foi o que a bruxa me mostrou – Kasias concordou. – Por repetidas vezes, saí daquela caverna e passei por esta jornada.
— 127 vezes, segundo o que está escrito no livro.
— Exato, mas falhei em todas. Até aquela em que fui fisicamente, e não conjunturalmente.
— Exato, não importa o que você faça entre certos marcos temporais. Eles vão acontecer, já está escrito. Apenas em algumas coisas, você possui livre arbítrio.
— Isso é o que me disseram.
— Discorda?
— Sim.
— Tem alguma base para isso?
— Claro. Procure o livro de Etáoin.
— Bom, vou pegá-lo, mas não vejo qual seria o seu ponto. Nada mudou.
A criatura, então, pegou o livro e começou a folheá-lo. Desta vez, um pouco mais devagar com um rosto desinteressado. Até que...
— Como você?
Kasias riu.
— Me mostre o livro.
— Não posso.
— É tão mal perdedor?
— Não é isso – a criatura disse enquanto folheava em choque – Mas assim que eu comecei a ler...
— Sim?
— As páginas... – ele continuou e olhou em choque para Kasias. – Ficaram todas em branco.
Kasias sorriu e pensou “a vez número 128 é a que deu sorte”.