Epílogo: o príncipe e a criança

Ele abriu o olho que lhe faltava. Estava deitado em uma cama simples e de palha. Havia uma escrivaninha de madeira velha que estava de seu lado esquerdo com um pão velho e ligeiramente mofado repousado sobre ela, além de uma bacia com água. Ele sorveu o líquido segurando a bacia com o braço que lhe restava, e, ao perceber sua fome, comeu o pão velho com voracidade.

— Ó, vejo que já acordou – a voz de um homem disse próximo a ele.

Ele olhou na direção do som. Um senhor que parecia ter passado por cerca de 60 ou 70 ciclos estava sorrindo. Ele tinha um bigode branco sujo com algo que parecia ser grãos de trigo e leite, tinha também uma careca lustrosa e roupas típicas da região entre Faradin e Nan’Deru. Usava um simples robe cinzento que cobria todo o corpo, com diversos panos brancos ou amarelos que circundavam a cintura e o ombro.

— Onde estou? – ele perguntou com a garganta doendo para falar.

— Está na minha humilde residência, jovem moço. Nós o encontramos deitado e muito ferido a alguns metros daqui, perto do riacho em que pegamos nossa água.

— Deitado? Ferido? – perguntou, pois as lembranças do que ocorreu pareciam estar bem confusas, mas estavam voltando pouco a pouco.

— Sim, sim. Só o encontramos, pois a criança estava chorando muito.

— Certo – disse sem prestar muita atenção, pois ainda estava grogue.

— Se quiser, pode ficar um tempo até se recuperar. Temos mantimentos o suficiente, e a companhia será agradável.

— Agradeço a hospitalidade, mas realmente não quero incomodar – disse e abaixou a cabeça em agradecimento.

— Vai viajar com o bebê neste estado?

— Bebê? Que bebê?

O velho pareceu se surpreender um pouco, arregalando os olhos e movendo a boca em um “O”.

— Bom, moço. Posso perguntar seu nome? O meu é Clarence, por sinal.

— Qin. Me chame de Qin – respondeu o príncipe.

— Certo, Qin. No lugar onde o encontramos, você estava caído perto de vários cadáveres. E um bebê estava chorando dentro de um ovo grande partido.

Qin abriu a boca em choque: “a calamidade teve um filho?”, pensou, tentando raciocinar. “Humano ainda por cima?”. Algo estava muito errado nesta história, e ele tinha que contatar Kasias para entender melhor a situação.

— Entendo... – foi cauteloso com as palavras. – E onde ele está agora?

— Está com Meredith, minha esposa. Ela estava cuidando dele nestas últimas semanas.

— Semanas? Quanto tempo eu fiquei apagado?

— Um mês e meio. Achamos que tinha morrido diversas vezes, mas você é forte como um touro – o velho Clarence disse rindo.

— Senhor Clarence, vou ser sincero com você. Agradeço muito pela sua ajuda e pela sua hospitalidade, e tenha certeza de que o Império Xhun irá recompensá-lo pela sua ajuda. Mas quero lhe pedir, mas um único favor, que será também para seu próprio bem.

— Se me permite interromper, caro Qin – Clarence disse. – Mas não fiz isso esperando recompensas, nem as desejo. Fiz por puro dever, assim como foi dito pelo Messias: “amai vossos próximos”.

— Messias? – Qin perguntou confuso, mas não era hora de questionar isso. – Está bem, aceito sua resposta, assim como você deve aceitar que é meu dever retribuir como quiser à sua gentileza – continuou. – Mas o mais importante: para a sua segurança e de sua família, não conte a ninguém sobre o bebê, ou sobre mim. Coisas horríveis podem acontecer se a notícia se espalhar.

— Seu segredo está seguro comigo, jovem Qin. Mas fique tranquilo, a quem segue o Messias, nada teme, pois sabe que partirá desta vida de forma justa e sem arrependimentos.

— Certo – Qin concordou e realmente não tinha tempo para perguntar sobre isso.

Ele tinha que tirar o bebê de lá o mais rápido possível e levar a... “Onde?”, pensou. Não sabia onde estava Kasias. “Talvez em Ophe’lia? Os legistas de Nan’Deru podem saber algo”, pensou, mas não confiava inteiramente neles… Assim, Qin se despediu educadamente e pediu para ver a criança. Era um bebê normal e sem deformidades, a mesma cara de joelho de todos os bebês. Inclusive, ele tinha traços faradinianos por alguma razão, mas Qin estava com a cabeça cheia demais para se preocupar com isso.

Ele deu adeus novamente a Clarence e a Meredith, levando algumas rações no caminho. Por sorte, ele estava com uma bolsa de moedas de ouro, que o casal nem ousou tocar, então pagou generosamente pelas rações e um pouco de leite, prometendo mais recompensas no futuro. Ele também levava uma bolsa de bebê, que permitia que carregasse a criança em suas costas e protegida do sol. Por fim, deixou o dinheiro contado para fretar um navio do porto mais próximo, que era na fronteira, uma cidade chamada Flerunsz. Lá tinha uma via de navegação pelo rio Lundt, no qual finalmente chegaria à sua casa, o Império Xhun.