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Eu tinha decidido que St. Louis era um país estrangeiro. Jamais me acostumaria com os sons de água escorrendo da descarga acionada, nem com as comidas embrulhadas, nem com campainhas e o barulho de carros e trens e ônibus que passava pelas paredes ou entrava por baixo de portas. Na minha mente, só fiquei algumas semanas em St. Louis. Assim que entendi que não estava em casa, passei a fugir para a floresta de Robin Hood e para as cavernas de Brucutu, onde a realidade era tão irreal quanto a minha e até isso mudava todos os dias. Eu carregava o mesmo escudo que usei em Stamps: “Não vim para ficar”.
Mamãe era competente em nos sustentar. Mesmo que isso significasse arrumar outra pessoa para fornecer provisões. Embora fosse enfermeira, ela nunca trabalhou na profissão enquanto estávamos com ela. O sr. Freeman levava as necessidades básicas, e ela ganhava um dinheirinho extra trabalhando em jogos de pôquer em casas de jogo. O mundo regular das oito às cinco da tarde não tinha glamour suficiente para ela, e só vinte anos depois eu a vi pela primeira vez em um uniforme de enfermeira.
O sr. Freeman era capataz em um pátio da ferrovia Southern Pacific e voltava para casa tarde às vezes, depois que mamãe tinha saído. Ele pegava o jantar no fogão, onde ela deixava um prato coberto e nos mandava não mexer. Comia em silêncio na cozinha enquanto Bailey e eu líamos separadamente e com avidez nossas revistas Street and Smith . Agora que ganhávamos um dinheirinho para gastar, comprávamos os livrinhos ilustrados com figuras chamativas. Quando mamãe estava fora, tínhamos que seguir uma rotina. Terminar o dever de casa, jantar e lavar os pratos, e só depois podíamos ler ou ouvir O cavaleiro solitário , Crimes Busters ou O Sombra .
O sr. Freeman se movia graciosamente, como um urso pardo grande, e raramente falava conosco. Ele só esperava a mamãe, e se dedicava inteiramente a esperar. Nunca lia o jornal nem batia o pé acompanhando músicas do rádio. Ele esperava. Só isso.
Se ela voltasse para casa antes de irmos para a cama, víamos o homem ganhar vida. Ele pulava da poltrona como se estivesse saindo do sono, sorrindo. Eu lembrava então que, alguns segundos antes, tinha ouvido uma porta de carro bater; e os passos da mamãe soavam na calçada de concreto. Quando a chave dela tocava na porta, o sr. Freeman já estava fazendo sua pergunta de sempre: “Ei, Bibbi, se divertiu?”.
A pergunta ficava no ar enquanto ela se esticava para dar um beijo em seus lábios. Em seguida, se virava para Bailey e para mim com os beijos de batom. “Vocês não terminaram o dever de casa?” Se tivéssemos terminado e só estivéssemos lendo, “Tudo bem, façam suas orações e vão para a cama”. Se não tivéssemos terminado, “Então vão para o quarto terminar... depois façam as orações e vão para a cama”.
O sorriso do sr. Freeman nunca aumentava, ficava com a mesma intensidade. Às vezes, a mamãe ia se sentar no seu colo, e o sorriso na sua cara parecia que ia ficar lá para sempre.
Dos nossos quartos, nós ouvíamos os copos batendo e o rádio ser ligado. Acho que ela devia dançar para ele nas noites boas, porque ele não sabia dançar, mas, antes de adormecer, muitas vezes eu ouvia pés se movendo em ritmos de dança.
Eu sentia muita pena do sr. Freeman. Sentia tanta pena dele quanto sentia de uma ninhada de porquinhos indefesos nascidos no nosso chiqueiro no quintal do Arkansas. Nós engordávamos os porquinhos um ano inteiro para abate na primeira boa geada, e mesmo sofrendo pelas coisinhas gordinhas e fofinhas, eu sabia o quanto ia apreciar a salsicha fresca e a cabeça de xara que eles só podiam me dar morrendo.
Por causa das histórias chocantes que líamos e da nossa imaginação vívida, e, provavelmente, de lembranças de nossas vidas curtas e agitadas, Bailey e eu sofríamos — ele fisicamente e eu mentalmente. Ele gaguejava, e eu suava tendo pesadelos horríveis. Era comum que o mandassem ficar calmo e começar de novo e, em minhas noites particularmente ruins, minha mãe me levava para dormir com ela na cama grande com o sr. Freeman.
Por uma necessidade de estabilidade, as crianças se tornam facilmente criaturas de hábitos. Depois da terceira vez na cama da mamãe, passei a não achar estranho dormir lá.
Uma manhã, ela saiu da cama para fazer alguma coisa e adormeci de novo. Mas acordei com uma pressão, uma sensação estranha na perna esquerda. Era mole demais para ser uma mão, e não era o toque de roupas. Eu não tinha tido aquela sensação, o que quer que fosse, em todos os anos que dormi com a mamãe. Não se moveu, e fiquei sobressaltada demais para me mover. Virei a cabeça um pouco para a esquerda para ver se o sr. Freeman tinha acordado e saído da cama, mas ele estava de olhos abertos e as duas mãos estavam em cima do cobertor. Eu sabia, como se sempre tivesse sabido, que era a “coisa” dele na minha perna.
Ele disse: “Fique parada aí, Ritie, não vou machucar você”. Não tive medo, só fiquei um pouco apreensiva, talvez, mas não com medo. Claro que eu sabia que muitas pessoas “faziam aquilo” e que usavam suas “coisas” para executar o ato, mas ninguém que eu conhecesse já tinha feito com alguém. O sr. Freeman me puxou para perto dele e colocou a mão entre as minhas pernas. Não machucou, mas mamãe tinha enfiado na minha cabeça: “Fique com as pernas fechadas e não deixe ninguém ver sua florzinha”.
“Eu não machuquei você. Não tenha medo.” Ele afastou o cobertor, e a “coisa” dele estava em pé como uma espiga de milho marrom. Ele segurou minha mão e disse: “Sinta”. Era gosmento e molengo como a parte de dentro de uma galinha recém-morta. Ele me puxou para cima do peito com o braço esquerdo, e a mão dele estava se mexendo tão rápido e seu coração estava batendo com tanta força que tive medo de ele morrer. Histórias de fantasmas contavam como as pessoas que morriam não soltavam o que estavam segurando. Eu me perguntei como eu me libertaria se o sr. Freeman morresse me segurando. Teriam que quebrar os braços dele para me soltar?
Então ele ficou quieto, e aí veio a parte boa. Ele me abraçou com tanto carinho que desejei que nunca me soltasse. Eu me senti em casa. Pelo jeito como ele estava me abraçando, soube que nunca me soltaria nem deixaria nada de ruim acontecer comigo. Ele devia ser meu verdadeiro pai e nós finalmente tínhamos nos encontrado. Mas aí ele rolou para o lado, me deixou em um lugar molhado e se levantou.
“Eu tenho que falar com você, Ritie.” Ele vestiu a cueca que estava nos tornozelos e foi ao banheiro.
Era verdade que a cama estava molhada, mas eu sabia que não tinha tido nenhum acidente. Talvez o sr. Freeman tivesse tido um quando estava me abraçando. Ele voltou com um copo de água e me disse com voz azeda: “Levante. Você fez xixi na cama”. Ele derramou água no local molhado, e ficou mesmo parecendo meu colchão em muitas manhãs.
Depois de viver na rigidez do sul, eu sabia quando ficar quieta perto de adultos, mas queria perguntar a ele por que ele disse que fiz xixi se eu tinha certeza que ele não achava isso. Se ele achava que fui malvada, isso queria dizer que ele nunca mais me abraçaria? Ou que não admitiria que era meu pai? Eu o tinha feito sentir vergonha de mim.
“Ritie, você ama Bailey?” Ele se sentou na cama e eu cheguei perto, cheia de esperanças. “Amo.” Ele estava inclinado, calçando as meias, e as costas eram tão grandes e simpáticas que tive vontade de apoiar a cabeça nelas.
“Se você contar a alguém o que nós fizemos, eu vou ter que matar Bailey.”
O que nós fizemos? Nós? Obviamente, ele não estava falando do meu xixi na cama. Não entendi e não ousei perguntar. Tinha alguma coisa a ver com ele ter me abraçado. Mas também não havia chance de perguntar a Bailey, porque isso seria contar o que nós fizemos. A ideia de ele matar Bailey me atordoou. Depois que ele saiu do quarto, pensei em contar para a mamãe que eu não tinha feito xixi na cama, mas se ela me perguntasse o que tinha acontecido, eu teria que contar que o sr. Freeman me abraçou, e isso não era possível.
Era o mesmo velho dilema. Eu sempre o vivia. Havia um exército de adultos cujos motivos e movimentos eu não conseguia entender e que não faziam esforço nenhum para entender os meus. Não era questão de eu não gostar do sr. Freeman, eu simplesmente não o entendia também.
Durante semanas depois disso, ele não disse nada para mim, exceto os cumprimentos secos que eram dados sem ele nem olhar na minha direção.
Esse foi o primeiro segredo que escondi de Bailey, e às vezes eu achava que ele devia conseguir ler no meu rosto, mas ele não reparou em nada.
Comecei a sentir saudade do sr. Freeman e do aconchego dos braços grandes dele. Antes, meu mundo era Bailey, comida, Momma, o Mercado, ler livros e tio Willie. Agora, pela primeira vez, incluía contato físico.
Comecei a esperar no jardim que o sr. Freeman chegasse, mas, quando chegava, ele nem reparava em mim, embora eu me dedicasse intensamente ao meu “Boa noite, sr. Freeman”.
Uma noite, quando não conseguia me concentrar em nada, fui até ele e me sentei rapidamente em seu colo. Ele estava esperando mamãe de novo. Bailey estava ouvindo O Sombra e não sentiu minha falta. Primeiro, o sr. Freeman ficou imóvel, sem me abraçar nem nada, mas então senti um caroço macio embaixo da minha coxa começar a se mexer. Tremeu de novo e começou a endurecer. Ele me puxou para o peito. Tinha cheiro de pó de carvão e graxa, e estava tão próximo que escondi o rosto na camisa e ouvi o coração dele, estava batendo só para mim. Só eu podia ouvir a batida, só eu conseguia sentir os saltos no rosto. Ele disse: “Fique parada, pare de se mexer”. Mas o tempo todo ficava me empurrando no colo. De repente, ele se levantou e eu escorreguei para o chão. Ele correu para o banheiro.
Durante meses, ele parou de falar comigo de novo. Fiquei magoada e, por um tempo, me senti mais solitária do que nunca. Mas acabei esquecendo-o, e até a lembrança dele me abraçando com carinho derreteu na escuridão geral logo além dos antolhos da infância.
Eu lia mais do que nunca e desejava de corpo e alma ter nascido menino. Horatio Alger era o melhor escritor do mundo. Os heróis dele eram sempre bons, sempre venciam e eram sempre homens. Eu conseguiria desenvolver as duas primeiras virtudes, mas me tornar homem era bem difícil, ou mesmo impossível.
Os quadrinhos de domingo me influenciaram, e apesar de admirar os heróis fortes e conquistadores, eu me identificava com o Pequeno Polegar. No banheiro, para onde eu levava o jornal, era tortuoso procurar e excluir as páginas desnecessárias para eu poder descobrir como ele finalmente venceria seu último adversário. Eu chorava de alívio todos os domingos, quando ele escapava dos homens maus e voltava de cada aparente derrota tão doce e gentil como sempre. Os sobrinhos do capitão eram divertidos porque faziam os adultos parecerem burros. Mas eram um pouco espertinhos demais para o meu gosto.
Quando a primavera chegou a St. Louis, fiz meu primeiro cartão de biblioteca, e como Bailey e eu parecíamos estar nos distanciando, eu passava a maior parte dos meus sábados na biblioteca (sem interrupções), inspirando o mundo dos engraxates sem dinheiro que, com bondade e perseverança, viravam homens muito ricos e davam cestas de comida para os pobres nas festas. As princesinhas que eram confundidas com empregadas e as crianças perdidas confundidas com meninos de rua se tornavam mais reais para mim do que nossa casa, nossa mãe, nossa escola e o sr. Freeman.
Durante aqueles meses, nós víamos nossos avós e nossos tios (nossa única tia tinha ido para a Califórnia fazer fortuna), mas eles normalmente faziam a mesma pergunta, “Vocês foram bons filhos?”, para a qual só havia uma resposta. Nem Bailey ousaria dizer não.