No hospital, Bailey disse que eu tinha que contar quem fez aquilo comigo, senão o homem machucaria outra garotinha. Quando expliquei que não podia contar porque o homem o mataria, Bailey disse com segurança: “Ele não pode me matar. Não vou deixar”. E é claro que acreditei nele. Bailey não mentia para mim. E contei.
Bailey chorou ao lado da minha cama até eu começar a chorar também. Quase quinze anos se passaram até que visse meu irmão chorar de novo. Usando o velho cérebro com que nasceu (essas foram as palavras dele naquele mesmo dia, mais tarde), ele passou essa informação para a vovó Baxter, e o sr. Freeman foi preso e poupado da fúria dos meus tios armados.
Eu queria passar o resto da vida no hospital. Mamãe levou flores e chocolates. Vovó levou frutas, e meus tios se reuniram em volta da minha cama, relinchando como cavalos. Quando conseguiam colocar Bailey lá dentro, ele lia para mim durante horas.
Aquilo que se diz sobre pessoas que não têm nada para fazer acabarem se tornando intrometidas não é a única verdade. A excitação é uma droga, e as pessoas cujas vidas são cheias de violência sempre se perguntam de onde vem a próxima “dose”.
O tribunal estava lotado. Havia gente até atrás dos bancos tipo de igreja nos fundos. Ventiladores de teto se moviam com a indiferença de homens velhos. Os clientes da vovó Baxter estavam reunidos em alegria petulante. Os apostadores de ternos risca-de-giz e suas mulheres maquiadas sussurravam para mim com bocas vermelho-sangue que eu agora sabia tanto quanto eles.
Eu tinha oito anos e estava crescida. Até as enfermeiras do hospital disseram que eu agora não tinha nada a temer. “O pior passou para você”, elas disseram. Então, coloquei as palavras em todas as bocas sorridentes.
Eu estava sentada com minha família (Bailey não pôde ir), e eles estavam parados nas cadeiras como tumbas sólidas, frias e cinzentas. Densas e eternamente imóveis.
O pobre sr. Freeman se virou na cadeira para me olhar com ameaças vazias. Ele não sabia que não podia matar Bailey... e Bailey não mentia... para mim.
“O que o réu estava usando?” Foi o advogado do sr. Freeman.
“Não sei.”
“Você quer dizer que este homem estuprou você e você não sabe o que ele estava usando?” Ele riu, como se eu tivesse estuprado o sr. Freeman. “Você sabe se foi estuprada?”
Um som soou no ar do tribunal (eu tinha certeza de que eram gargalhadas). Fiquei feliz de minha mãe ter me deixado usar o casaco azul-marinho com botões de metal. Apesar de ser curto demais e de o tempo estar quente, como era típico de St. Louis, o casaco era um amigo que eu abraçava contra o corpo no lugar estranho e hostil.
“Foi a primeira vez que o acusado te tocou?” A pergunta me fez parar. O sr. Freeman tinha feito uma coisa muito errada, mas eu estava convencida de que tinha ajudado. Eu não queria mentir, mas o advogado não me deixava pensar, então usei o silêncio como fuga.
“O acusado tentou tocar em você antes da vez que ele, ou melhor, que você diz que ele estuprou você?”
Eu não podia dizer sim e contar que ele me amou uma vez por alguns minutos e que me abraçou apertado antes de achar que eu tinha feito xixi na cama. Meus tios me matariam, e a vovó Baxter pararia de falar comigo, como costumava fazer quando estava com raiva. Todas aquelas pessoas no tribunal me apedrejariam, como tinham apedrejado a meretriz da Bíblia. E mamãe, que me achava tão boa menina, ficaria tão decepcionada. Mas, o mais importante, havia Bailey. Eu tinha guardado um segredo enorme dele.
“Marguerite, responda a pergunta. O acusado tocou em você antes da ocasião em que você alega que ele a estuprou?”
Todo mundo no tribunal sabia que a resposta tinha que ser não. Todo mundo, exceto o sr. Freeman e eu. Olhei para o rosto pesado tentando parecer que gostaria que eu dissesse não. E eu respondi não.
A mentira entalou na minha garganta, e não consegui respirar. Como eu desprezava o homem por me fazer mentir. Velho, mau, cruel. Velho, preto, cruel. As lágrimas não acalmaram meu coração, como costumavam. Gritei: “Velho, cruel, sujo, você. Coisa velha e suja”. Nosso advogado me tirou do banco das testemunhas e me levou para os braços da minha mãe. O fato de eu ter chegado ao meu destino desejado por meio de mentiras o tornou menos interessante para mim.
O sr. Freeman pegou um ano e um dia, mas nunca teve chance de cumprir a sentença. O advogado dele (ou alguém) o soltou naquela mesma tarde.
Na sala, onde as persianas estavam fechadas para refrescar o ambiente, Bailey e eu jogávamos Monopólio no chão. Eu estava jogando mal porque estava pensando em como poderia contar a Bailey que menti e, ainda pior para nosso relacionamento, escondi um segredo dele.
Bailey atendeu a campainha porque a vovó estava na cozinha. Um policial alto e branco pediu para falar com a sra. Baxter. Tinham descoberto sobre a mentira? Talvez o policial estivesse indo me prender porque eu tinha jurado com a mão na Bíblia que tudo que eu dissesse seria a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade. O homem na nossa sala era mais alto do que o céu e mais branco do que minha imagem de Deus. Ele só não tinha a barba.
“Sra. Baxter, achei que a senhora gostaria de saber. Freeman foi encontrado morto no terreno baldio atrás do abatedouro.”
Suavemente, como se estivesse discutindo um programa de igreja, ela disse: “Pobre homem”. Secou as mãos no pano de prato e perguntou com a mesma voz baixa: “Sabem quem o matou?”.
O policial disse: “Parece que ele foi largado lá. Alguns dizem que foi chutado até morrer”.
A cor no rosto da vovó mudou só um pouco. “Tom, obrigada por me contar. Pobre homem. Bom, talvez seja melhor assim. Ele era
um cão raivoso. Quer um copo de limonada? Ou uma cerveja?”
Apesar de parecer inofensivo, ele era um anjo terrível contando meus muitos pecados.
“Não, obrigado, sra. Baxter. Estou de serviço. Tenho que voltar.”
“Bem, diga para a sua mãe que vou lá quando minha cerveja estiver pronta, e lembre a ela de guardar chucrute para mim.”
E o anjo investigador foi embora. Ele foi embora, e um homem estava morto porque eu menti. Onde estava o equilíbrio nisso? Uma mentira não valia a vida de um homem. Bailey poderia ter explicado tudo, mas não ousei perguntar. Obviamente, eu tinha perdido meu lugar no céu para sempre, e estava tão vazia quanto a boneca que destruí muito tempo antes. Até o Próprio Cristo tinha dado as costas para Satanás. Ele não viraria as costas para mim? Eu sentia a maldade se espalhando pelo meu corpo e esperando, alerta para fugir pela minha língua se eu tentasse abrir a boca. Fechei bem os dentes para segurá-la. Se fugisse, não se espalharia pelo mundo e por todas as pessoas inocentes?
Vovó Baxter disse: “Ritie e Junior, vocês não ouviram nada. Eu nunca quero ouvir sobre essa situação e nem o nome daquele
homem horrível mencionado na minha casa. Estou falando sério”. Ela voltou para a cozinha para fazer strudel
de maçã, para a minha comemoração.
Até Bailey ficou com medo. Ele ficou sentado sozinho, olhando a morte de um homem — um gatinho olhando para um lobo. Sem entender direito, mas parecendo assustado mesmo assim.
Naqueles momentos, decidi que apesar de Bailey me amar, ele não podia ajudar. Eu tinha me vendido ao Diabo e não podia haver saída. A única coisa que eu podia fazer era parar de falar com outras pessoas além de Bailey. Instintivamente, ou de alguma forma, eu sabia que, como o amava tanto, eu nunca faria mal a ele, mas se falasse com qualquer outra pessoa, essa pessoa podia morrer também. Só meu hálito, carregando minhas palavras, podia envenenar as pessoas, e elas murchariam e morreriam como as lesmas pretas e gordas que só fingiam.
Eu tinha que parar de falar.
Descobri que para alcançar o silêncio pessoal perfeito eu só precisava me agarrar como uma sanguessuga aos sons. Comecei a ouvir tudo. Provavelmente tinha esperanças de que, depois de ter ouvido todos os sons, ouvido de verdade e armazenado todos no fundo dos meus ouvidos, o mundo ficaria quieto à minha volta. Eu entrava em salas em que as pessoas estavam rindo, as vozes batendo nas paredes como pedras, e ficava parada no meio de toda a agitação do barulho. Depois de um ou dois minutos, o silêncio surgia no aposento vindo do seu esconderijo, porque eu tinha consumido todos os sons.
Nas primeiras semanas, minha família aceitou meu comportamento como mal pós-estupro e pós-hospital. (Nem o termo e nem a experiência foram mencionados na casa da vovó, onde Bailey e eu estávamos novamente.) Eles entendiam que eu podia falar com Bailey, mas mais ninguém.
Depois veio a última visita da enfermeira, e o médico disse que eu estava curada. Isso queria dizer que eu devia voltar para as calçadas, para jogar handebol ou os jogos que ganhei quando estava doente. Como me recusei a ser a criança que eles conheciam e aceitavam que eu era, fui chamada de insolente, e minha mudez, de mau humor. Por um tempo, fui punida por ser tão arrogante que não queria falar; depois vieram as surras, dadas por qualquer parente que se sentisse ofendido.
Estávamos no trem voltando para Stamps, e desta vez fui eu que tive que consolar Bailey. Ele chorou como um bebê nos corredores do vagão e apertou o corpo de garotinho na vidraça tentando ter um último vislumbre da sua Mamãe Querida.
Não sei se Momma mandou nos chamar ou se a família de St. Louis ficou cansada da minha presença sombria. Não tem nada mais desconcertante do que uma criança constantemente taciturna.
Eu me importava menos com a viagem e mais com o fato de Bailey estar infeliz, e não pensei mais sobre nosso destino tanto quanto não pensaria em uma simples ida ao banheiro.