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Recentemente, uma mulher branca do Texas, que rapidamente se descreveria como liberal, me perguntou sobre minha cidade. Quando contei que em Stamps minha avó era dona do único mercado geral de Negros desde a virada do século, ela exclamou: “Ora, você foi uma debutante”. Ridículo e até absurdo. Mas garotas Negras em pequenas cidades do sul, fossem acometidas de pobreza ou só tendo o básico das necessidades da vida, recebiam preparações extensivas e irrelevantes para a idade adulta, da mesma forma que as garotas brancas das revistas.
Era verdade que o treinamento não era o mesmo. Enquanto as garotas brancas aprendiam a dançar valsa e a se sentarem graciosamente com uma xícara de chá equilibrada nos joelhos, nós ficávamos para trás e aprendíamos valores de meados da era vitoriana com pouco dinheiro para podermos nos entregar a eles. (Imagine Edna Lomax gastando o dinheiro que ganhou colhendo algodão em cinco rolos de linha bege de bordar frivolité . Os dedos dela são capazes de arrebentar o fio e ela ter que repetir os pontos várias vezes. Mas ela sabia disso quando comprou a linha.)
Nós tínhamos que bordar, e eu tinha baús de panos de prato coloridos, fronhas, caminhos de mesa e lenços. Dominei a arte do crochê e do frivolité , e havia suprimento para uma vida de paninhos delicados que nunca seriam usados em gavetas de cômoda com sachê perfumado. Nem é preciso dizer que todas as garotas sabiam passar e lavar, mas os toques mais delicados da casa, como pôr a mesa sem pratarias de verdade, fazer assados e cozinhar legumes sem carne, tinham que ser aprendidos em outro lugar. Normalmente, na fonte desses hábitos. Durante meu décimo ano, a cozinha de uma mulher branca virou minha escola de boas maneiras.
A sra. Viola Cullinan era uma mulher gorducha que morava em uma casa de três quartos em algum ponto atrás da agência dos correios. Ela era singularmente feia até sorrir, aí as linhas em volta dos olhos e da boca que faziam com que ela parecesse sempre suja sumiam, e seu rosto ficava parecendo o de um elfo levado. Ela costumava deixar o sorriso descansando até o final da tarde, quando as amigas apareciam e a srta. Glory, a cozinheira, servia bebidas geladas na varanda fechada.
A precisão da casa não era humana. Esse copo ficava aqui e só aqui. Aquela xícara tinha um lugar certo, e era ato de rebelião insolente colocá-la em qualquer outro lugar. Ao meio-dia, a mesa estava posta. Ao meio-dia e quinze, a sra. Cullinan se sentava para fazer a refeição (quer o marido tivesse chegado ou não). Ao meio-dia e dezesseis a srta. Glory levava a comida.
Demorei uma semana para aprender a diferença entre um prato de salada, um prato de pão e um prato de sobremesa.
A sra. Cullinan mantinha a tradição de seus pais ricos. Ela era da Virgínia. A srta. Glory, que era descendente de escravos que tinham trabalhado para os Cullinans, me contou a história. Ela se casou com uma pessoa de posição inferior (de acordo com a srta. Glory). A família do marido não tinha dinheiro havia muito tempo e o que tinha “não chegava a muita coisa”.
Por mais feia que ela fosse, eu pensava em particular, tinha sorte de ter um marido acima ou abaixo dela. Mas a srta. Glory não me deixaria dizer nada contra a patroa dela. Ela era muito paciente comigo em relação ao trabalho de casa. Explicou sobre a louça, os talheres e os sinos dos criados.
A tigela grande e redonda na qual a sopa era servida não era
uma sopeira, era uma terrina. Havia cálices, taças para doces,
taças de sorvete, taças de vinho, xícaras de café de vidro verde com pires combinando e taças de água. Eu tinha um copo, que ficava com o da srta. Glory em uma prateleira separada do resto. Colheres de sopa, molheiras, facas de manteiga, garfos de salada e bandejas
de carne foram acréscimos ao meu vocabulário e a maioria
representava mesmo uma nova linguagem. Fiquei fascinada com as novidades, com a agitada sra. Cullinan e sua casa de Alice no País das Maravilhas.
O marido dela permanece indefinido na minha memória. Eu o aglomerei junto com todos os outros homens brancos que já tinha visto e tentado não ver.
No caminho para casa, uma noite, a srta. Glory me contou que a sra. Cullinan não podia ter filhos. Dizia que era por ter ossos delicados demais. Era difícil imaginar ossos embaixo de tantas camadas de gordura. A srta. Glory disse que o médico tinha tirado todos os órgãos femininos dela. Argumentei que os órgãos de um porco incluíam os pulmões, o coração e o fígado, então se a sra. Cullinan andava por aí sem esses órgãos essenciais, era uma boa explicação de por que ela tomava álcool de garrafas sem rótulo. Ela estava se mantendo embalsamada.
Quando contei para Bailey sobre isso, ele concordou comigo, mas também me informou que o sr. Cullinan tinha duas filhas com uma moça de cor que eu conhecia muito bem. Acrescentou que as garotas eram a imagem cuspida do pai.
Eu não conseguia lembrar como ele era, apesar de ter saído de perto dele poucas horas antes, mas pensei nas garotas Coleman. Elas tinham pele muito clara e não eram muito parecidas com a mãe (e ninguém falava sobre um sr. Coleman).
Minha pena da sra. Cullinan me precedeu na manhã seguinte como o sorriso do gato Cheshire. Aquelas garotas, que podiam ser filhas dela, eram lindas. Não precisavam alisar o cabelo. Mesmo quando a chuva as pegava de surpresa, suas tranças continuavam para baixo como cobras domadas. As bocas eram curvinhas rechonchudas. A sra. Cullinan não sabia o que estava perdendo. Ou talvez soubesse. Pobre sra. Cullinan.
Durante semanas, cheguei cedo, saí tarde e tentei compensar a esterilidade dela. Se ela tivesse filhos próprios, não precisaria me pedir para correr de um lado para o outro, das portas dos fundos da sua casa até a das amigas. Pobre sra. Cullinan.
Mas uma noite a srta. Glory me mandou servir as damas na varanda. Depois que coloquei a bandeja na mesa e me virei para a cozinha, uma das mulheres perguntou: “Qual é seu nome, garota?”. Foi a que tinha sardas. A sra. Cullinan disse: “Ela não fala muito. O nome dela é Margaret”.
“Ela é muda?”
“Não. Pelo que sei, ela consegue falar quando quer, mas costuma ser muda como um ratinho. Não é, Margaret?”
Sorri para ela. Pobrezinha. Sem órgãos e nunca conseguiu pronunciar meu nome direito. “Mas ela é um amorzinho.”
“Ah, pode ser, mas o nome é grande demais. Eu nunca me daria esse trabalho. Eu a chamaria de Mary se fosse você.”
Fui para a cozinha furiosa. Aquela mulher horrível nunca teria a chance de me chamar de Mary porque, mesmo que estivesse passando fome, eu nunca trabalharia para ela. Decidi que não mijaria nela nem se o seu coração estivesse pegando fogo. Risadinhas vieram da varanda até as panelas da srta. Glory. Eu me perguntei de que elas podiam estar rindo. Os brancos eram tão estranhos. Elas poderiam estar falando sobre mim? Todo mundo sabia que eles eram mais unidos do que os Negros. Era possível que a sra. Cullinan tivesse amigos de St. Louis que souberam de uma garota de Stamps que foi ao tribunal e escreveu para ela. Talvez ela soubesse sobre o sr. Freeman. Meu almoço voltou todo para a boca. Fui lá fora e me aliviei no canteiro de maravilhas. A srta. Glory achou que eu podia estar pegando alguma coisa e me mandou para casa, disse que Momma me daria algum chá de ervas e que ela explicaria para a patroa. Percebi como estava sendo tola antes mesmo de chegar ao lago. Claro que a sra. Cullinan não sabia. Senão ela não teria me dado os dois vestidos lindos que Momma cortou, e não teria me chamado de “amorzinho”. Meu estômago pareceu bem, e não falei nada para Momma. Naquela noite, decidi escrever um poema sobre ser branca, gorda, velha e sem filhos. Seria uma balada trágica. Eu teria que observá-la com atenção para capturar a essência da solidão e da dor.
No dia seguinte, ela me chamou pelo nome errado. A srta. Glory e eu estávamos lavando a louça do almoço quando a sra. Cullinan apareceu na porta. “Mary?”
A srta. Glory perguntou: “Quem?”.
A sra. Cullinan, hesitando um pouco, sabia, e eu sabia. “Quero que Mary vá até a casa da sra. Randall e leve um pouco de sopa. Ela não anda se sentindo bem há alguns dias.”
O rosto da sra. Glory foi uma maravilha de se ver. “Você quer dizer Margaret, senhora. O nome dela é Margaret.”
“Esse nome é comprido demais. Ela é Mary de agora em diante. Esquente a sopa de ontem e coloque na terrina de porcelana, e, Mary, quero que você carregue com cuidado.”
Todo mundo que eu conhecia tinha um horror infernal de ser “chamado pelo nome errado”. Era uma prática perigosa chamar um Negro de qualquer coisa que pudesse ser encarada como insultante por causa dos séculos em que foram chamados de pretos, negrinhos, crioulos, neguinhos, pretinhos, escurinhos.
A srta. Glory teve um segundo de pena de mim. Mas quando me deu a terrina quente, ela disse: “Não ligue, não dê atenção a isso. Paus e pedras podem machucar seu corpo, mas as palavras... Você sabe, trabalho para ela há vinte anos”. Ela segurou a porta dos fundos aberta para mim. “Vinte anos. Eu não era muito mais velha do que você. Meu nome era Hallelujah. Era como minha mãe me chamava, mas minha patroa me deu ‘Glory’, e pegou. Também gosto mais.”
Eu estava no caminho estreito que passava por trás das casas quando a srta. Glory gritou: “E também é menor”.
Por alguns segundos, fiquei dividida entre rir (imagine se chamar Hallelujah) ou chorar (imagine deixar uma mulher branca mudar seu nome para a conveniência dela). Minha raiva me salvou das duas explosões. Eu tinha que sair daquele emprego, mas o problema seria como fazer isso. Momma não me deixaria sair por nenhum motivo.
“Ah, ela é um amor. Aquela mulher é um amor.” A empregada da sra. Randall ficou repetindo isso algumas vezes enquanto pegava a sopa comigo, e eu me perguntei qual era o seu nome e ao qual ela atendia agora.
Por uma semana, olhei na cara da sra. Cullinan enquanto ela me chamava de Mary. Ela ignorou meus atrasos na hora de chegar e os dias que saí mais cedo. A srta. Glory estava um pouco irritada porque eu tinha começado a deixar gema de ovo nos pratos e não estava me dedicando muito a polir a prataria. Eu esperava que fosse reclamar com a chefe, mas ela não falou nada.
Então, Bailey resolveu meu dilema. Ele me mandou descrever o conteúdo do armário de louças e os pratos de que ela mais gostava. O favorito era uma caçarola com formato de peixe e as xícaras de café de vidro verde. Mantive as instruções dele em mente, e no dia seguinte, quando a srta. Glory estava pendurando as roupas e recebi novamente a ordem de servir as mulheres na varanda, deixei a bandeja vazia cair. Quando ouvi a sra. Cullinan gritar “Mary!”, peguei a caçarola e duas xícaras de vidro verde e me preparei. Quando ela apareceu na porta da cozinha, deixei tudo cair no chão.
Nunca consegui descrever direito para Bailey o que aconteceu em seguida, porque cada vez que eu chegava na parte em que ela caiu no chão e retorceu o rosto feio para chorar, nós caíamos na gargalhada. Ela se arrastou pelo chão e pegou cacos das xícaras e gritou: “Ah, mamãe. Ah, meu bom Deus. É a porcelana da Virgínia da mamãe. Ah, mamãe, me desculpe”.
A srta. Glory veio correndo do quintal, e as mulheres da varanda apareceram. A srta. Glory ficou quase tão arrasada quanto a patroa. “Você quer dizer que ela quebrou nossa louça da Virgínia? O que vamos fazer?”
A sra. Cullinan gritou mais alto: “Aquela crioula estabanada. Crioulinha estabanada”.
A de sardas na cara se inclinou e perguntou: “Quem foi, Viola? Foi Mary? Quem foi?”.
Tudo estava acontecendo tão rápido que não consigo lembrar se o ato dela precedeu as palavras, mas sei que a sra. Cullinan disse: “O nome dela é Margaret, droga, o nome dela é Margaret!”. E ela jogou um pedaço de prato quebrado em mim. Pode ter sido a histeria que afetou a mira, mas o caco voador acertou a srta. Glory acima da orelha, e ela começou a gritar.
Deixei a porta da frente bem aberta para todos os vizinhos ouvirem.
A sra. Cullinan estava certa quanto a uma coisa. Meu nome não era Mary.