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Morávamos em uma típica casa de quatorze cômodos da São Francisco pós-terremoto. Tivemos uma sucessão de pessoas alugando quartos, trazendo e levando seus sotaques diferentes, suas personalidades e comidas. Funcionários de pátio de ferrovia subiam pela escada (nós todos dormíamos no segundo andar, exceto mamãe e papai Clidell) com as botas com pontas de aço e chapéus de metal e abriam espaço para prostitutas com pó demais na cara, que riam pela maquiagem e penduravam as perucas nas maçanetas. Um casal (eles eram mestrandos de faculdade) tinha longas conversas adultas comigo na grande cozinha do térreo, até o marido ir para a guerra. Depois disso, a esposa, que era tão encantadora e disposta a sorrir, mudou para uma sombra silenciosa que quase nunca brincava pelas paredes. Um casal mais velho morou conosco por um ano, mais ou menos. Eles eram donos de um restaurante e não tinham personalidade que encantasse ou interessasse uma adolescente, exceto pelo marido se chamar tio Jim e a esposa se chamar tia Boy. Nunca entendi isso.
A qualidade de força alinhada à ternura é uma combinação imbatível, assim como inteligência e necessidade quando não atrapalhadas pela educação formal. Eu estava preparada para aceitar papai Clidell como mais um nome sem rosto acrescentado à lista de conquistas de mamãe. Eu tinha me treinado de forma tão boa ao longo dos anos para demonstrar interesse, ou ao menos atenção, enquanto minha mente voava com liberdade por outros assuntos, que poderia ter morado na sua casa sem nunca vê-lo e sem que ele nunca soubesse disso. Mas a personalidade pedia e gerava admiração. Ele era um homem simples sem complexo de inferioridade pela falta de estudos e, ainda mais incrível, sem complexo de superioridade por ter sido bem-sucedido apesar dessa falta. Ele dizia com frequência: “Eu passei três anos da vida na escola. Em Slaten, Texas, os tempos eram difíceis, e eu tinha que ajudar meu pai na fazenda”.
Não havia recriminações escondidas por baixo da declaração simples, e também não havia presunção quando ele dizia: “Se estou vivendo um pouco melhor é porque trato todo mundo direito”.
Ele era dono de prédios de apartamentos e, mais tarde, salões de bilhar, e era famoso por ser aquela raridade chamada “homem de honra”. Ele não sofria, como muitos “homens honestos” sofrem, daquela arrogância detestável que diminui sua virtude. Conhecia as cartas e o que ia no coração dos homens. Assim, durante a idade em que mamãe estava nos expondo para certos fatos da vida, como higiene pessoal, postura adequada, modos à mesa, bons restaurantes e gorjetas, papai Clidell me ensinou a jogar pôquer, vinte e um, tonk e high, low, Jick, Jack and the Game. Usava ternos ajustados e caros e um alfinete de lapela com um grande diamante amarelo. Exceto pelas joias, se vestia de forma conservadora e se portava com a postura inconsciente de um homem em situação segura. Surpreendentemente, eu me parecia com ele, e quando ele, mamãe e eu andávamos pela rua, seus amigos muitas vezes diziam: “Clidell, ela só pode ser sua filha. Não tem como você negar”.
Uma gargalhada orgulhosa soava depois dessas declarações, pois ele não tinha tido filhos. Por causa da chegada tardia, mas com sentimento paternal forte, fui apresentada às personalidades mais variadas do submundo Negro. Uma tarde, fui convidada para uma sala de jantar cheia de fumaça para conhecer Stonewall Jimmy, Just Black, Cool Clyde, Tight Coat e Red Leg. Papai Clidell me explicou que eles eram os golpistas mais bem-sucedidos do mundo e que iam me contar sobre alguns jogos para que eu nunca fosse “alvo de ninguém”.
Para começar, um homem me avisou, “nunca existiu um alvo até hoje que não quisesse alguma coisa de graça”. Eles se revezaram em seguida para me mostrar seus truques, como escolhiam as vítimas (alvos) dentre os brancos ricos e intolerantes e, em todos os casos, como usavam o preconceito da vítima contra ela mesma.
Algumas das histórias eram engraçadas, algumas eram patéticas, mas todas eram divertidas ou gratificantes para mim, pois o homem Negro, o golpista que podia agir como burro, vencia todas as vezes contra o branco poderoso e arrogante.
Eu me lembro da história do sr. Red Leg como uma melodia favorita.
“Qualquer coisa que funcione contra você também pode funcionar a seu favor desde que você entenda a Lei do Retorno.
“Tinha um branquelo em Tulsa que enganou tantos Negros que podia até montar uma empresa de trapacear Negros. Naturalmente ele passou a pensar que pele Negra quer dizer idiota. Just Black e eu fomos a Tulsa dar uma olhada. Acabamos descobrindo que ele era um alvo perfeito. A mãe dele devia ter passado maus pedaços em um massacre índio na África. Ele odiava Negros só um pouco mais do que odiava índios. E era ganancioso.
“Black e eu o estudamos e decidimos que valia a pena dar uma lição nele. Isso queria dizer que estávamos dispostos a investir alguns milhares de dólares em preparação. Chamamos um garoto branco de Nova York, um golpista dos bons, e fizemos com que ele abrisse um escritório em Tulsa. Em teoria, ele era um agente imobiliário do norte tentando comprar um terreno valioso em Oklahoma. Nós investigamos um terreno perto de Tulsa que tinha um pedágio no meio. Era parte de uma reserva indígena, mas tinha sido tomado pelo estado.
“Just Black seria a isca e eu seria o idiota. Depois que nosso amigo de Nova York contratou uma secretária e mandou imprimir cartões de visita, Black abordou o alvo com uma proposta. Disse que tinha ouvido falar que nosso alvo era o único branco em quem as pessoas de cor podiam confiar. Ele citou alguns dos pobres tolos que sofreram golpe do safado. Isso só mostra que os brancos podem ser enganados pela própria enganação. O alvo acreditou em Black.
“Black contou a ele sobre um amigo que era meio índio e meio de cor e que um agente imobiliário do norte tinha descoberto que ele era o único dono de um terreno valioso, e esse cara do norte queria comprar esse terreno. Primeiro, o homem agiu como se sentisse cheiro de coisa podre, mas pelo jeito como engoliu a proposta, achou mesmo que sentia cheiro de dinheiro preto fácil.
“Perguntou a localização do terreno, mas Black desconversou. Disse para o branquelo que só queria ter certeza de que ele estaria interessado. O alvo falou que estava ficando interessado, e Black disse que falaria com o amigo e eles fariam contato. Black encontrou o alvo durante umas três semanas em carros e becos, e ficava enrolando, até o branco estar quase maluco de ansiedade e ganância, e de repente pareceu que Black soltou sem querer o nome do agente imobiliário do norte que queria a propriedade. Daquele momento em diante, nós sabíamos que o peixe grande tinha mordido a isca, e nós só precisávamos puxar a linha.
“Esperávamos que ele fizesse contato com a nossa loja, e ele fez mesmo. Aquele branquelo foi até o local e contou com sua cor branca para ser visto como aliado de Spots, nosso garoto branco, mas Spots se recusou a falar do negócio, só que o terreno tinha sido detalhadamente investigado pela maior imobiliária do sul e que, se nosso alvo ficasse quieto, ele cuidaria para que houvesse uma boa quantia para ele no acordo. Qualquer investigação óbvia sobre o dono do terreno poderia alertar o estado, e sem dúvida aprovariam uma lei impedindo a venda. Spots falou para o alvo que faria contato. O alvo voltou ao escritório três ou quatro vezes, mas não deu em nada, e logo antes de sabermos que ele falaria, Black me levou para vê-lo. Aquele idiota estava tão feliz quanto um mariquinhas em um acampamento só de meninos. Parecia que tinha uma corda no meu pescoço e ele ia acender uma fogueira embaixo dos meus pés. Nunca me diverti tanto dando o golpe em alguém.
“Banquei o assustado no começo, mas Just Black me disse que ele era um homem branco em que nosso povo podia confiar. Eu disse que não confiava em nenhum homem branco porque eles só queriam uma oportunidade de matar um Negro de forma legal e levar a mulher dele pra cama. (Desculpa, Clidell.) O alvo me garantiu que ele era o único branco que não pensava assim. Alguns dos melhores amigos dele eram de cor. Na verdade, se eu não sabia, a mulher que o criou era de cor, e ele ainda a via atualmente. Eu me deixei ser convencido, e o alvo começou a falar mal dos brancos do norte. Ele me disse que no norte faziam os Negros dormirem na rua e que eles tinham que limpar as privadas com as mãos e coisas até piores do que isso. Fiquei chocado e disse: ‘Então não quero vender minhas terras para o homem branco que ofereceu setenta e cinco mil dólares’. Just Black disse: ‘Eu não saberia o que fazer com um dinheiro desses’, e eu disse que só queria ter dinheiro para comprar uma casa para minha velha mãe, comprar um negócio e fazer uma viagem ao Harlem. O alvo perguntou quanto isso custaria, e eu falei que achava que conseguiria fazer tudo isso com cinquenta mil dólares.
“O alvo me disse que nenhum Negro estaria em segurança com um dinheiro daqueles. Que os brancos tirariam dele. Eu disse que sabia, mas tinha que ter pelo menos quarenta mil dólares. Ele concordou. Apertamos as mãos. Eu disse que faria bem ao meu coração ver os ianques maus perderem uma parte da “nossa terra”. Nós nos encontramos na manhã seguinte, assinei o contrato no carro dele e ele me deu o dinheiro.
“Black e eu tínhamos deixado a maioria das nossas coisas em um hotel em Hot Springs, Arkansas. Quando o negócio foi fechado, andamos até o carro, atravessamos a fronteira do estado e fomos para Hot Springs.
“E esse é o fim da história.”
Quando ele terminou, mais histórias triunfantes choveram pela sala, fazendo os ombros das pessoas pularem de tanto que riam. Por tudo que foi contado, aqueles contadores de histórias, nascidos Negros e homens antes da virada do século XX
, deviam ter sido massacrados pela sociedade. Mas eles usaram a inteligência para abrir a porta da rejeição, e não só se tornaram prósperos, mas também conseguiram se vingar no caminho.
Não era possível eu vê-los como criminosos nem sentir qualquer coisa além de orgulho de seus feitos.
As necessidades de uma sociedade determinam sua ética, e nos guetos Negros americanos o herói é o homem que só recebe migalhas da mesa do país, mas que com engenhosidade e coragem consegue fazer um banquete digno dos deuses. Assim, o zelador que mora em um quartinho, mas anda em um Cadillac azul, não é motivo de riso, e sim admirado, e a doméstica que compra sapatos de quarenta dólares não é criticada, e sim apreciada. Nós sabemos que eles botaram em prática os poderes mentais e psicológicos que têm. Cada ganho individual aumenta os ganhos do coletivo.
As histórias de violações da lei são pesadas em balanças diferentes na mente Negra e na branca. Crimes pequenos constrangem a comunidade, e muitas pessoas se perguntam com tristeza por que os Negros não roubam mais bancos, não desviam mais fundos e não fazem mais uso de suborno nos sindicatos. “Nós somos as vítimas do roubo mais extenso da história. A vida exige equilíbrio. Não tem problema se cometermos pequenos roubos agora.” Essa crença tem apelo particular para quem não consegue competir legalmente com os outros cidadãos.
A minha educação e a dos meus companheiros Negros era bem diferente da educação dos nossos colegas de escola brancos. Na sala de aula, aprendíamos o particípio dos verbos, mas nas ruas e em casa os Negros aprendiam a não usar o S no plural e a não flexionar os verbos. Estávamos alertas para o vão que separava a palavra escrita da coloquial. Aprendemos a passar de uma linguagem a outra sem estarmos conscientes disso. Na escola, em uma dada situação, poderíamos responder com “Isso não é incomum”. Mas, nas ruas, ao enfrentar uma mesma situação, dizíamos facilmente: “As coisa é assim às vez”.