30
Assim como Jane Withers e Donald O’Connor, eu ia viajar de férias. Papai Bailey me convidou para passar o verão com ele no sul da Califórnia, e eu estava tensa de empolgação. Considerando o ar característico de superioridade do nosso pai, eu esperava secretamente que ele vivesse em uma mansão cercada de jardins e atendida por uma equipe uniformizada.
Mamãe foi pura cooperação na hora de me ajudar a comprar roupas de verão. Com a arrogância que os habitantes de São Francisco têm pelas pessoas que vivem no clima mais quente, ela explicou que eu precisava de muitos shorts, calças capri, sandálias e blusas porque “os californianos do sul quase nunca usam nada diferente disso”.
Papai Bailey tinha uma namorada, que tinha começado a se corresponder comigo alguns meses antes, e ela ia me encontrar no trem. Combinamos de usar cravos brancos para nos identificarmos, e o atendente do trem guardou minha flor na geladeira Frigidaire da lanchonete até chegarmos à cidade pequena e quente.
Na plataforma, meus olhos passaram pelos brancos e procuraram entre os Negros que estavam andando de um lado para o outro com expectativa. Não havia nenhum homem alto como papai, e nenhuma dama verdadeiramente glamorosa (eu tinha decidido que, considerando a primeira escolha dele, todas as mulheres seguintes seriam absurdamente lindas). Vi uma garotinha com uma flor branca, mas a descartei como improvável. A plataforma esvaziou enquanto passávamos uma pela outra várias vezes. Finalmente, ela me parou com um incrédulo “Marguerite?”. Sua voz vibrou com choque e maturidade. Então, no fim das contas, não era uma garotinha. Também fui tomada por incredulidade.
Ela disse: “Sou Dolores Stockland”.
Atordoada, mas tentando manter as boas maneiras, eu disse: “Oi. Meu nome é Marguerite”.
A namorada do papai? Calculei que tivesse vinte e poucos anos. O impecável terninho de anarruga, os saltinhos de duas cores e as luvas me informavam que ela era decente e séria. Tinha altura mediana, mas com o corpo não formado de uma garota, e achei que, se estivesse planejando se casar com nosso pai, devia ter ficado horrorizada de encontrar uma possível enteada de quase um metro e oitenta que nem era bonita. (Descobri depois que papai Bailey tinha contado para ela que seus filhos tinham oito e nove anos e eram uns fofos. Ela precisava tanto acreditar nele que, apesar de nos correspondermos em uma época em que eu amava palavras polissílabas e frases complexas, ela conseguiu ignorar o óbvio.)
Fui mais um elo em uma longa cadeia de decepções. Papai tinha prometido se casar com ela, mas ficava adiando, até finalmente se casar com uma mulher chamada Alberta, que era outra mulher pequena e rígida do sul. Quando conheci Dolores, tinha a pose de burguesia Negra sem a base material para sustentar isso. Em vez de ter uma mansão e criados, papai morava em um trailer nos arredores de uma cidade que já era arredores de cidade. Dolores morava lá com ele e mantinha a casa limpa com a organização de um caixão. Flores artificiais repousavam como enceradas em vasos de vidro. Tinha um bom relacionamento com a máquina de lavar roupas e com a tábua de passar. O cabelereiro podia contar com sua fidelidade e pontualidade. Em uma palavra, exceto por intrusões, sua vida teria sido perfeita. E então, eu apareci.
Ela se esforçou para fazer de mim uma coisa que pudesse aceitar razoavelmente. Sua primeira tentativa, que falhou completamente, teve a ver com minha atenção a detalhes. Ela me pediu, tentou me bajular e até mandou que eu arrumasse meu quarto. Minha disposição de fazer isso foi atrapalhada por uma ignorância abundante de como isso devia ser feito e uma dificuldade de manusear pequenos objetos. A cômoda no meu quarto era coberta de mulheres brancas de porcelana segurando sombrinhas, de cachorros de louça, de cupidos barrigudinhos e animais de vidro de todos os tipos. Depois de fazer a cama, varrer o quarto e pendurar as roupas, se e quando eu me lembrava de tirar o pó dos bibelôs, era certo que eu apertaria um deles demais e quebraria uma ou duas pernas ou seguraria com mão leve demais e os deixaria cair até se espatifar em pedacinhos.
Papai vivia com uma expressão entretida e impenetrável. Parecia positivamente diabólico no quanto se divertia com nosso desconforto. Sem dúvida, Dolores amava seu enorme amante, e sua elocução (papai Bailey não falava, discursava), temperada com sua pronúncia alongada, devia ser um consolo para ela na casa inferior a uma de classe média. Ele trabalhava na cozinha de um hospital naval, e os dois diziam que ele era nutricionista médico da Marinha dos Estados Unidos. A Frigidaire vivia cheia de pedaços frescos de presunto, de carne assada e de frango. Papai era ótimo na cozinha. Ele foi para a França na Primeira Guerra Mundial e também trabalhou como porteiro no exclusivo Breaker’s Hotel; como resultado, costumava fazer jantares continentais. Nós nos sentávamos com frequência para comer coq au vin , costela au jus e cotelette Milanese com todos os acompanhamentos. Mas sua especialidade era comida mexicana. Ele viajava pela fronteira toda semana para comprar condimentos e outras coisas que agraciavam nossa mesa na forma de pollo em salsa verde e enchilada con carne .
Se Dolores fosse menos avoada e tivesse mais o pé no chão, teria descoberto que havia todos aqueles ingredientes na cidade e que papai não precisava viajar para o México para comprar provisões. Mas ela nunca nem olhava para dentro de um daqueles mercados mexicanos sujos, e menos ainda entraria naquele fedor. E também era chique dizer “Meu marido, o sr. Johnson, o nutricionista naval, foi ao México comprar algumas coisas para o nosso jantar”. Isso era admirado por outras pessoas chiques que vão à área dos brancos comprar alcachofras.
Papai falava espanhol fluente, e como eu tinha estudado durante um ano, nós conseguíamos conversar um pouco. Acredito que meu talento com línguas estrangeiras foi a minha única qualidade que impressionou Dolores. Sua boca era rígida demais e a língua imóvel demais para ela tentar os sons estranhos. Mas era verdade que seu inglês, assim como todo o resto, era absolutamente perfeito.
Nós vivemos um teste de forças durante semanas, enquanto papai ficava nas laterais, nem torcendo nem vaiando, mas se divertindo imensamente. Ele me perguntou uma vez se eu “gostava da minha mãe”. Achei que ele estivesse falando da minha mãe, e respondi que sim — ela era linda e alegre e muito gentil. Ele disse que não estava falando sobre Vivian, mas sobre Dolores. Expliquei que não gostava dela porque ela era má e mesquinha e pretensiosa. Ele riu, e quando acrescentei que ela não gostava de mim porque eu era alta e arrogante e não era limpa o bastante para ela, ele riu ainda mais e disse alguma coisa tipo “Bem, é a vida”.
Uma noite, ele anunciou que no dia seguinte ia ao México comprar comida para o fim de semana. Não houve nada de incomum no comunicado até ele acrescentar que ia me levar junto. Ele preencheu o silêncio de choque com a informação de que uma viagem para o México me daria oportunidade de praticar o espanhol.
O silêncio de Dolores talvez tenha sido resultado de uma reação ciumenta, mas o meu foi ocasionado por pura surpresa. Meu pai não tinha demonstrado nenhum orgulho de mim e bem pouco carinho. Não me levou para conhecer os amigos e nem para os poucos pontos turísticos do sul da Califórnia.
Era incrível eu ser incluída em uma coisa tão exótica quanto uma viagem ao México. Bem, argumentei rapidamente, eu merecia. Afinal, era filha dele, e minhas férias estavam longe do que eu esperava que férias fossem. Se eu tivesse protestado que gostaria que Dolores fosse junto, nós talvez tivéssemos evitado um show de violência e quase tragédia. Mas minha mente jovem estava cheia de si, e minha imaginação tremia com a perspectiva de ver sombreiros, rancheiros, tortillas e Pancho Villa. Passamos uma noite tranquila. Dolores consertou suas lingeries perfeitas e eu fingi ler um livro. Papai ouviu rádio com uma bebida na mão e observou o que agora sei que era um espetáculo lamentável.
De manhã, partimos em nossa aventura internacional. As estradas de terra do México preencheram meu desejo pelo incomum. Apenas alguns quilômetros depois das rodovias lisas da Califórnia e, para mim, dos prédios altos, seguimos por estradas de cascalho irregulares que poderiam competir com os piores caminhos no Arkansas, e a paisagem exibia casebres de adobe ou barracos com metal corrugado de parede. Cachorros magros e sujos rondavam as casas, e as crianças brincavam inocentemente nuas ou quase nuas com pneus velhos. Metade da população parecia Tyrone Power e Dolores Del Rio, e a outra metade Akim Tamiroff e Katina Paxinou, só que talvez mais gorda e mais velha.
Papai não deu explicações conforme passávamos pela cidade de fronteira e seguíamos para o interior. Embora surpresa, eu me recusei a dar espaço à minha curiosidade fazendo perguntas. Depois de alguns quilômetros, nós fomos parados por um guarda uniformizado. Ele e papai trocaram cumprimentos familiares, e papai saiu do carro. Enfiou a mão no bolso da porta e levou uma garrafa de bebida até a guarita do guarda. Eles riram e conversaram por mais de meia hora enquanto eu ficava no carro tentando traduzir os sons abafados. Chegou uma hora em que eles saíram e voltaram até o carro. Papai ainda estava com a garrafa, mas pela metade. Ele perguntou ao guarda se ele gostaria de se casar comigo. O espanhol deles era mais irregular do que o que aprendi na escola, mas entendi. Meu pai acrescentou como diferencial o fato de eu ter só quinze anos. Na mesma hora, o guarda se inclinou para dentro do carro e acariciou minha bochecha. Supus que ele achasse antes que eu era velha além de feia, e que agora saber que eu devia ser intocada o atraiu. Ele disse para papai que se casaria comigo e que teríamos “muitos bebês”. Meu pai achou essa promessa a coisa mais engraçada que tinha ouvido desde que saímos de casa. (Ele riu alto quando Dolores não respondeu ao meu adeus e expliquei quando estávamos nos afastando que ela não tinha ouvido.) O guarda não ficou desencorajado pelas minhas tentativas de me afastar das mãos curiosas, e eu teria me contorcido até o assento do motorista se papai não tivesse aberto a porta e entrado. Depois de muitos adiós e bonitas e espositas , papai ligou o carro e seguimos nosso caminho sujo.
Placas me informaram que estávamos a caminho de Ensenada. Naqueles quilômetros, pelas estradas sinuosas ao lado da montanha íngreme, temi nunca mais voltar para os Estados Unidos, para a civilização, para o inglês e para as ruas largas. Ele bebeu goles da garrafa e cantou trechos de músicas mexicanas enquanto seguíamos pela tortuosa estrada na montanha. Nosso destino acabou não sendo a cidade de Ensenada, mas um lugar a uns oito quilômetros do limite da cidade. Paramos no pátio de terra de uma cantina onde crianças parcialmente vestidas corriam atrás de galinhas parecendo selvagens. O barulho do carro levou mulheres para a porta da construção precária, mas não distraiu a atividade das crianças sujas nem das aves magras.
Uma voz de mulher cantarolou “Baylee, Baylee”. E, de repente, um grupo de mulheres se reuniu na porta e se espalhou pelo pátio. Papai me mandou sair do carro e fomos nos encontrar com as mulheres. Ele explicou rapidamente que eu era filha dele, o que todas acharam incrivelmente engraçado. Nós fomos levados para um aposento comprido com um bar na extremidade. Havia mesas espalhadas pelo piso de tábuas soltas. O teto chamou minha atenção. Tiras de papel de todas as cores possíveis balançavam no ar quase parado, e enquanto eu olhava, algumas caíram no chão. Ninguém pareceu reparar, ou, se reparou, não era importante o fato de o céu dessas pessoas estar caindo. Havia alguns homens em bancos no bar, e eles cumprimentaram meu pai com a tranquilidade da familiaridade. Fui levada de um lado para outro, e cada pessoa foi informada do meu nome e idade. O “Cómo está usted? ” formal do ensino médio foi recebido como a fala mais encantadora possível. As pessoas me deram tapinhas nas costas, apertaram a mão de papai e falaram um espanhol quebrado que não consegui acompanhar. Baylee foi o herói da vez, e quando foi se alegrando com a demonstração aberta de carinho, vi um novo lado do homem. O sorriso zombeteiro sumiu e ele parou com o jeito afetado de falar (teria sido difícil pronunciar palavras longamente naquele espanhol rápido).
Parecia difícil acreditar que ele era uma pessoa solitária, procurando sem parar em garrafas, embaixo das saias de mulheres, em trabalho na igreja e em títulos de emprego arrogantes seu “nicho pessoal”, perdido antes do nascimento e nunca recuperado. Na época, estava óbvio para mim que Stamps nunca foi o lugar dele, e menos ainda a família Johnson, de movimentos lentos e pensamento lento. Como era enlouquecedor ter nascido com aspirações de grandeza em um campo de algodão.
No bar mexicano, papai ficou com um ar de relaxamento que eu nunca tinha visto nele. Não havia necessidade de fingir na
frente daqueles camponeses mexicanos. Ser ele mesmo bastava
para impressioná-los. Ele era americano. Era negro. Falava espanhol fluente. Tinha dinheiro e podia beber tequila com os melhores
deles. As mulheres também gostavam dele. Ele era alto e bonito e generoso.
Foi uma festa. Alguém colocou moedas no jukebox, e bebidas foram servidas a todos os clientes. Ganhei uma Coca-Cola quente. A música saía da máquina em vozes de tenor e oscilavam e prosseguiam, oscilavam e prosseguiam nos rancheros apaixonados. Homens dançaram, primeiro sozinhos, depois uns com os outros e, de vez em quando, uma mulher se juntava aos pés batidos no chão. Fui convidada para dançar. Hesitei porque não tinha certeza se conseguiria seguir os passos, mas papai assentiu e me encorajou a tentar. Quando me dei conta, eu estava me divertindo havia pelo menos uma hora. Um jovem me ensinou a colocar um adesivo no teto. Primeiro, todo o açúcar precisa ser retirado do chiclete mexicano pela mastigação, depois o barman dá umas tiras de papel ao aspirante, que escreve um provérbio ou uma frase sentimental nela. A pessoa tira o chiclete macio da boca e gruda na ponta da tira. Escolhe uma área menos coberta do teto, mira no local, e, quando arremessa, solta um grito apavorante que não ficaria deslocado em um rodeio. Depois de alguns gritinhos baixos, superei minha timidez e soltei as amídalas com um grito digno de Zapata. Eu estava feliz, papai estava orgulhoso e meus novos amigos eram gentis. Uma mulher levou chicharrones (no sul são chamados de torresmo) em um jornal oleoso. Comi a pele de porco frita, dancei, gritei e bebi a Coca-Cola doce e grudenta com o mais próximo de entrega que eu já tinha vivenciado. Conforme novas pessoas iam se juntando à festa, eu era apresentada como la niña de Baylee e era rapidamente aceita. O sol da tarde não conseguiu iluminar o aposento pela única janela, e o toque de corpos e os odores e sons se misturaram e nos deram um crepúsculo aromático e artificial. Percebi que não via meu pai há algum tempo. “Dónde está mi padre? ”, perguntei ao meu parceiro de dança. Meu espanhol formal deve ter soado pretensioso aos ouvidos do paisano como “Qual é o paradeiro do meu progenitor?” soaria para um habitante das montanhas de Ozark. De qualquer modo, gerou uma onda de gargalhadas, um abraço de urso e nenhuma resposta. Quando a dança terminou, segui pelo meio das pessoas da forma mais discreta possível. Uma neblina de pânico quase me sufocava. Ele não estava no salão. Teria feito algum arranjo com o guarda no caminho? Eu não achava impossível. Minha bebida tinha sido batizada. A certeza deixou meus joelhos fracos, e casais dançando ficaram borrados aos meus olhos. Papai tinha ido embora. Já devia estar na metade do caminho de casa com o dinheiro da minha venda no bolso. Eu tinha que chegar à porta, que parecia a quilômetros e montanhas de distância. As pessoas me pararam com um “Dónde vas? ”. Minha resposta foi algo rígido de duplo sentido, como “Yo voy por ventilarme ”, ou “Vou tomar um ar fresco”. Não era surpresa eu ser um sucesso.
Visto pela porta aberta, o Hudson de papai estava em esplendor solitário. Ele não tinha me abandonado, afinal. Isso queria dizer, claro, que eu não tinha sido drogada. Na mesma hora me senti melhor. Ninguém me seguiu para o pátio, onde o sol da tarde tinha aliviado a dureza do meio-dia. Decidi me sentar no carro e esperá-lo, pois ele não podia ter ido longe. Eu sabia que ele estava com uma mulher, e quanto mais pensava no assunto, mais fácil era saber qual das señoritas alegres ele tinha levado. Houve uma mulher pequena e arrumada com lábios muito vermelhos que se agarrou avidamente a ele quando nós chegamos. Não dei atenção na hora, mas registrei sua felicidade. No carro, refletindo, repassei a cena. Ela foi a primeira a correr até ele, e foi nessa hora que ele disse rapidamente “Essa é minha filha” e “Ela fala espanhol”. Se Dolores soubesse, entraria embaixo de seu cobertor de afetação e morreria de forma circunspecta. A ideia da sua vergonha me fez companhia por muito tempo, mas os sons de música e gargalhadas e os gritos de Cisco Kid interromperam meus agradáveis devaneios de vingança. Afinal, estava escurecendo, e papai devia estar fora do meu alcance em um dos chalés nos fundos. Um medo estranho surgiu lentamente enquanto pensei na possibilidade de passar a noite sozinha no carro. Era um medo relacionado de longe com o pânico anterior. O pavor não me envolveu inteira, mas surgiu na minha mente como uma paralisia gradual. Eu podia fechar as janelas e trancar o carro. Podia me deitar no piso e me tornar pequena e invisível. Impossível! Tentei sufocar a onda de medo. Por que eu estava com medo dos mexicanos? Afinal, eles foram gentis comigo, e sem dúvida meu pai não deixaria a filha ser maltratada. Deixaria? Deixaria? Como ele podia me deixar naquele bar vagabundo e sair com a mulher dele? Ele ligava para o que acontecia comigo? Nem um pouco, decidi, e abri a comporta da histeria. Quando as lágrimas começaram, não houve como fazê-las parar. Eu ia acabar morrendo em um pátio de terra mexicano. A pessoa especial que eu era, a mente inteligente que Deus e eu tínhamos criado juntos, partiria desta vida sem reconhecimento e sem contribuição. Como as Moiras eram impiedosas e como essa pobre garota Negra estava impotente!
Avistei sua sombra na quase escuridão e estava prestes a pular e correr até ele quando reparei que estava apoiado na mulher pequena que vi antes e em um homem. Ele cambaleava e oscilava, mas eles o seguravam com firmeza e guiaram seus passos na direção da porta da cantina . Quando ele entrasse, talvez nunca mais saísse. Saí do carro e fui até eles. Perguntei a papai se ele não gostaria de ir para o carro descansar um pouco. Ele se concentrou o suficiente para me reconhecer e respondeu que era exatamente isso que queria; estava um pouco cansado e gostaria de descansar antes de irmos embora para casa. Ele disse para os amigos o que desejava em espanhol, e eles o guiaram até o carro. Quando abri a porta, ele disse Não, vou me deitar um pouco no banco de trás. Nós o colocamos no carro e tentamos arrumar as pernas compridas de forma confortável. Ele começou a roncar enquanto o ajeitávamos. Pareceu o começo de um longo sono profundo, e um aviso de que passaríamos a noite no carro, no México, afinal.
Pensei rápido enquanto o casal ria e falava comigo em espanhol incompreensível. Eu nunca tinha dirigido um carro na vida, mas tinha observado com cuidado, e minha mãe era declarada a melhor motorista de São Francisco. Ela declarava isso, pelo menos. Eu era extremamente inteligente e tinha boa coordenação motora. Claro que era capaz de dirigir. Idiotas e lunáticos dirigiam carros, por que não a brilhante Marguerite Johnson? Pedi ao homem mexicano para dar meia-volta com o carro, mais uma vez usando meu exótico espanhol de ensino médio, e demorei uns quinze minutos para me fazer entender. O homem devia ter perguntado se eu sabia dirigir, mas eu não sabia o verbo “dirigir” em espanhol, então fiquei repetindo “Si, si ” e “Gracias ” até ele entrar e virar o carro na direção da estrada. Ele demonstrou compreender a situação com a atitude seguinte. Deixou o motor ligado. Coloquei o pé no acelerador e na embreagem, passei a marcha e levantei os dois pés. Com um rugido ameaçador, saímos do pátio.
Quando subimos a elevação para a estrada, o carro quase parou, e enfiei os dois pés de novo no acelerador e na embreagem. Não fizemos nenhum progresso, mas um monte de barulho, só que o motor não parou. Entendi então que para ir para a frente eu teria que levantar os pés dos pedais, e se fizesse isso abruptamente, o carro tremeria como uma pessoa com aquela doença chamada dança de São Vito . Com essa compreensão total do princípio da locomoção motorizada, dirigi pela encosta na direção de Calexico, a uns oitenta quilômetros de distância. É difícil entender por que minha imaginação vívida e minha tendência de sentir medo não geraram cenas sangrentas de acidentes horríveis em um risco de Mexico . Só consigo pensar que todos os meus sentidos estavam concentrados em guiar o carro.
Quando ficou totalmente escuro, mexi nos botões, girando e puxando até conseguir encontrar os faróis. O carro foi mais devagar quando me concentrei nessa busca, e esqueci de pisar nos pedais, e o motor gorgolejou, o carro fez um barulho e o motor parou. Um som no banco de trás me disse que papai tinha caído do banco (eu esperava que isso acontecesse havia quilômetros). Puxei o freio de mão e pensei com cuidado no que fazer em seguida. Era inútil pensar em perguntar ao papai. A queda no chão nem o fez se mexer, e eu também não conseguiria tirá-lo da posição. Não havia chance de nenhum carro passar por nós — eu não via veículos motorizados desde que passamos pela guarita de quando chegamos. Estávamos descendo uma colina, então pensei que com sorte poderíamos ir no embalo da descida até Calexico — ou, pelo menos, até o guarda. Esperei até formular minha abordagem a ele antes de soltar o freio. Eu pararia o carro quando chegássemos à guarita e faria cara de superior. Falaria com ele como o camponês que era. Mandaria que ele ligasse o carro e daria uma moeda de vinte e cinco ou até de um dólar do bolso do papai como gorjeta antes de seguir em frente.
Com meus planos elaborados, soltei o freio e começamos a descer a encosta. Também bombeei a embreagem e o acelerador, torcendo para que isso acelerasse nossa descida e, maravilha das maravilhas, o motor ligou de novo. O Hudson desceu a colina como louco. Estava se rebelando, e teria pulado pela lateral da montanha para nossa destruição em sua tentativa de me tirar do banco se eu tivesse relaxado o controle um único segundo. O desafio era extasiante. Era eu, Marguerite, contra a oposição incontrolável. Enquanto mexia no volante e forçava o acelerador até o chão, eu estava controlando o México, e a força e a solidão e a juventude inexperiente, e Bailey Johnson Pai, e a morte e a insegurança, até a gravidade.
Depois do que pareceu um desafio de mil e uma noites, a montanha começou a ficar plana, e começamos a passar por luzes dos dois lados da estrada. Não importava o que aconteceria depois, eu tinha vencido. O carro começou a ir mais devagar, como se tivesse sido domado e fosse desistir sem graciosidade. Bombeei com mais força ainda, e finalmente chegamos à guarita do guarda. Puxei o freio de mão e parei. Não haveria necessidade de eu falar com o guarda porque o motor estava ligado, mas eu tinha que esperar que ele olhasse o carro e me desse sinal para prosseguir. Ele estava ocupado falando com pessoas em um carro virado para a montanha que eu tinha acabado de conquistar. A luz da guarita mostrou-o inclinado pela cintura com o tronco completamente engolido pela janela aberta. Fiquei com o carro preparado para a etapa seguinte da nossa viagem. Quando o guarda saiu de dentro do carro e ficou ereto, vi que não era o mesmo homem do constrangimento matinal. Eu estava compreensivelmente abalada pela descoberta quando ele fez uma saudação alta e gritou “Pasa ”. Soltei o freio, botei os dois pés nos pedais e os levantei um pouco rápido demais. O carro não fez o que eu pretendia. Pulou não só para a frente, mas também para a esquerda, e, com algumas bufadas zangadas, bateu na lateral do carro que estava começando a se afastar. O barulho de metal arranhando foi seguido na mesma hora de uma chuva de espanhol vinda de todas as direções. Mais uma vez, estranhamente, o medo não estava presente nas minhas sensações. Eu me perguntei na seguinte ordem: eu estava machucada, alguém estava machucado, eu seria presa, o que os mexicanos estavam dizendo e, finalmente, papai tinha acordado? Consegui responder a primeira e a última rapidamente. Motivada pela adrenalina que foi bombeada no meu cérebro enquanto descíamos pela montanha, nunca tinha me sentido melhor, e os roncos do meu pai cortavam a cacofonia de protestos fora da minha janela. Saí do carro pretendendo chamar policías , mas o guarda foi mais rápido. Ele disse algumas palavras, todas unidas como contas, mas nenhuma delas foi policías . Enquanto as pessoas no outro carro tentavam sair, tentei recuperar meu controle e disse com voz alta e graciosa demais “Gracias, señor ”. A família, oito ou mais pessoas de todas as idades e tamanhos, pararam em volta de mim, falando de forma acalorada e me avaliando como se eu fosse uma estátua no parque e elas fossem um bando de pombos. Uma disse “Joven ” querendo dizer que eu era nova demais. Tentei ver quem era tão inteligente. Eu direcionaria minha conversa para ele ou ela, mas as pessoas mudavam de posição tão rápido que eu não conseguia saber quem foi. Outra sugeriu “Borracho ”. Bom, sem dúvida eu devia estar com cheiro de tequila, pois papai estava exalando a bebida na respiração barulhenta, e mantive as janelas fechadas na noite fria. Não havia chance de eu explicar isso para aqueles estranhos, mesmo que pudesse. E não podia. Alguém teve a ideia de olhar no carro, e um grito pegou todo mundo de surpresa. Pessoas — parecia haver centenas — se aproximaram das janelas, e mais gritos soaram. Pensei por um minuto que alguma coisa horrível devia ter acontecido. Talvez na hora da batida... Eu também fui até as janelas para ver, mas aí me lembrei dos roncos rítmicos e me afastei. O guarda devia ter achado que tinha um crime importante nas mãos. Ele fez gestos e sons como quem diz “Fiquem de olho” ou “Não percam essa garota de vista”. A família voltou, desta vez não tão perto, mas mais ameaçadora, e quando consegui identificar uma pergunta coerente, “Quién es? ”, respondi secamente, com todo o distanciamento que consegui: “Mi padre ”. Sendo um povo de laços familiares fortes e festas semanais, eles de repente entenderam a situação. Eu era uma pobre garotinha cuidando do pai bêbado, que ficou na farra por tempo demais. Pobrecita .
O guarda, o pai e uma ou duas crianças pequenas começaram a tarefa hercúlea de acordar papai. Observei friamente enquanto o restante das pessoas andava, formando um oito em volta de mim e do veículo batido deles. Os dois homens sacudiram e puxaram e empurraram, enquanto as crianças pularam no peito do meu pai. Dou crédito ao ato das crianças pelo sucesso do esforço. Bailey Johnson Pai acordou em espanhol. “Qué tiene? Qué quiere? ” Qualquer outra pessoa teria perguntado “Onde eu estou?”. Obviamente, essa era uma experiência mexicana comum. Quando vi que ele estava razoavelmente lúcido, fui até o carro, afastei calmamente as pessoas e disse do nível arrogante de alguém que conseguiu controlar um carro rebelde e descer uma estrada sinuosa de montanha: “Pai, aconteceu um acidente”. Ele me reconheceu aos poucos e se tornou meu pai de antes da festa mexicana.
“Acidente, é? E.. foi culpa de quem? Sua, Marguerite? Foi sua?”
Seria inútil contar sobre como dominei o carro e o dirigi por quase oitenta quilômetros. Eu não esperava e nem precisava da aprovação dele.
“Foi, pai, bati em outro carro.”
Ele ainda não estava completamente sentado, e não tinha como saber onde estávamos. Mas do chão do carro onde estava, como se fosse o lugar lógico para estar, ele disse: “No porta-luvas. Os papéis do seguro. Pegue e entregue para a polícia, depois volte”.
O guarda enfiou a cabeça pela outra porta antes que eu pudesse formar uma resposta mordaz, mas educada. Ele pediu a papai para sair do carro. Sempre inabalável, meu pai enfiou a mão no porta-luvas e tirou os papéis dobrados e a meia garrafa de bebida que tinha deixado lá. Deu uma de suas gargalhadas tensas e desceu devagar. Quando estava de pé do lado de fora, ele era bem mais alto do que as pessoas furiosas. Fez uma avaliação rápida da localização e da situação e passou o braço pelos ombros do outro motorista. Com gentileza e nem um pouco de condescendência, ele se inclinou para falar com o guarda, e os três homens entraram na guarita. Em poucos minutos, explodiram gargalhadas lá dentro, e a crise acabou, mas a diversão também.
Papai apertou a mão de todos os homens, fez carinho nas crianças e deu sorrisos charmosos para todas as mulheres. E então, sem olhar para os carros batidos, se sentou atrás do volante. Ele me chamou para entrar, e como se não estivesse apagado e bêbado meia hora antes, dirigiu direto até em casa. Disse que não sabia que eu sabia dirigir, e eu tinha gostado do carro? Fiquei com raiva de ele ter se recuperado tão rapidamente e me senti decepcionada por ele não apreciar a grandeza do que eu tinha feito. Então respondi sim para a declaração e para a pergunta. Antes de chegarmos à fronteira, ele abriu a janela, e o ar fresco, muito bem-vindo, estava desconfortavelmente frio. Ele me mandou pegar seu paletó no banco de trás e o vestir. Dirigimos para a cidade em um silêncio frio e particular.