Ele estava de pé diante da porta da biblioteca. Como não conseguia se lembrar do mantra que Alice insistia em afirmar que ia servir para acalmá-lo, Harry repetiu para si mesmo: “Morte, ruína, perdição…”.
“Entre.”
A sala forrada de livros era silenciosa e fresca, as cortinas pesadas barravam a entrada da luz. As mesas, onde se empilhavam os livros mais obscuros e difíceis do mundo, eram peças de antiquário. Bustos, esculturas, pinturas e tapeçarias, algumas refinadas, outras vulgares, tinham sido transportadas de navio da casa dos pais de Liana, perto de Bolonha. Harry tirou os sapatos ao pisar num comprido tapete veneziano escolhido por Mamoon, quando tinha ido fazer compras com Liana. Era como andar sobre um quadro de Mantegna, na direção de um juiz implacável, ansioso para distribuir sentenças de morte.
Mamoon tinha se trocado. Em vez de sua habitual roupa de treino folgada, vestia calça de flanela cinzenta, mocassim italiano com meia cinzenta de lã e camisa branca de mangas compridas e desabotoadas. O gato avermelhado em seu colo estava de olhos fechados enquanto Mamoon acariciava sua cabeça.
Harry sentou à sua frente e pôs sobre a mesinha de centro seu caderno e sua caneta, bem como o gravador.
Mamoon disse: “Harry, por favor, meu caro rapaz, antes de você dar a partida nessa aterradora caixa de gravação, pode me ceder a vez para eu aborrecê-lo com uma pergunta?”.
Harry fez que sim com a cabeça. Se não pegasse no sono, Mamoon de vez em quando fazia a Harry perguntas diretas e difíceis de responder, perguntas que, todavia, Harry achava que precisava responder, a fim demonstrar que o silêncio não servia para nada.
“Harry, você acredita em monogamia e fidelidade?” Harry ficou surpreso. “Acredita?”
“Acredito. Sim, eu acredito, em tese.”
“Em tese?”
“Ah-han.”
“Você é um teórico, então, não é?”
“De certo modo.”
“E de que modo você é de fato um teórico?”
Harry respondeu: “Dizem que a fidelidade é a melhor solução, que tudo é mais simples na prisão do amor. São poucos os que chegam a enlouquecer. As várias alternativas acabam trazendo mais infelicidade, não é?”.
“Como vou saber?”, disse Mamoon. “Vivi todo esse tempo e até hoje não sei responder a perguntas irrespondíveis. As pessoas vêm aqui e me pedem verdades universais, mas estão batendo no endereço errado. Aqui só vão encontrar perguntas universais, aquelas que fazem a literatura.”
“E como espera que eu responda a elas?”
“Observei a maneira como você olha para as mulheres. Levantamos informações a seu respeito, ouvimos rumores que nos chocaram. Felizmente Rob foi seu fiador, do contrário não teríamos aceitado contratá-lo. Talvez, porém, você ainda não esteja pronto para se retirar da caçada.”
Harry disse: “Minha mãe morreu. Eu precisava de atenção feminina. Havia tias. As amigas de meu pai, as namoradas de meus irmãos. Era um prazer luxuoso correr para os braços de mulheres naquela idade, quando muitas delas se mostravam mais do que boazinhas comigo. Talvez tenha virado uma espécie de obsessão para mim experimentar e satisfazer uma mulher, depois de me sentir em dívida com ela”.
“Retribuir a bondade?”
“O senhor deve saber que, no momento, estou me dedicando seriamente a um tratamento de desintoxicação no que diz respeito a esse assunto. Aprendi que posso ter um efeito muito forte sobre as mulheres. Quando elas querem ser desejadas, suas paixões podem ser colossais. Mas agora estou tentando parar, ou pelo menos me aquietar, depois de certas aventuras e desventuras um tanto perigosas.”
“Recentes?”
“Ah, meu Deus, eu já devia ter aprendido a lição a esta altura.”
“Do que você está falando? Preciso de um exemplo.”
“Não estou seguro de que devamos nos dispersar, sr. Mamoon.”
Mamoon inclinou-se para a frente. Estava ficando impaciente. “A questão, Harry, é que para eu não achá-lo abominável é preciso existir mais reciprocidade aqui. Sobretudo da sua parte.” Mamoon acariciou o queixo do gato, agora irrequieto. “Está entendendo?”
Harry disse: “Senhor, eu não tinha limites em matéria de mulher. Eu pedi demais. Minhas dívidas foram cobradas. Peguei uma mulher no metrô”.
“Em que estação?”
“Central.”
“Ah, sim. Marble Arch. Bond Street.”
“Adorei essa mulher mas depois tive pena dela — mas talvez eu a tenha enganado —, uma pessoa sozinha, uma estudante madura de além-mar, que no final não queria me deixar e depois, de propósito, engravidou de mim. Ou pelo menos foi o que ela disse. Aparentemente, era sua última chance com aquela idade. Ela não queria mais nada de mim — só um filho! Fiquei preocupado. Lembro que ela escreveu tudo o que havia acontecido.”
“Ah-ha. Existe um registro. Vá em frente.”
“Com certa dose de risco, escalei a parede lateral do prédio dela e invadi sua casa para ler o diário e descobrir os fatos relativos à gravidez. A porta abriu enquanto eu consultava as provas. Achei que eu ia morrer de um ataque do coração. Era sua companheira de apartamento, com uma faca na mão. Estava tão apavorada que achei que podia me matar por acidente.
“Falei que ia explicar tudo. Tomamos um pouco de uísque. Acabei indo para a cama com ela. Depois me recusei a fazer aquilo de novo. Então a mulher contou tudo para a amiga, que entrou no carro e foi atrás de mim. Depois fiquei sabendo que ela passou três dias me esperando em vários lugares, antes de tentar me atropelar quando eu andava de bicicleta. Minha roda de trás ficou esmagada. Quando ergui o rosto e vi os olhos da mulher, deixei a bicicleta pra lá e tratei de correr para salvar a vida. Enquanto isso, tive de esconder toda essa história da minha namorada, com a qual eu tinha começando a morar.”
“Alice… esse é o nome dela, não é?”
“Sim, ela é meiga e incorrigível, e não tem muito rumo na vida. Mas é boa de se olhar e eu a adoro, sou doido por ela. Antes, se pudesse, eu transava com três garotas no mesmo dia.”
“Três? Você conseguia dar conta disso?”
“Quatro foi o meu recorde. Não, cinco. Qual é o seu, senhor?” Como Mamoon nada respondeu, Harry disse: “Agora estou decidido a livrar minha alma do diabo e ser um homem direito. Mas naquela época havia outras com as quais eu não tinha terminado de verdade — sobras de outra fase, digamos assim. Uma teve um aborto. Outra tentou o suicídio — na minha frente. Um de meus irmãos disse que eu nunca precisaria me dar ao trabalho de tocar meu pênis, embora isso fosse me poupar de muitas encrencas”.
“Você parece um especialista, se é essa a palavra, em enlouquecer os outros. Será que é de propósito?”
“Passei maus bocados, Mamoon. Mas às vezes parecia valer a pena.”
“Em que sentido?”
“As mulheres eram sensacionais.”
“Como?”
“Uma delas tinha olhos grandes”, disse Harry. “Toda vez que ela abria bastante os olhos, era como se todas as roupas estivessem caindo do seu corpo. Era violinista, tocava Bach e cantava para mim.”
“Ah.”
“Está vendo? Elas valiam o sacrifício. Eu sabia que era um tolo por ir atrás delas, mas seria ainda mais tolo se não fosse.”
“Ótimo. Um homem que não deixou atrás de si um rastro de mulheres arrasadas é alguém que mal se pode dizer que viveu. E se alguém consegue obter a sexualidade e o amor delas, juntos, esse é de fato um homem de sorte. É uma coisa tão rara quanto um belo dia de primavera no campo.”
Harry disse: “Devo dizer que me sinto contente por estar aqui no campo, onde há mais sossego. Posso ser mais monstruoso do que eu gostaria de acreditar — em minhas paixões e na maneira como elas terminam subitamente, como se as paixões nunca tivessem existido. Sou uma dessas pessoas que precisam saber de onde vai vir sua próxima refeição, para o caso de ela simplesmente não vir. Nem todas as mulheres gostam de ser tão usadas assim, é claro”.
“Por que você se comporta desse modo?”
“Já pensei nisso, Mamoon, e o senhor vai ficar surpreso de saber.”
“E então?”
“Adoro o fio da navalha. Quero ser cortado. Meu terror é uma vida burguesa banal. Não suporto a coerção cotidiana. Acredito que a banalidade apagaria minha modesta centelha.”
Mamoon disse: “Escrevi o seguinte: devemos nos curvar em sinal de gratidão aos fundamentalistas, que nos lembram como o sexo e os livros são perigosos. Todo sexo e, a rigor, todo prazer precisam conter uma gota venenosa de perversão, de transgressão diabólica — de mal, até —, para valer a pena ir para a cama com isso. Tornou-se banal agora que é ubíquo. Como estudante dedicado dos jornais de escândalos, aprendi que o adultério — prazer mais traição — é a única diversão que nos restou. O casamento domestica o sexo, mas liberta o amor. É inadequado enquanto solução para as necessidades humanas, mas com o capitalismo as alternativas são muito piores.
“Mas tudo isto”, prosseguiu Mamoon, apontando com um gesto para a sala, “isto a que você se refere como cotidiano, burguês e maçante, eu quero isso. Preciso disso. Amo isso.”
“É mesmo?” Harry inclinou-se para a frente, a fim de ligar o gravador.
“Não toque nisso”, disse Mamoon. “Tirei meu time de campo, Harry. Outro dia tive de enfiar uma faca numa torradeira de pão e só isso já representa mais perigo do que sou capaz de suportar. Tenho certeza de que vai acontecer também com você — o desejo de conforto e satisfação. O desejo de não ser especial. Mas alguém me disse, talvez tenha sido o Rob, que vocês têm planos de se casar, não é verdade?”
“Espero que sim. É o que desejo fazer. Sem dúvida nenhuma. Vejo o casamento como uma espécie de defesa, uma barragem contra a turbulência do desejo. Você acha que pode funcionar assim?”
“Por que imagina isso?”
Harry pegou o gravador e mostrou-o a Mamoon. “Eu é que devo fazer as perguntas.”
“Sua vida é mais interessante do que a minha.”
“Não vai escrever sobre mim, vai?”
“Prefiro você como personagem de ficção, e você devia se sentir lisonjeado de aparecer num de meus livros, ainda que sem calças. No entanto, Harry, meu relógio parou. O embalsamador está arregaçando as mangas. Enquanto estamos conversando, setenta e duas virgens estão vestindo uniformes escolares para mim. Você deve viver, e eu confirmo: ponha seu pênis sempre em primeiro lugar. Harry, você sabe que eu o considero meio tapado e frouxo, mas isso não significa que você não tenha me ensinado muita coisa.”
“Muito obrigado. Isso me anima demais. Mas o que foi que ensinei ao senhor?”
“Meu backhand estava todo errado, você sabe disso. Há anos venho batendo do jeito errado. Muito para cima.” Mamoon prosseguiu: “Você é muito mais sofisticado, ponderado e culto do que eu era na sua idade. Mas em outros aspectos você é pouco refinado e autoenganador”.
“Sou?”
“Desculpe se ri de você.”
“O senhor riu de mim?”
“Não ouviu o barulho que fiz?”
“Ouvi, senhor, e fiquei assustado, com medo de que o senhor estivesse passando mal. Por que fez o barulho?”
“As justaposições que você descreveu são de fazer rir”, disse Mamoon. “De um lado, há uma existência burguesa e banal e, de outro, a fantasia do que poderia ser chamado de deleite infinito — como se as duas fossem as únicas alternativas.”
“Sim”, disse Harry. “Parece uma idiotice total, agora que o senhor apresenta a questão dessa forma.”
“Desculpe se fui rude. Mas a maneira como você pinta a situação é enganadora. O arcabouço, podemos dizer, está no lugar errado. Você não aplicou sua considerável inteligência nessa questão e eu quero saber por quê. É quase uma separação fundamentalista que você pôs em ação.” Mamoon fitou o teto. “O romance é contaminação. O romance vê a complicação.” E prosseguiu: “Seria bom recomendar a você que prestasse atenção a algo que Conrad declarou, certa vez, não que ele seja um escritor com quem eu me importe tanto assim agora — pouca coisa me dá prazer, como você sabe, uma vez que já estou quase morto”.
“O que Conrad disse?”
“‘A descoberta de valores novos é uma experiência caótica. É uma sensação momentânea de trevas. Deixo meu espírito planar, deitado de costas, naquele caos.’”
“Planar, deitado de costas, naquele caos”, repetiu Harry. “É disso que eu preciso.”
“Se eu fosse você, prestaria atenção ao trecho que fala de valores novos.”
Harry percebeu que Mamoon olhava para ele com ar divertido. Harry disse: “Sou um homem fraco, é o que você acha? Ou alguém que recebe mais prazer do que merece?”.
“Prazer?” Mamoon riu. “A maioria das pessoas não sabe maximizar seu prazer, Harry, elas sexualizam sua dor. Certamente você percebeu que na sua maioria as pessoas vivem sem amor, passam a vida tentando encontrar pessoas que não lhes deem tesão.”
“Por quê?”
“Pense bem.”
“Não seria esse um retrato do senhor?”
Mamoon inclinou-se para a frente na cadeira e disse: “Detesto exprimir uma opinião, mas você insiste em me forçar. Quero que nunca fique muito claro. Nada confunde tanto quanto a clareza. As melhores histórias são as abertas, aquelas que não compreendemos de jeito nenhum. Mas minha ideia acerca desse tema é bem simples: os amores que você descreve são encontros muito reduzidos, é claro. Não são relacionamentos, não. Não poderiam ser descritos como tais. São dependências, ou antirrelacionamentos. Quem sabe você só goste de ficar com pessoas a quem odeia?”.
“Como assim, senhor?”
“Relacionamentos que não se desenvolvem se tornam sádicos. É preciso haver uma troca que desenvolva ambos os participantes; é preciso haver algum tipo de transformação, ou uma coisa nova, do contrário haverá violência. A violência daqueles que desejam explodir uma situação.”
“O senhor conhece bem isso?”
Mamoon deu de ombros. “Transformação mútua é coisa rara, como são as coisas boas, em geral. A meu ver, as pessoas deviam viver como desejam, até encontrarem alguém a quem queiram ser fiéis. Afinal, como vocês dizem, ninguém pode fazer sexo oral consigo mesmo.”
“Exatamente.”
Mamoon prosseguiu: “Acho que já falei bastante por hoje. Sinto a necessidade de me deitar por algum tempo e pensar naquilo que você me levou a falar”. Sorriu para Harry. “Por que não convida sua namorada para ficar aqui? Eu gostaria de vê-la.”
“Gostaria?”
“Tenho a sensação de que a presença de uma mulher jovem me deixaria mais loquaz.”
“Como assim?”
Mamoon fechou os olhos e disse: “Talvez seja hora de eu ser lembrado, mais uma vez, das coisas mais belas e mais abjetas. No dia do enterro de Victor Hugo, era impossível achar uma prostituta nas ruas de Paris. Estavam muito ocupadas prestando-lhe as últimas homenagens. Aquilo é que era um homem — e ele ainda tem um espetáculo em cartaz em West End”.
“Certo.” Harry juntou suas coisas e começou a fazer o caminho de volta pelo tapete, rumo à porta.
Antes de Harry sair, Mamoon abriu os olhos e disse: “Você talvez descubra que não pode comprar a sexualidade no varejo, como uma roupa feita em série, como algum tipo de fantasia de tamanho único — essa crassa ideia burguesa, a moralidade de escravos. Se você pensar nisso a sério, vai ver que as pessoas têm que formar e moldar sua sexualidade conforme aquilo que lhes foi dado. Porém é bem mais parecido com escrever um livro do que ler um roteiro”.
“Obrigado.”
“De nada. Como vai a nossa psiconarrativa — meu monumento, sua antologia de horrores?”
“Vou chegar lá, senhor. Mas ainda existe uma distância considerável a percorrer.”
“Ótimo. Sempre haverá, eu suspeito. Espero que você esteja me transformando numa história que eu vá gostar de ler. Sou interessante? Estou muito ansioso para ser surpreendido pela maneira como vou sair na foto.”
Harry disse: “O senhor vai ficar bastante surpreso”.
“Por quê?”
“A verdade é uma tatuagem na testa. Não podemos vê-la sozinhos. Eu sou seu espelho.”
“Você. Maldição do inferno.”
“Má sorte.” Harry parou um momento. “Tenho de perguntar uma coisa: o senhor já parou para pensar se eu poderia visitar e entrevistar Marion?”
“Para que perder tempo com ela? Sempre haverá mulheres. Elas vêm e vão, ao que parece. E daí? Não as persiga. Deixe que elas acorram em manadas a você.”
“Por que o senhor recusa?”
“Já disse que não é uma boa ideia. Você só vai deixá-la irritada. Como se a pobre mulher já não tivesse sofrido o bastante.”
“O que foi que ela sofreu exatamente?”
“Saia daqui.”
“Tem mais uma coisa, senhor. O seu backhand ainda precisa de aprimoramento.”
“Sim, é o que eu pensava. Precisamos cuidar disso. Quero voltar à minha boa forma física. Preciso de você para me incentivar a fazer umas séries de abdominais, flexões de braço e flexões na barra. Preciso exercitar o corpo outra vez. Ele pode vir a ser útil algum dia.”
Harry saiu depressa, mas Liana o esperava do lado de fora, como ele já havia previsto, pois Liana não tinha nenhuma companhia, a não ser Julia. Ela caminhou ao lado dele pelo gramado, querendo conversar com ele. Quando ela dizia “conversar”, o sentido era que ela queria que ele a ouvisse. E foi um certo alívio ouvir, porque Harry se sentia exausto depois do que tinha dito a Mamoon, como se tivesse participado, à revelia, de uma sessão de terapia que corta a carne até os ossos.
Ela disse: “Você me conhece bastante bem, Harry, para saber que eu sou uma mulher nostálgica”. Ela queria falar sobre sua imensa vontade de “sair da lama”, que era como ela começava a se referir ao campo. “O campo tem cheiro de excremento”, disse. “Mamoon gosta, pois lhe traz lembranças da sua terra natal. Mas agora preciso ir para Londres e temos de levantar dinheiro para comprar um apartamento. Detesto ter de ficar tão longe do meu cabeleireiro. Minhas roupas estão se desmantelando. Vamos dar festas e jantares. Você sabe que sou louca para encontrar Sean Connery e o ator de Ghandi. Porém, enquanto isso, vou oferecer um jantar para Mamoon por aqui mesmo. Será que sua namorada poderá vir e ficar conosco por alguns dias? Estou tão abatida, Harry. Quem sabe ela nos alegre um pouco? Ela é divertida? Eu gostaria muito que alguém fora da nossa rotina viesse aqui em casa.”
“O convite de vocês dois é muito gentil, mas fico sem jeito de convidá-la”, disse Harry. “Alice vem de uma família que mora num conjunto habitacional popular e seu pai é esquizofrênico. Ela não fez faculdade e o irmão está na cadeia.”
“Por que motivo?”
“Tráfico de drogas e arrombamento de residência. Ela entrou na escola de arte, mas fora isso não tem formação. Lê revistas de moda em sua casa no conjunto habitacional como se estivesse estudando textos de um samizdat e acabou conseguindo arranjar um emprego no ramo da moda. Não é bem paga, mas adora roupas e tira fotos maravilhosas das roupas. Porém, quanto a literatura, só posso dizer que Valentino é seu Dante e Alexander McQueen é seu Baudelaire.”
“O mestre romano é o Dante dela? Uma vez segurei a mão dele em minha cidade, como também fiz com a mão de Fellini. Por favor, convide-a. Mamoon está trabalhando, mas não vai reclamar demais, se vierem pessoas a nossa casa e não o irritarem. Se ele não for com a cara delas, é claro, podem perder a esperança.”
Harry disse: “Numa manhã dessas, quando o levei de carro à cidade para consultar seu quiropodista, Mamoon disse que adoraria ter uma espingarda de caça”. E chegou a imitar a voz absurdamente empostada de Mamoon: “Será que alguém se daria conta no caso de nós darmos cabo de alguns desses jovens? Será que alguém se importaria com isso, já que há tantos deles à toa por aí?”.
Liana disse: “Ele fala a mesma coisa dos ciclistas. Mas se não vier alguém, vou berrar como um demônio das lendas irlandesas. Você vai trazer a Alice para o jantar de aniversário de Mamoon — qualquer pessoa jovem é bem-vinda”.
“Vou perguntar a ela. Já sei o que ela vai dizer.”
“O quê?”
“O que eu vou vestir?”
“Uma mulher em sintonia com o meu coração. Ah, Harry, como diz Dante, o escritor famoso: ‘Hoje à noite é o começo de sempre… Amore e’l cor gentil sono una cosa’.”