“Vamos lá, Boswell, você é um homem de verdade ou suas histórias são todas inventadas, como as minhas?”, gritou Mamoon, sempre louco para travar uma competição letal depois de uma manhã mantendo viva a cultura. “Meus miolos nem sempre ficam suando! Faça-me correr! Você não quer matar o escurinho metido a besta que roubou suas mulheres brancas? Arrisque a sorte e cometa um assassinato, afinal! Que risco você já correu alguma vez na vida?”
Harry achava divertido jogar bolas para lá e para cá e fazer Mamoon rebater. E Mamoon gostava das aulas vigorosas; o deixavam animado, sobretudo a parte das provocações.
Paft — Harry bateu na bola e em seguida gritou: “Pronto, Fred Perry, exercite seu backhand agora, se for capaz! Vai, vai, vai, vovô!”.
Quando Mamoon corria de verdade, tossia; pigarreava, engasgava, escarrava, seu corpo todo tremia. Depois queria jogar de novo, forçar a si mesmo.
Na cozinha, quando eles estavam saindo, Liana havia brandido para Harry seu dedo coberto de joias. “Por mais que ele insista que você o mate, que ele adoraria ser assassinado por você, eu não quero que você lhe proporcione um ataque cardíaco, está certo? Esse pode ser um trabalho de ódio e eu desconheço a incidência de biógrafos que assassinaram o protagonista de seus livros, mas não vamos agora dar início a essa tendência.”
Em pouco tempo, Harry estava se perguntando se tinha a intenção de começar uma tendência. Mandou uma bola forte na diagonal, mas não forte demais. O velho se moveu devagar e pesado atrás da bola e de repente parou, como se tivesse levado um tiro, gritou de dor e desabou sobre os joelhos.
Harry correu na direção de Mamoon, virou-o de barriga para cima e disse para ele ficar parado. Ia buscar ajuda.
“Nunca fiquei parado em toda a minha vida”, respondeu Mamoon. “Vou me levantar e andar!”
Apesar daquilo que Harry havia identificado como uma distensão muscular, Mamoon começou a rastejar pela quadra, exigindo que recomeçassem a partida de tênis. Segurando-se na cerca, mal e porcamente se pôs de pé, todo torto, e ergueu a raquete, a postos.
“Saque! Estou pronto! Vamos lá, seu inglesinho sacana de escola de elite!”
Harry jogou a bola bem devagar na direção dele. Mamoon se deslocou afoito atrás dela e, mais uma vez, desabou de joelhos, caiu de cara no chão, agarrando o lado do corpo com a mão.
Harry não tinha trazido o telefone. Teve de levantar Mamoon e carregá-lo como pôde até a casa. Era uma boa caminhada e Mamoon era pesado, estava suando e praguejando. Por fim, Harry pediu a Mamoon que montasse em suas costas; depois de alguma reflexão, pareceu ser aquela a posição mais eficaz.
Enquanto faziam o percurso, Mamoon bufava no ouvido de Harry: “Aposto que você gostaria de estar escrevendo mais um péssimo livro sobre o Conrad. Diga lá, qual é mesmo aquela história em que um homem tem que carregar um cadáver nas costas? Ou será que eu virei o inseto autoritário de Kafka?”.
Como precisava manter o fôlego, Harry não estava em condições de responder.
Liana olhou de relance pela janela para ver a criatura gemebunda de duas cabeças e duas pernas que capengava na direção da casa. Disparou para fora, exigindo explicações sobre o que Harry tinha feito com seu marido. Enquanto lhe dava assistência, Harry esperava que Mamoon explicasse, mas o velho se limitava a uivar, praguejar, e se recusava a deitar-se, até Liana ameaçar espancá-lo. Ela mandou Harry até o bosque pegar um pedaço de pau para servir de bengala a Mamoon.
Como Liana estava preocupada com a organização do jantar de aniversário de Mamoon, Harry foi incumbido de cuidar fisicamente de Mamoon pelos próximos dias. Arrastava o velho para sentar e levantar de poltronas pela casa, o levava até a porta do escritório — se bem que, como todo mundo, ele não tivesse permissão de ultrapassar esse ponto — e o ajudava a voltar para casa. Liana pendurou um telefone celular no pescoço do marido com dois números, o dela mesma e o de Harry. Um escritor é amado por desconhecidos e odiado por seus familiares. Quando jovem, Harry ficaria surpreso, agradecido e lisonjeado se Mamoon Azam ligasse para ele cinco vezes por dia. Por que um homem tão importante, com quem todo mundo, sem dúvida nenhuma, adoraria conversar, iria querer falar com ele? Agora, na condição de alguém da “família”, Harry estava perto demais e chegava a ter medo de ouvir aquela voz lânguida: “Por favor, Harry, meu caro rapaz, se estiver próximo, me faça a gentileza de pegar um livro, um de capa verde, acho que é verde, esverdeada, ou pelo menos turquesa, só que não consigo lembrar o título nem o autor… está perto da televisão… Pelo menos eu acho que está perto da televisão. E também não consigo achar meus óculos. São os de armação azul e não preta. Será que você tem alguma ideia…”.
Foi um lance de má sorte a lesão corporal de Mamoon, que o deixou fisicamente incapacitado, bem como mais irascível do que já era, ter coincidido com o desejo de Liana impressionar Harry com seus amigos. Ela estava particularmente empenhada no jantar e, na verdade, um tanto obcecada com ele — “o começo do sempre”, era como ela se referia ao jantar.
Com Julia voando atrás dela o tempo todo e atendendo a seus gritos, Liana foi às pressas à cidade em inúmeras ocasiões, levando listas para organizar o cardápio, as bebidas e o esquema dos lugares à mesa. Estava ansiosa para garantir que houvesse uma combinação perfeita de pessoas. Pelo visto, a maioria dos convidados seria gente da região, mas também viriam amigos de Londres; outros viriam de carro, do outro lado do país. Ia haver conversas espirituosas, risos, bebida e boa comida. Seria útil também para Harry: ele veria como um homem bem-sucedido vivia e era amado. Representaria um ensaio para o tipo de coisa que Liana planejava promover com regularidade em Londres, tão logo juntassem o dinheiro necessário para comprar um apartamento.
Alice, agora trabalhando em Londres, soubera de tudo por intermédio de Harry. Ela estava em Paris com o pessoal do trabalho, mas prometeu pegar o trem e se juntar a eles, se pudesse, dependendo de como andassem as coisas na cidade.
Na noite do jantar, um mês depois da chegada de Harry à casa, ele e Mamoon estavam sentados à mesa da cozinha esperando que Julia terminasse de ajudar Liana a se vestir. As duas mulheres, auxiliadas por Ruth, já estavam às voltas com aquilo fazia um bom tempo — desde a manhã da véspera, para ser exato. Mamoon tinha comparado aquilo à redecoração de Chartres. Enquanto isso, os homens, que levaram apenas um segundo para vestir seus ternos e ajeitar o cabelo, já haviam tomado um punhado de estimulantes martínis.
Harry perguntou a Mamoon se ele estava bem: “Se não se importa que eu diga, está com a cara alarmada de um homem que acabou de descobrir que embarcou no trem errado”.
“Não é a bebida que faz minhas mãos tremerem, Harry. O que pode haver de pior do que um jantar em homenagem a alguém, meu amigo? Prefiro ficar em casa praticando a automutilação. A esposa, como você a chamaria no falso dialeto cockney que deve ter aprendido na sua escola da elite, parece acometida por um acesso de loucura, mesmo para os padrões dela.”
“Esse jantar está deixando vocês dois tensos. Liana é maravilhosamente gentil…”
“Devo dizer que você é um rapaz brilhante demais para ficar erigindo a efígie de alguém e trazendo bebidas. Estou me afeiçoando muito a você. Podia me fazer um pequeno favor?”
“Eu já estava imaginando que essas palavras eram sinal de um iminente…”
Mamoon inclinou-se para Harry: “Fique de olho em Liana esta noite — você se sai muito bem em conversas sobre sutiãs, vibrações positivas e outros assuntos de interesse feminino.”
“Como assim?”
“Você é esperto o bastante para perceber que assuntos como enxaquecas e gatos nunca dão errado com mulheres. Conduza a velha garota rumo ao chá de menta.”
“Está bem.”
“E, por obséquio, você ainda podia me fazer o favor de pegar aquela garrafa de vodca, por gentileza? A que está no congelador, onde Liana guarda seus suéteres de caxemira.” Harry pegou a garrafa e duas taças pequenas de cristal. Mamoon serviu duas doses e bebeu uma de um só gole, enchendo-a de novo a seguir. “Beba isto. É melhor puro. O vermute está nos deixando confusos.” Harry bebeu e Mamoon encheu de novo sua taça. Mamoon disse: “Sei que você tem muita experiência neste campo”.
“Que campo, senhor?”
“Mulheres.”
“O senhor conhece melhor o assunto. Viveu com Peggy durante anos. Estou estudando o caso.”
“Harry, por favor, não deixe de sublinhar para as ávidas massas leitoras que ela era uma mulher absolutamente bondosa, mas que ninguém deveria ter se casado com ela. A gente se apaixona e depois se dá conta de que, enquanto viver, estará à mercê da infância de outra pessoa. Por exemplo, depois de certo tempo, nos daremos conta de que estamos vivendo, na verdade, debaixo do sovaco da mãe da esposa. Cometi um erro. Perfeitamente compreensível.”
“Como?”
“Acreditei que sexo e trabalho podiam ocupar o lugar do amor. Devo dizer que, quando Peggy morreu, me senti aliviado e talvez até um pouco alegre. Por algum tempo, eu não sabia o que fazer. Na verdade, eu precisava daquilo que tenho agora. Uma garota enrolada — terrivelmente enrolada, sem dúvida —, mas que sabe ser mulher para um homem.”
“E que tipo de mulher é essa?”
“Uma mulher dedicada não a si mesma, aos filhos, a uma causa ou ao álcool, mas ao homem que ela idealiza, a seu lápis e a seu gênio. E esse homem, na medida do possível”, suspirou Mamoon, “deve ser eu.”
“O senhor é um homem de sorte. E logo será mais ainda.”
“Por quê?”
“Espere até ver sua esposa esta noite.”
“Ela fez outra plástica no rosto?” Harry balançou a cabeça. “Algo ainda mais caro? Por favor, me conte.”
“Um minuto.” Harry se levantou, ficou junto à porta dos fundos e acendeu um cigarro. “Vou lhe contar.”
Naquela manhã, Julia tinha ido ao quarto de Harry, fechado a porta e quase chorado. Não que fosse do tipo chorona. Quando Harry perguntou qual era o problema, ela contou que Liana, que andava especialmente agitada e ansiosa nos últimos dias, a havia lembrado enfaticamente que ela, Liana, era a patroa, que tinha tudo, e que Julia não tinha nada, por isso era melhor Julia prestar bastante atenção. Julia estava à beira de ser demitida.
“Garota, você devia se mostrar mais agradecida e se comportar melhor”, acrescentou Liana. “Então, insh’allah, talvez eu e Mamoon possamos ajudar você a progredir neste mundo cruel.”
Harry ficou sabendo que havia mágoas acumuladas: Liana, numa ocasião, acusara Julia de ter o cabelo seboso e de ser desmazelada. Exasperada com a prepotência de Liana, com sua impaciência e com mais uma ameaça de tapa, Julia tinha pensado e pensado. Acabou elaborando um plano para retaliar, sem ser demitida. Não que Harry achasse que Liana fosse se livrar de Julia; ele sabia que Liana não estava pagando Julia proporcionalmente ao tempo que ela passava na casa e que Liana tentava vender a imagem de que as duas eram amigas.
Julia não encarava o dinheiro como uma coisa essencial, no caso. Tinha descoberto, enfim, algum propósito e vinha trabalhando para se inserir de maneira indispensável na vida de Liana. A primeira coisa que fazia de manhã era preparar o guarda-roupa de sua patroa, estendendo as roupas, as joias e os acessórios para o dia. Cuidava para que o banheiro de Liana fosse tão esfregado e limpo quanto uma sala de cirurgia. Então a levava de carro, fazia compras com ela, escovava e alimentava os animais e servia seu sorvete de baunilha quando ela ficava ansiosa. Julia estava transformando Liana na grande Lady que Liana sempre imaginara ser, cuidando de tudo para ela. Por outro lado, Harry tinha ouvido Liana dizer, sem constrangimento, que trabalhar “como experiência” para o casal “ficaria bem” no currículo de Julia, ao que esta respondeu com um sorriso forçado. “Por que você está fazendo essa cara?”, perguntou Liana, e Julia respondeu: “Mas, senhora, não temos carreiras por aqui. Às vezes temos um emprego. Mas não é comum”.
Não era nenhum segredo para Harry que Julia preferia a Casa da Esperança à própria casa. Tinha ido à casa pela primeira vez quando criança, na época em que sua mãe trabalhava para Peggy. O irmão de Julia, Scott, que costumava cuidar dela, muitas vezes ficava fora e, nos últimos meses, as bebedeiras da mãe tinham aumentado em frequência e intensidade. Mal se passava uma noite sem que Ruth fosse ao pub e levasse vários homens para casa, para uma nova rodada. “Mereço um pouco de companhia a esta altura da vida”, repetia Ruth, puxando uma caixa de cerveja para perto de si. “Talvez eu não tenha tido sorte no amor, mas nunca é tarde para viver! Olhe para você, por exemplo”, prosseguiu. “Traz esse garoto chique de novo para cá e eu não falo nada, não é?”
“Mas por que você teria de falar alguma coisa?”, perguntou Julia. E disse para Harry: “Isso quer dizer que, ao que tudo indica, mamãe começou a odiar você”.
Harry disse: “Outro dia de manhã, enquanto eu comia meus ovos mexidos, notei que ela me olhava de um jeito maldoso. Mas eu sempre fui muito educado com ela, não fui?”.
“É só com você”, respondeu Julia. “Ela faz uma imitação hilariante de você paquerando.” Julia estava à beira de repetir a imitação, mas mudou de ideia. “Ela diz que você é um esnobe, de classe média e metido a besta, e que você é tudo que ela mais odeia neste país. E que mais dia, menos dia alguém ainda vai lhe dar uma boa lição.”
“Estou sempre ansioso para aprender, como você sabe. Mas confio em Deus Pai que meu professor não será o Scott.”
Nas noitadas de Ruth, havia dança, coitos ferozes, seguidos de lutas e sangue no chão, pela manhã. Quando podia, Julia ficava na casa de sua amiga Lucy; às vezes, quando achava que seria terrível demais em casa, se esgueirava para um dos celeiros e dormia num sofá, sem que Liana e Mamoon soubessem. Mas em geral ficava mesmo em casa, sem dormir, atrás da porta aferrolhada, se perguntando se e quando devia interferir. Se os gritos soassem muito desesperados e os murros, violentos demais, ela se vestia, descia e berrava com os malucos. Destruía o aparelho de som estéreo a marteladas. Uma vez ligou para a polícia. Apesar de Ruth usar óculos e ser magrinha, e até esquelética, daquela maneira descarnada de alguns alcoólatras, a mãe um dia acertou um murro tremendo, em cheio no ouvido da filha, que pareceu ter causado uma concussão na pobre menina, deixando-a com um zumbido incessante. Não só isso; um dos homens parecia ter se mudado para a casa delas e feito morada dentro de uma caixa de papelão, embaixo da mesa da sala. Quando Julia sentava à mesa, uma mão pegajosa tocava e acariciava sua canela. “É como morar num pub”, disse Julia.
Em suas folgas, ultimamente não ia para casa, preferia ir nadar num rio estreito e gelado, mas limpo, que ficava quase escondido no fim de um campo de feno. Ela e Harry iam até lá num quadriciclo motorizado que Scott havia consertado. Enquanto Harry dedilhava seu violão, cantando uns blues lentos para ela, Julia contemplava o céu cor de lavanda, o campo e o futuro.
Ela havia começado a caminhar com mais vigor e logo teve vontade de dar umas corridinhas leves, às vezes em companhia de Harry. Tinha faixas de cabelo tingidas de vermelho e assim a cor parecia dançar, quando corria. Para relaxar, Julia sentava numa cadeira de cozinha, no fim do campo, com o rosto virado para o sol. Disse: “Muitas amigas minhas tiveram filhos. Sei como elas sofreram. E como continuam sofrendo muito depois de o bebê nascer e o homem ir embora”. Ela mesma cuidava de muitas daquelas crianças; era carinhosa e paciente com crianças. Dizia que garotas como ela eram chamadas de “carrinhos de bebê” pela classe média local, só que o único passatempo mais constante ali era transar.
Certa noite, depois de Harry lhe dar um beijo, Julia tirou um grande envelope da bolsa e entregou a ele. Dentro, havia três cadernos manchados e surrados, repletos de anotações quase ilegíveis feitas por Mamoon, a lápis e à caneta esferográfica desbotados. Julia vinha guardando aquilo embaixo de sua cama. Harry agradeceu e enfiou-os nos bolsos de sua calça de combate; mais tarde, quando teve tempo de passar os olhos rapidamente pelos cadernos, viu que eram ouro em pó.
Ele e Julia evitavam contato visual dentro da casa. No entanto, convencida de que havia um vínculo “eterno” entre os dois, ela lhe enviava mensagens pelo celular com frequência, mandando beijos e instruções sobre o que ele devia fazer com ela mais tarde. Certa vez, Julia entrou no quarto de Harry com um balde e um esfregão, enquanto ele trabalhava. Quando ele se virou, Julia enfiou a mão na parte da frente de sua própria calça colante, ficou lambendo o dedo médio e se esfregando, enquanto ele a observava pelo espelho.
Harry gostava que Julia fosse atrevida; a chama de seu sorriso travesso e contestador sempre o animava. Harry gostava mais ainda de Julia quando ela se mostrava ardilosamente esperta, a ponto de perceber que atiçar a paranoia de sua patroa podia trazer ótimos resultados.
Esta foi sua retaliação. “Liana, você é a patroa, organiza tudo aqui, Jesus seja louvado. Mas existe uma coisa que eu tenho mais do que você.”
“Está brincando comigo, só pode ser isso. O que é?”
“Adivinhe.” Depois de uma risadinha, Julia continuou, com seu jeito humilde e obstinado. “Você transa menos do que eu. Menos do que a maioria das pessoas.”
Liana parou e olhou fixamente para Julia, como se nunca a tivesse visto. Julia recuou um passo, imaginando que talvez Liana fosse bater nela ou demiti-la.
“Sim, bem… As pessoas andam falando sobre isso?”
“Andam.”
Liana contraiu os lábios. Não era à toa que ela se definia como feiticeira, mística e clarividente. Pensou alguns instantes e depois respondeu: “Minhas mãos ainda ficam úmidas quando Mamoon entra no quarto”.
Julia disse: “E alguma parte dele fica úmida?”.
“Sim, essa é a questão. Você acertou em cheio, bem na mosca, eu preciso aumentar meu poder sobre ele.”
“Precisa mesmo, madame.”
“Do contrário, ele vai ficar entediado e se tornar muito perigoso, como fez com Peggy e Marion. No meu país, nós mulheres somos muito impetuosas e sabemos que só existe um modo de segurar um homem — satisfazê-lo. Vou deixar Mamoon sem nenhuma gota de seiva e sem nenhuma migalha de energia, e ele não vai ser capaz sequer de dar bom-dia para outra mulher.”
Liana ia tratar de fazer todos saberem que ela podia usar seus “artifícios e astúcias” para deixar o marido excitado — naquela mesma noite. “Então a língua afiada dos fofoqueiros da aldeia que acham que meu marido não me deseja vai ter de ficar bem fechada dentro da boca, e para sempre.”
“Bela tacada, Julia”, confirmou Harry. “Perigoso, mas sutil. Mal posso esperar para ver que tipo de artifícios e astúcias Liana tem em mente. Ela não poderia encontrar uma ajudante melhor do que você. Vamos torcer para que esse pequeno plano não vire um tiro pela culatra.”
* * *
Harry apagou a guimba de seu cigarro e serviu mais uma dose de bebida para Mamoon. Disse: “Liana, com a gentil ajuda de Julia, está queimando as pestanas para inventar maneiras de agradar você. Nem é preciso dizer que a mulher ideal à qual você se refere — uma mulher para um homem — precisa ser mantida ocupada pelo homem”.
“Você vai ficar surpreso de saber que aumentei os proventos de Liana no mês passado.”
“De que o senhor proveu Liana?”
“É verdade que o homem tem de pegar a mulher pelos ouvidos, falando com ela e, às vezes, até escutando o que ela diz. Mas dessa vez eu a peguei pela cabeça. Comprei uma peruca para ela.”
“Sem dúvida ela precisa sair mais de casa, ser exibida. Do contrário, é o mesmo que ter um quadro de Velázquez dentro de um armário. Seja bondoso: dê a ela uns peitos novos no Natal. Liana adoraria essa gentileza.”
Mamoon riu. “Meu caro rapaz, seu pau está tão duro que você nem consegue caminhar direito. Mas eu também mal consigo andar — e você sabe por quê. Além disso, meu sangue esfriou, afinal.” Prosseguiu para dizer que tinha um grande amigo em Paris, um poeta maravilhoso, mais velho do que ele. “Imagine dois velhos sentados num café, vendo o mundo morrer. Ele é mais fraco ou mais persistente do que eu, mas continua a praticar o jogo do amor. Outro dia, ele disse que a única coisa que se pode dizer em favor da velhice é que a gente não goza depressa, se é que chega a gozar.”
Mamoon contou que os olhos do amigo de repente se concentravam; ele se punha de pé e ia atrás de uma mulher pela rua, enquanto citava Stendhal e caminhava: “A beleza é uma promessa de felicidade…”. O amigo de Mamoon instalava as mulheres em apartamentos, fazia amor com elas — pelo menos no início — e pagava para elas estudarem e se tornarem advogadas. O esquema se rompia quando as mulheres achavam alguém mais rico e mais jovem. Um dia, ele foi detido pela polícia numa sacada, aquele velho, tentando visitar de surpresa uma de suas beldades queridas, que naquele momento estava com outro homem.
“Então, Harry, ele me procura, chorando — não existe terapeuta melhor, quando se trata de consolar um amante abandonado.”
“O senhor tem inveja dele?”
“Meu amigo talvez precise aprender, como eu creio que você aprenderá, a reconhecer o momento em que já é tarde demais e que, mais do que um big bang, os suspiros de um matrimônio de companheirismo, um ágape, uma conversa cordial, podem ser a união-modelo e o objetivo de todo amor. Gentil, educativo, equilibrado, desapaixonado — um amor assim vai contribuir para dias de contentamento, quando a pessoa é capaz de pensar com liberdade. E mais: terá sempre o jantar servido na hora em que desejar.”
“Parental ou pseudofraternal, em vez de adulto?”
“Quem disse que não será adulto?”
“Não tem sexo nenhum.”
Mamoon tomou sua vodca de um só gole. “Sou obrigado a reconhecer que talvez você esteja farejando alguma coisa.” Harry sorriu, contente por ter despertado o interesse de Mamoon, afinal. “Você é quase, mas não tanto, o tolo que eu gosto de acreditar que é.”
Harry se inclinou para a frente. “O senhor pôs seu pênis na página.”
Mamoon fitou-o com ar inquisidor. “Como assim?”
“Mamoon, o senhor transformou suas mulheres em personagens de ficção, em vez de amar essas mulheres como pessoas reais.”
“Pense no que você poderia alcançar, Harry”, disse Mamoon, em tom lamentoso, “se você não fosse sempre longe demais.”
“É só quando vou longe demais que acho que estou chegando a algum lugar”, disse Harry.
Mamoon tinha acabado de fechar os olhos, quando se ouviu um grito vindo de algum lugar da casa. “Estou na área, e prontinha para botar para quebrar! Prepare-se, todo mundo!”
“Rapazes, ela está chegando!”, alertou Julia.
Mamoon voltou a si e apoiou-se à sua bengala. “Espero que valha a pena.”
Apoiada pelo cotovelo por Julia, Liana desceu a escada cuidadosamente. Com algum esforço físico, Mamoon deu meia-volta na cadeira para ver a esposa. Harry não soube se foi o modelo que a mulher de Mamoon havia escolhido para o aniversário ou o fato de ela parecer estar vestindo todo o dinheiro do marido de uma vez que fez Mamoon assumir o aspecto de um homem que vê um aquecedor elétrico prestes a cair na banheira onde ele está tomando banho.
“Me ajude”, disse para Harry, erguendo os braços. “Por favor, me ajude a levantar — minha metade de baixo está morta.”