Catorze

 

 

 

 

 

 

 

Mamoon disse: “É mesmo? Liana, permita que eu fale pelo menos uma vez”.

“Vá em frente”, disse ela.

Mamoon pigarreou e adotou o que Liana chamava de sua cara de receber prêmio Nobel.

“Estou num salão de paredes curvas, simétricas, não sei por que motivo. Estou fazendo minhas provas finais, mas não me preparei. Fico sentado olhando para a página em branco, até que o horror do meu fracasso aumenta e sei que vou implodir. Acordo suado e, como você sabe, Harry, às vezes gritando a plenos pulmões. O que isso significa, Harry?”

“Eu já disse, Harry, não precisa esconder seu talento”, comentou Alice, apertando a mão dele. Ela deu uma risadinha. “Dance, macaco, dance.”

Todos olhavam para Harry, que hesitava em expor seu talento ou dançar e apenas dizia hmm daquele jeito nervoso do Ursinho Puf, enquanto esfregava as mãos na calça jeans.

“É muito comum, esse sonho…”

“Sim, mas por quê?”, perguntou Mamoon.

“Porque se refere àquilo para o que não estamos preparados o grande teste que nós, homens, já enfrentamos, mas não temos como saber se vamos ser aprovados numa outra vez.”

“Muito obrigado, Madame Sosostris”, disse Mamoon. “A que teste você se refere?”

“Potência. Eficiência fálica masculina. Será que da próxima vez, ao contrário de todas as outras vezes, o homem vai poder satisfazer a mulher? Ou não vai conseguir satisfazê-la? Na verdade, o que o homem possui: um falo falível? Não admira que o senhor fique suando. Nossos sonhos estão sempre adiante de nós, senhor.” E prosseguiu: “Com muita gentileza, o senhor me permitiu ver as cartas de seu adorado pai. Ele insistia, repetidas vezes, para que o senhor trouxesse glória à família, alcançando o sucesso em tudo. Fiquei chocado, ele foi muito duro. Pior do que meu pai, e com muita insistência”. Mamoon olhava fixamente para ele. Harry lembrou que Rob havia sugerido que uma citação, verdadeira ou imaginária, de algum escritor antigo sempre chamava e prendia a atenção do escritor. “Sabemos que os infames cristãos queriam renunciar ao desejo, mas, como disse muito bem o grande Petrônio: Como posso ser soldado sem uma arma?”

Houve uma pausa. “Entendo”, disse Mamoon.

Liana observou: “Pare de olhar assim, Julia, tire essa expressão da cara. Vá cuidar de seu trabalho. Por que fica aí parada feito um poste?”.

“O que devo fazer?”

“Nunca estive mais imunda. Prepare meu banho.”

“Sim, senhora.”

“Aliás, o que você está fazendo com esse livro de Mamoon na mão?”

“Este aqui? Estava lendo, senhora.”

“Está lendo um livro meu, Julia?”, perguntou Mamoon. “Está mesmo?”

“Estou… de novo”, respondeu Julia. “Meu favorito: a história dos cinco ditadores, dois da África, um do Oriente Médio, outro da China e o último mais local, todos apaixonados por uma garota. O senhor mostra a delicada capacidade que o amor tem de melhorar as pessoas e o homem que habita no interior do monstro. É lindo, senhor. Me faz rir e chorar o tempo todo.”

Mamoon ficou vermelho. “Que bom, que bom. Antigamente você lia muito.”

“Quando… quando ela lia muito?”, perguntou Liana.

“Quando ela era pequena, era muito divertida e dava um bocado de trabalho também”, disse Mamoon. Esticou a mão e segurou o queixo de Julia. “Uma doçura… eh, bela.”

Julia disse: “Mamoon me dava livros. Jogava todos os livros para cima de mim, como um teste, achando que eu nunca ia ler, mas eu sentava e lia tudo, e depois mostrava para ele”.

“Isso mesmo”, disse ele.

“Que tipo de livros?”, perguntou Liana.

“Hmm… Harper Lee, Ruth Rendell, Muriel Spark…”

Grazie a Dio, você é mais do que ridícula”, disse Liana.

“Não me censure!”, gritou Julia. “Nunca diga que sou burra. É o que a senhora está dizendo?”

“Liana jamais se atreveria a dizer isso, bela”, interferiu Mamoon.

“Ela está gritando na minha casa, Mamoon”, disse Liana. “Ouça como ela fala!”

“Está tudo bem”, disse ele.

“Não a defenda!”

“Não estou defendendo”, disse ele, muito calmo.

Julia sentou-se ao lado dele e disse: “Deve ser mesmo incrível, senhor, ter a habilidade de contar uma história como essa. O senhor deve acordar cheio de orgulho”.

“Obrigado, menina querida, estou orgulhoso agora”, disse ele. “Eu acordo suando no meio da noite, aliviado. Já acabei com esse negócio. Ter sido escritor no passado já é alguma coisa.”

“No passado?”

“O senhor está brincando, é claro”, disse Harry.

“Por quê?”

“Um amigo do meu pai, um cineasta da mesma geração do senhor, aumentou sua produtividade quando envelheceu. Ele sente necessidade de tocar o trabalho adiante, de honrar o talento com que foi abençoado.”

“Mas para que fazer isso, cacete?”

“Por que o desejo de potência e de trabalho de um homem deveria diminuir? Afinal, que outra dignidade existe? Certamente, não existe nenhuma no desamparo simulado. ‘Um homem deve seguir seu caminho mesmo em meio à ruína’, escreveu Sófocles em Antígona. Tiziano fez o melhor que pôde para continuar trabalhando depois dos setenta anos. Goethe, com setenta e quatro, pediu a mão mesmo que só a mão de uma jovem de dezenove anos.”

“É animador ouvir que existem formas de satisfação para alguém como eu. Eu gosto, e gosto de verdade, de ser escritor. Mas a obra é o bastante?”

Liana olhava fixamente para Julia e então deu um murro na mesa com toda força. “Como é que você se atreve? Por que fica aí parada desse jeito? Esqueceu que trabalha aqui?”

“Quer que eu continue separando seus sapatos?”

“Quero, e não pegue nada sem me pedir. Não quero topar de novo com você na cidade vestindo meu Marc Jacobs púrpura. Pedi que você o usasse em casa, para mim, e não na rua.”

“Desculpe, senhora. Não vai acontecer de novo.”

“E não deixe de colocar cascas de laranja dentro dele, à noite”, gritou Liana. Depois, mal a garota tinha acabado de sair, disse: “Uma serviçal que acha que está no Bloomsbury Group quanta bobagem essa garota fala só para chamar atenção. Já passou da hora de nós a substituirmos por alguém ignorante. Já pensou se ela cisma de entrar para um sindicato, Mamoon?”.

“Eu deveria ter discutido o assunto com a sra. Thatcher”, disse ele.

Depois que Julia saiu e Liana foi para o jardim a fim de ver os cachorros, Mamoon, agarrando com força os braços da cadeira e gemendo, tentou ficar de pé.

“Se você soubesse, Alice, como um artista resmunga e sofre para manter a linguagem cheia de gracinhas.... e como as minhas costas doem desde a contusão na partida de tênis, que me deixou duro nos lugares errados. A esta altura, já é como se eu estivesse semialeijado para sempre, enquanto seu namorado empurra minha cadeira de rodas.”

“Mestre, por que não disse antes? Eu posso ajudá-lo.”

“Como?”

“Harry não lhe contou que, por um tempo, fui estagiária de massagista?”

“Foi mesmo? Ninguém jamais me disse palavras mais doces do que essas”, respondeu. “Seu querido Harry não tem nenhuma utilidade, só serve para fazer perguntas chatas sobre coisas que aconteceram há quarenta anos!”

“Isso provocaria dores até num atleta.”

Ele deu uma risada. “Minha querida garota, tem certeza de que pode suportar tocar em mim?”

“Quando adolescente, fui cuidadora de idosos.”

“Perfeito.”

“Deixe-me encontrar um óleo de amêndoas.”

“Procure no banheiro de Liana. Depressa: podemos ir ao meu escritório, para termos mais privacidade. Enquanto o Harry passa a limpo minha história, você pode realinhar minha coluna… se Harry der permissão.”

Harry respondeu que nada o deixaria mais contente. Levou Alice para a sala e se abraçaram e se beijaram, encostados na parede. Ele sussurrou: “Sua deusa, como você fez isso, ganhou a confiança dele desse jeito?”.

“Não sei, Harry. Ele é como você me contou, durão, quis logo pegar no meu pé e eu me senti acuada. Foi tão rápido que nem tive tempo de respirar. Mas eu sabia que precisava lutar, senão estaria acabada. Aconteceu assim, do nada.”

“Sua tigresa, se você fizer massagem nele, o velho vai se acalmar e nós talvez cheguemos a algum lugar.”

Ela o beijou. “Vou fazer isso e deixo o resto por sua conta.”

Quando Harry voltou à cozinha, Mamoon sussurrou: “Obrigado por sua interpretação do sonho”.

“Foi um prazer.”

“É claro”, disse Mamoon. “A adorável filha do campo, Julia. Aquela que sonha que está nua e que um dia, creio eu, dentro do meu raio de audição, enquanto vocês jogavam bilhar, à tarde, chamou você de tesudo. Enquanto outros conversam, você olha para ela divertido, interessado.”

“Eu?”

“Por que será?”

“Acho que é porque em Londres nunca vemos gente branca trabalhando.”

“Concordo que é uma visão maravilhosa e que também não é uma coisa que se veja muitas vezes por aqui. Faz tempo que eu digo que o tempo da raça branca chegou ao fim, uma verdade óbvia que tem provocado muita agitação entre os jornalistas. Os ricos vão governar, como de hábito; eles existem de todas as cores, sobretudo da cor amarela.” Disse: “Mas admito que é bom ver as pessoas trabalharem”.

“O senhor se sente superior?”

“Nem um pouco. Isso me recorda meu humilde dever de contribuir, justamente aquilo que quero voltar a fazer assim que me livrar destas dores.”

“Por que o senhor não tem conseguido trabalhar?”

Mamoon respondeu: “Posso ouvir Bach, até certo ponto, e Schubert consigo suportar, porque sou melancólico. Tudo o mais me deprime Beethoven e, sobretudo, o excessivamente alegre Mozart, soltando gorjeios para todo lado. Outro dia, quando fingi desdenhar Orwell e Forster, sua carinha pareceu preocupada. Você ainda gosta de ficar impressionado. Na juventude, e com vinte anos, e até com trinta, eu gostava de ler e conseguia me concentrar num escritor durante semanas; lia toda a sua obra, tudo. Agora já me esqueci e, além do mais, tudo acabou”.

“Acabou?”

“Veja só: Bertrand Russel, A. J. Ayer, D. H. Lawrence, Aldous Huxley, Anthony Powell, Anthony Burgess, William Golding, Henry Green, Graham Greene…”

“Não, não aquele Greene. Não, nunca.”

“Bem, corajoso da sua parte. Mesmo assim, não lidos, ilegíveis, descartados, sumidos, uma montanha de palavras varrida para o mar, e que nunca mais vai voltar. O marinheiro Popeye tem mais longevidade cultural. Só mulheres e boiolas leem e escrevem hoje em dia. De resto, nos dias de hoje, assim que alguém é estuprado por um parente, logo pensa que pode escrever um livro de memórias. O jogo chegou ao fim.”

Harry disse: “Alguns de seus livros vão permanecer”.

“Vão?”

“Provavelmente uns quatro…”

“Quatro?”

“Não, três grandes obras. O primeiro romance e duas novelas, que são de primeira linha e imunes ao tempo. E provavelmente o antigo ensaio sobre as mulheres nas peças de Ibsen e Strindberg.”

“Tanto assim?”, disse Mamoon. “Está acabado, e é tarde demais. Eu não devia me queixar. O que me restou? Quantos artistas mais velhos do que eu produziram obras importantes?”

“Mas, senhor, esse é o sentido verdadeiro do seu sonho: o desejo de fracassar.”

“Por quê?”

“Para deixar seu pai furioso, seu pai, que nunca lhe deu sossego com as expectativas dele.”

“Prossiga.”

Harry disse: “Renunciar à obra e ao amor das mulheres em nome de um equilíbrio ou de um retiro absurdo é uma traição autodestrutiva. Sua narrativa sobre si mesmo é muito mais limitada do que qualquer coisa que eu seria capaz de dizer sobre o senhor em meu livro. E olhe o que acontece com Lear. Ele permite que outros o humilhem, na verdade até os incentiva a humilhá-lo. Sem dúvida, um homem pode permanecer vivo e vigoroso se ele se sentir forte”.

“E como ele consegue isso?”

“Devo dizer, senhor, que enquanto estive aqui aprendi uma coisa. O senhor me ensinou que é a frustração que torna possível a criatividade. A gente luta com o material e se torna inventivo, até visionário.”

Mamoon segurava a cabeça. “Você me dá vertigem, além de dor lombar. Só penso numa coisa: preciso continuar trabalhando com palavras que depois serão esquecidas. Eu quero isso; posso fazer isso. Ao mesmo tempo, não é o suficiente.”

“E o que é isso, essa coisa a mais?”

“Não sei. Vou pensar no assunto agora. Essa conversa me esgotou.”

Harry ajudou-o a se levantar. Pouco depois, Harry observou Mamoon pela janela da cozinha, de chinelo e roupão listrado, enquanto arrastava os pés ansiosamente rumo a seu escritório, acompanhado por Alice. Harry notou que cada vez mais ele se assemelhava ao ponto de interrogação exigente em que parecia estar se transformando. Logo depois a porta do escritório bateu com força e fechou. Era exatamente o lugar em que Liana e todo mundo estava proibida de entrar. Tudo o que Liana podia ver de Mamoon, através das janelas, era o topo da cabeça, que permanecia na mesma posição ao longo do dia. “O rei está em seu escritório de contabilidade”, Liana gostava de dizer. Caso precisasse dele com urgência, Liana tinha de telefonar, se bem que com o medo constante de que ele deixasse o telefone tocar até cair na secretária eletrônica, enquanto assobiava uma melodia de Stéphane Grappelli. O quarto de Mamoon era, pelo que Rob dissera, repleto de generosos presentes que recebera de depravados maníacos pelo poder, cleptomaníacos e ditadores assassinos e malucos. Diziam que Mamoon nunca havia conhecido um ditador cuja bota ele não estivesse disposto a lamber. Mas Alice era a única pessoa que Harry conhecia que tinha entrado no quarto desde o dia em que ele chegara à casa.

Noventa minutos depois, ao ouvir o latido dos cães, Harry voltou à janela, enquanto Julia varria perto de seus pés, e viu Mamoon voltar à casa com ar alegre e mais alto, como um ponto de exclamação invertido.

“Ela tem a cabeça de Jean Seberg e as mãos de Sviatoslav Richter”, arquejou Mamoon. “A cada carícia, eu sentia que me transformava num gênio.”

Alice bateu palmas. “Eu o deixei mais criativo!”

Mamoon disse: “Quem me dera eu tivesse sessenta e cinco anos outra vez… Harry. Você é um homem de sorte”.