Quinze

 

 

 

 

 

 

 

“Juro, esta é a primeira noite de sono revigorante que tenho aqui”, disse Harry quando ele e Alice acordaram no dia seguinte e estavam fazendo amor. Alice era a única mulher que ele gostava de olhar assim que acordava; naqueles momentos, ele tinha nascido para beijá-la. “Graças a Deus que você veio e está comigo. O barulho não deixou você enlouquecida?”

“Que barulho?”

“Os bichos lá fora. As raposas gritando, apanhadas nas armadilhas da nobreza do campo.”

“Isso é a vida rural, Harry. São barulhos naturais. Mas há outro barulho.”

“Qual? Onde?”

“Por que você está assim tão agitado? Alguma coisa deixou você perturbado?”

“Sim. Aqui eu vivo perturbado o tempo todo. Acho que mamãe está me chamando do outro lado da parede. Mães mortas falam mais ainda do que as vivas.”

“E o que ela diz?”

“Pergunta o que é que estou fazendo aqui.”

“É o que as mães sempre fazem.”

Harry disse: “Continue segurando meu pau”.

“Só um instante. Goze”, disse ela. “Ah, grande, grande. Puxa.”

A porta abriu e Julia entrou, trazendo o café da manhã numa bandeja.

“Bom dia, madame”, disse Julia, colocando a bandeja na mesinha que ficava na ponta da cama. Harry se encolheu todo embaixo das cobertas. Foi a única vez que seu pênis se contraiu na presença de Julia. “Ah, senhor. Desculpe, é que… mamãe não está passando bem. Sofreu uma queda e bateu o joelho.”

“Não foi um empurrão? Lamento muito, Julia. Espero que ela se recupere logo.”

“Obrigada, senhor. Posso servir o chá para o senhor?”

“Seria perfeito, minha cara.”

“Lá embaixo, temos torradas e ovos. Vou preparar seu banho, madame.”

“Obrigada”, disse Alice. Quando Julia saiu, ela sussurrou: “É assim todo dia, que nem um livro de P. G. Wodehouse?”.

“Ah, sim. Desde que cheguei não levantei um dedo sequer. Estou achando enervante essa indolência toda.”

Alice e Harry desceram para encontrar Liana, enquanto Julia e a mãe se moviam lentamente em volta deles, brandindo farrapos e espremendo bisnagas de unguentos. Embora Alice tivesse pedido a Julia que trouxesse uma tábua de passar roupa, Julia, sabe-se lá como, tinha conseguido encontrar as roupas de Alice e decidira lavar e passar as roupas do casal, explicando que não só ia ficar ofendida, caso Alice fizesse ela mesma o trabalho, como podia até perder o emprego.

“Eu imploro, Alice, madame, este é meu único meio de sustento”, disse Julia, “desde que fecharam o abatedouro.”

O fechamento do abatedouro havia trazido muitas consequências indiretas à região, na maioria dos casos deletérias. Trabalhando para Liana e Mamoon nos fins de semana, Julia tinha também acrescentado algumas horas no abatedouro durante os dias úteis, a fim de aumentar sua renda. Agora, ciente de que Liana estava ficando de saco cheio dela, não só cuidava muito bem de Liana e Mamoon, como limpava e arrumava o quarto e o banheiro de Harry e Alice e organizava os papéis de Harry, seus cadernos de anotações e seu material de trabalho. Harry sentia-se ligeiramente oprimido pela presença constante de Julia, mas não havia nada que pudesse fazer sobre aquilo nem sobre a maneira como os olhos de Julia observavam a ele e Alice de um ponto de vista convenientemente privilegiado, em geral de perto do rodapé.

Depois do fim de semana prolongado, Alice se deu conta de que tinha direito a uma folga anual e resolveu ficar, em vez de voltar correndo para a cidade, como havia pensado em fazer. Alice tinha desenvolvido uma visão romântica acerca daquele lugar, apesar de, como Harry se queixava, demorar uma hora para comprar leite e ser necessário usar bota de borracha de cano alto quase o tempo todo, ou até roupas impermeáveis para chuva com camiseta por baixo. Agora Alice dizia que amava Mamoon e Liana, que pareciam ser seus pais, e que passar aquela temporada de intimidade com Harry testemunhando sua angústia e ouvindo suas preocupações, a exposição de suas carências foi uma das melhores coisas que podiam ter acontecido para o relacionamento deles.

Enquanto Harry trabalhava, Alice ajudava Mamoon a escolher suas roupas, antes de levá-lo para caminhar ou passear de carro nos locais onde ela estava começando a produzir, “para o livro”, uma série de fotografias do escritor no ambiente rural, encostado em árvores.

“Eu pensei que ele detestasse ser fotografado.”

“Não por mim. Ele obedece a uma mulher”, disse Alice mais tarde, quando andavam de canoa pelo riozinho manso. Alice estava sentada na proa, como que sedada, com roupas náuticas listradas e chapéu de aba flexível, conduzindo a canoa de vez em quando, afundando seu remo na água, como alguém mexendo seu chá. “Sinto que ele quer me entender e me ajudar.”

“Ajudar você em quê?”

“A ter mais sucesso na vida.”

“E o que é isso?”

“Ter mais prazer.”

Mais cedo, naquela manhã, Harry tinha visto Alice andando na frente dele, sob o sol, devagar, sonhadora, sensual, quase alheia e fora do tempo, um ser em outra dimensão, e Harry pensou, sentindo-se culpado, que para ele aquilo era uma mulher; sempre outra, e uma provocação. Então Harry pegou um pêssego num cesto a seus pés, deu a ela e observou Alice morder a fruta e o sumo escorrer por seu queixo.

“Que gatinha linda você é…”

“Obrigada.”

“Estou surpreso de saber que ele ouve você e se interessa pelo que você fala”, disse Harry, entregando-lhe um guardanapo. “Amigos dele que entrevistei dizem que Mamoon vive concentrado nos próprios pensamentos. Numa noite dessas, ele teve um acesso de raiva porque o tomate estava muito frio.”

“Eu detestaria se ele tivesse um acesso de raiva. Eu não ia saber o que fazer. Na certa, eu ia apenas chorar. Como Liana lidou com a situação?”

“‘Frio, habibi? Ah, querido’, foi o que ela disse. Em seguida pegou o tomate em questão, levantou o vestido e colocou-o entre as coxas. ‘Um tomate frio. Deve ser a pior coisa do mundo. Deixe que eu esquento para você, está bem? Pronto, ficou melhor?’ Quando pôs o tomate de novo no prato, Mamoon deu uma mordida nele. ‘Assim está melhor, de fato, memsahib’, disse ele. ‘Você sabe que eu preciso poupar os dentes.’”

Alice, para quem a vulgaridade e o humor eram um portal para a loucura, disse: “Ele não tem nada para oferecer aos homens. Já com as mulheres ele fica à vontade. Faz piadas anárquicas e cantarola as melodias de Dido, que apresentei para ele”.

“Dido?”

“Aquele negócio de Stéphane Grapelli toda hora estava me deixando deprimida.”

“A mim também. Mas ele cantarola Dido? Vocês dois ficam ouvindo White Flag?”

“Ele fica fazendo laralaiá. A próxima vai ser Tracey Thorn e depois, devagarzinho, vou conduzi-lo na direção de Amy Winehouse. O que você acha, Julia? Ele escuta você?”

“Sim, escuta, sim”, respondeu Julia, que estava esperando com um punhado de toalhas na mão. Harry e Alice tinham aprendido que bastava pronunciar o nome de Julia para ela se materializar, como um espírito. “Ele não me trata como uma criada. Nunca fez isso, desde que eu era pequena. Ele fica ali sentado, conversando comigo sobre o que ele está lendo no jornal, de manhã, e me perguntando quem são aquelas pessoas.”

“Está vendo”, disse Alice, movendo-se na direção de Julia e recebendo sua ajuda para subir no banquinho. “Vá ao encontro dele, Harry, e converse. Aproveite a oportunidade. Pus o dedo na cara dele e disse: ‘O Harry já anda com insônia e depressão. Não aborreça meu companheiro, senhor escritor, ou as coisas não vão correr nada bem’.”

“E isso chegou a ser uma ameaça?”

“Agora ele vai lhe oferecer mais. Hoje cedo ele parecia eufórico, talvez até diga que você pode ir falar com a outra mulher.”

“Marion?”

“Agora, vá”, disse ela. “Quero passar um tempo com Julia.”

“Por quê?”

“Temos uma formação semelhante. E interesses semelhantes. Vamos, querida”, disse a Julia. “Vamos juntas. Vamos conversar sobre homens, bebês e como éramos gorduchas quando crianças. Vamos assustar o Harry e depois fazer compras com Liana à tarde. Quero comprar perfume. E talvez, mais tarde, podemos dançar no celeiro.”

Harry disse: “Eu não posso ir com vocês?”.

“Claro que não. Você tem coisas importantes para fazer.”