“Seria possível conversamos um pouquinho hoje?”, perguntou Harry em voz bem baixa, satisfeito por ter encontrado Mamoon na biblioteca.
Para a surpresa de Harry, Mamoon respondeu: “Sim, por que não? Estou ansioso”, embora tivesse olhado para a prancheta de Harry como se ela fosse seu atestado de óbito. “Você traz algumas perguntas candentes, para variar?”
“O senhor está se sentindo mais revigorado depois da sua massagem matinal?”
“Minha pele está cantando. E você me pôs na desafortunada posição de ter de pensar em você, algo que tenho relutância em fazer.”
“Pensar em mim de que forma?”
“Você está surpreso.”
“Pasmo, senhor.”
“Ótimo”, disse Mamoon. “Seu fascínio pelo corpo feminino não é aberrante nem incomum. De fato, o corpo de uma mulher jovem é o objeto mais significativo do mundo, admirado e desejado por homossexuais, é claro, bem como por outras mulheres, bebês, lésbicas, crianças, estilistas de moda e homens. Não admira que os muçulmanos escondam a mulher como uma imagem sórdida, enquanto seus fundamentalistas nos fazem lembrar que a sexualidade feminina é o maior de todos os problemas. Para essas pessoas, a mulher já é uma prostituta. Eles têm razão de ficar tão preocupados”, prosseguiu. “O corpo de uma jovem ocupa o centro do mundo e, em geral, o centro da maioria das eleições — aborto, mães solteiras, licença-maternidade, prostituição, incesto, abuso, o hijab… A mulher está no lugar de onde todos viemos e para onde todos desejamos ir. O corpo da mulher faz o conhecimento desaparecer. É admirável que alguém tenha tempo para pensar em filosofia, literatura, psicologia ou história. As mulheres também sabem disso, e esse é o motivo de elas andarem correndo na rua. Nenhuma mulher bela anda devagar.”
“Quando foi que começou a se interessar por isso?”, perguntou Harry, ajeitando seu gravador digital, mas ainda sem apertar a tecla de gravação.
“Lembro que quando jovem, em Madras, eu andava lendo Bertrand Russel, que era famoso por saber tudo e por quem eu tinha imensa paixão na época.
“Em algum lugar, ele escreveu que sua vida emocional era ‘irracional’. Por Deus, ele condenava o ‘irracional’. Russell ama, odeia, deseja — todo o pacote físico, corporal, e a única coisa que o maior filósofo do mundo foi capaz de dizer é que isso era ‘irracional’. Me deu vontade de soltar os cachorros, como se toda essa história ainda precisasse de uma explicação, e sair atrás daquela gente irracional, gente tão cheia de poder neste mundo, e ouvir seu discurso.”
“Qual é a cura, senhor?”
“Detenha seu dedo pérfido, Harry, antes que eu o esmague. Não grave isto: vai ficar entre nós. Você pergunta qual é a cura… Suponho que se trate da cura para o excesso de apetite, não é?”
“Sim.”
Mamoon riu. “Todas as religiões se preocuparam com a moderação dos desejos das pessoas. Afinal, quem consegue viver com sua própria carência? Vamos pensar em persistência, como os estoicos fariam. Gosto de ler Sêneca, que diz que isso pode ser suportado. Ou em autoconhecimento, como preferia Platão, que podia dissipá-lo. Mas o apetite é tudo que temos e não podemos ou não devemos ser curados disso. Não sou nenhum freudiano, porém não se pode negar que o desejo é o motor da nossa existência, como é para qualquer criança que queira continuar vivendo. Como seu entusiasmo indica, em geral ele fica fora de controle e está associado à loucura, infelizmente, porque o objeto — a mulher em mente — só pode ser evasiva e vai evadir-se. Naturalmente, ela terá outras preocupações, outras vidas. Isso vai gerar ciúmes, a crença de que o outro tem aquilo que nós não temos. Proust fez dessa ideia simples uma mina de ouro. Mesmo assim, mais desejo, menos castigo, é o que eu digo.”
Harry disse: “O senhor mencionou Bertrand Russel e o horror dele à desorientação”.
“E daí?”
Harry deu uma olhada na prancheta, viu uma pergunta e ergueu os olhos para Mamoon. “Não seria o caso de dizer que, quando ficou com Marion pela primeira vez, o senhor experimentou um vínculo físico que ainda nunca tivera com ninguém? Que o senhor experimentou, naquela ocasião, um grande acesso de irracionalidade que o tirou do centro?”
“Você está criando uma história para mim, uma história paralela à minha vida. Por que não vai lá e pergunta para ela?”
“Obviamente, preciso fazer isso. O senhor aprova? Posso dizer isso, senhor?”
“Depende da Marion. Mas a querida Alice, com suas massagens e fotografias — e que sorte você tem —, me convenceu de que devo ser mais cooperativo com você.”
“Ela defendeu minha causa?”
“Ela é gentil, você sabe, e fez um apelo por você. Também pensou no meu sofrimento, que vai terminar mais depressa, se eu der mais informações a você. Vá falar com a Marion e veja no que dá. Estou bem ansioso para ver a Marion dar um fora em você, como fez com outros bisbilhoteiros. Ela chegou a derrubar um tinteiro em cima de um escrevinhador de livros insistente.”
“Por quê?”
“Você vai ver… ah… ela é ardida como pimenta.”
“Foi por isso que o senhor não quis casar com ela?”
Mamoon riu: “Seria verdadeiro dizer que há ocasiões em que certos prazeres podem ser tão fortes que precisamos repensar nossa vida inteira, como uma forma de assimilá-los — ou de evitá-los”.
Harry disse: “O prazer é capaz de nos deixar sem pontos de apoio, é verdade. O senhor quer dizer que uma série de orgasmos pode representar um novo começo?”.
Mamoon levantou-se: “O que quer que Marion diga, serei sempre um forasteiro no seu livro”.
“Obrigado por sua aprovação, senhor”, disse Harry. “Uma última pergunta, que acabou de me ocorrer, nem sei por quê. O senhor se arrepende de não ter tido filhos?”
“Não ter tido filhos foi o ponto mais brilhante da minha vida até este momento”, respondeu Mamoon. “Agora, faça suas malinhas de merda e suma da minha vista infeliz. Preciso de paz outra vez.”
“Obrigado, senhor.”
“Você vai me agradecer mais de mil vezes”, disse ele, rindo. “Sobretudo quando voltar para cá, pé ante pé, a alma sangrando. Eu sei esperar.”