Harry tinha planejado visitar Marion outra vez no dia seguinte, mas, enquanto dava uma volta no quarteirão antes de entrar no prédio, se perguntou se valia mesmo a pena voltar lá. O entusiasmo de Alice com Mamoon o deixou preocupado e sua vontade era pegar um táxi para o aeroporto, voltar para Londres, tirar o velho do caminho e fazer Alice se lembrar de novo da existência dele, Harry. Precisava investir mais em sua relação com Alice, do contrário o relacionamento ia perder impulso e terminar. O que Marion ainda poderia acrescentar? Harry relutava em entrar de novo naquela tenda de desgosto, remorso e desespero. Mas Harry falou firme consigo mesmo: apesar de Mamoon ter calculadamente se livrado dele, aquele ainda era seu trabalho. Harry obrigou-se a comprar flores para Marion; de novo, tocou a campainha de sua porta.
Ela estava mais animada, quase coquete, de saia, blusa decotada e joias. Ficou mostrando fotografias dela e de Mamoon juntos.
“Harry, olhe como ele segura minhas mãos. Como ele precisava de mim! Naquela casa no campo, eles viviam numa atmosfera de medo e rancor. Não parece mal-assombrado, aquele lugar?”
“Sim, um pouco.”
“É ela, a Peggy — assombrando, mas sem viver! A vida de Mamoon em seu lar original nunca foi assim. A desolação dela estava corrompendo Mamoon.”
“Como foi que você falou disso para ele?”
“Mostrei-lhe a possibilidade do amor. E do sexo. Ele era, sabe, caliente. Soltava vapor. Mas também não fazia um sexo decente tinha algum tempo. Mamoon achava que precisar de uma mulher era a mesma coisa que querer um cigarro. O desejo podia ser imenso, mas ele esperava até passar, e depois voltava a cuidar de coisas mais importantes.
“Mas sou obrigada a reconhecer que Peggy era gentil, só pensava em Mamoon. Ela o levou para a sociedade, o apresentou a pessoas que podiam estar interessadas, explicava a elas que o mundo era maior do que a Grã-Bretanha. Mas ele estava…”
“O quê?”
“Bem, subnutrido de sexo.”
“Adorei o jeito como você disse isso, Marion.”
“Querido, ela não tinha nenhum controle sexual sobre ele. Mulher triste, histérica. No que se referia à copulação, ela era um prato de espaguete frio, tagarelando de maneira vã e forçando o pobre Mamoon a viver como se a paixão não tivesse um lugar no centro do coração de toda criatura. Você não faz ideia de como ele era ingênuo quando se tratava de fazer certas coisas.”
Harry perguntou o que ela queria dizer com “ingênuo”.
“De certo modo, ele era como um adolescente. Como se esperasse que o outro tomasse a iniciativa. Como você deve estar informado, as aventuras adolescentes de Mamoon foram muitas e multiformes. Os adultos não conseguiam tirar as mãos dele. Foi um jovem muito bonito, com seu cabelo escuro, seu corpo de astro do cinema e um pau fino e comprido. Era quase tão bonito quanto você, meu querido rapaz, mas irritante, com uma personalidade forte e, obviamente, mais talentoso. Eu diria que você é apenas um pouco menos irritante, embora tenha um ar meio metido a besta.” Marion tinha visto o filme Teorema algumas noites antes. “Pasolini teria caído de amores por você. Já transou com um homem mais velho?”
Como Harry não respondeu nada, ela prosseguiu: “Tente imaginar isto. Quando conheci Mamoon, ele pensava que era um homem bem casado para o resto da vida. Nem sonhava em se separar de Peggy. Mas gostava de fazer sexo, depois que o redescobriu comigo. Isso lhe deu uma nova confiança. Ele gostava. Gostava demais. Mamoon resgatou uma parte de si mesmo e, assim, passou a querer aquilo o tempo todo. E depois ainda queria mais. Mais prolongamentos”. Quando Harry perguntou que tipo de prolongamentos, Marion disse: “Se eu contasse e você pusesse no livro, seria a única coisa que alguém iria saber a meu respeito”.
“Você já refletiu sobre isso?”
“É claro.”
“Ao mesmo tempo, você quer contar o seu lado da história, não é?”
Ela respondeu: “Ele vai me contestar, eu sei. Vai rir, dar de ombros, me acusar de louca, uma estratégia comum dos homens. Há pouco tempo, para um jornalista, ele me acusou de ser um balão de fantasias desenfreadas, até uma realista mágica — histórias para crianças! Isso de alguém que inventa pessoas e as faz falar e depois morrer, e tudo para ganhar a vida! Mas eu vou ter que falar, antes de partir”.
Harry empurrou o gravador para mais perto dela. “A que você se refere?”
“Desligue esse maldito aparelho.” Harry apertou um botão. Ela sorriu, agarrou o gravador e jogou-o longe, no corredor, antes de pedir que ele fechasse a porta.
Marion contou que havia duas mulheres inteligentes, atraentes, casadas, que ela conhecia, suas amigas havia anos, a quem iria apresentar Mamoon. Certa noite, Mamoon disse que elas eram atraentes. Estava entediado de Marion. “Eu não conseguia mais fazer seu pênis sorrir. Ele ia ficar com elas, aquilo serviria para apontar um pouco seu lápis.”
Mamoon disse que tinha virado um utilitário, que proporcionava o máximo de felicidade a um grande número de pessoas. Também se sentia desanimado. O pai havia morrido e ele andava se recriminando. Havia brigado fisicamente com o pai, o derrubado da cadeira e atirado o velho contra a parede.
“Sim, ouvi falar disso. Mas quais são os detalhes?”
Marion contou que o diretor da escola de Mamoon, e também a esposa do diretor, eram amigos queridos e muito antigos do pai dele. E o homem — “que, por acaso, tinha só uma perna” — fizera a gentileza de deixar Mamoon estudar na escola por um preço mais baixo. Constatou-se, mais tarde, que Mamoon, com quinze anos, andou trepando com a esposa do diretor, enfermeira da escola, na enfermaria, quase todos os dias. Ela também havia emprestado livros para ele e lido seus primeiros contos, corrigia os textos dele, o incentivava, dizendo que ele levava jeito, que tinha aquilo que todo mundo queria e que a maioria das pessoas não tinha: talento. Mamoon percebeu que quando escrevia era amado e admirado. Literatura era um abridor de pernas. Um bom parágrafo era melhor do que algumas taças de vinho.
Marion disse: “O diretor não descobriu nada, só quando Mamoon já tinha vinte e poucos anos. Então, depois que a mulher morreu, o diretor resolveu falar para o pai de Mamoon que a infidelidade da esposa havia maculado os últimos anos da vida dele. A mulher disse que tinha amado Mamoon. O diretor ficou envergonhado”. Marion fingiu um sotaque indiano paternalista. “O pai disse a Mamoon: ‘Seu sacana nojento, você nos cobriu de vergonha a todos, trepando com aquela mulher, logo uma amiga da família, e ainda mais nas dependências da escola, enquanto recebia um generoso desconto para poder estudar lá! De que outras fraudes você ainda será capaz?’.”
“‘Mas na época ela se mostrou muito entusiasmada e agradecida’, respondeu Mamoon. ‘Por que isso irrita o senhor? Está com ciúmes? Ela disse que era solitária. Eu era a segunda perna. Eu tinha um corpo de matar e ela abria minha braguilha com os dentes. Seu amigo a deixava morta de tédio. O senhor devia ter me mandado um telegrama de congratulações por dar alegria a ela.’” E Marion prosseguiu: “Como você pode imaginar, foi nesse ponto que o pai, cada vez mais exaltado, deu um tapa na cara de Mamoon. E Mamoon, que na época era muito forte e praticava halterofilismo, levantou o pai do chão e o atirou para o outro lado da sala, na direção da lata de lixo, como se ela fosse uma cesta de basquetebol.
“Em uma etapa posterior da vida, Mamoon sentia vergonha e remorsos e se preocupava muito com o pai. Cheguei a levantar a possibilidade de o pai dele ser gay.”
Harry quase ficou chocado. “Como isso foi recebido exatamente?”
Mamoon levou a sério. As peças se encaixavam. O pai de Mamoon teve um casamento arranjado, brigava com a esposa o tempo todo, saía quase todas as noites para jogar e bebia furiosamente. Mas nunca saía com mulheres e, repetidas vezes, dizia para o filho nunca se casar. Mamoon começou a se perguntar se a sua bizarra sexualidade adolescente não seria reflexo das confusões de seu pai.
Marion disse: “Como você já deve ter descoberto, Mamoon é uma espécie de toca-discos automático de Nietzsche, com uma citação na ponta da língua para qualquer ocasião. E ele gostava especialmente desta: ‘Aquilo que no pai fica em silêncio fala no filho’. Nós debatíamos sobre isso com muito ardor. Afinal, durante a detumescência, há sempre uma conversa, e é aí que o amor começa. Acompanhados por duas ou três garrafas de vinho, passávamos noites inteiras conversando, pondo tudo em pratos limpos. Éramos muito íntimos e morávamos juntos, porque ele dava aulas nos Estados Unidos”.
Harry perguntou como foi aquela época.
Marion riu. “Era maravilhoso estar com ele. Mas também havia conflitos. Sempre havia conflitos com Mamoon. Tinha havido as inevitáveis desavenças com as autoridades, que culminaram numa acusação de misoginia e assim por diante.”
Harry disse que tinha ouvido falar do assunto e que ia investigar. Perguntou a ela sobre os detalhes.
“Eu morava com ele nos arredores da universidade fazia alguns meses”, disse Marion. Mamoon fazia questão de ter um espírito independente da instituição. Mas sabia como despertar o interesse das pessoas por ideias. “Então, infelizmente, ocorreu o incidente com a palestrante feminista negra, a quem ele disse, numa festa: ‘Não há a menor dúvida, ser negro hoje em dia é uma carreira pronta e completa, não acha?’.”
“E o que aconteceu?”
“Uma brigalhada sem tamanho. Isso, somado a seu comentário de que havia uma grande incidência de psicose na comunidade afro-caribenha por causa da ausência dos pais, acabou fechando as portas para ele. A coisa ficou feia. Tivemos de fazer as malas e cair fora de lá bem depressa. Foi como se tivéssemos sido expulsos da cidade.”
“E ele ficou aborrecido?”
“Claro que disse que não queria ser privado da juissance do racismo justamente porque tinha a pele marrom e havia ele mesmo sofrido por causa daquilo. Está claro, disse ele, que deve ser um dos maiores prazeres do mundo odiar os outros por razões mais ou menos arbitrárias, aleatórias.”
O resultado foi que ele nunca mais pôde lecionar outra vez. Aquilo lhe custou algum dinheiro. Mamoon ficou mais aborrecido do que conseguia admitir, pois tinha coisas importantes para dizer sobre o ofício a que havia dedicado a vida. De certo modo, ele se viu envolvido por aqueles debates vãos. Não conseguia entender aquilo e precisava de “consolo”, dizia.
“Consolo feminino?”
“Eu disse a Mamoon que, como eu havia sacrificado muita coisa para ficar com ele, não podia aceitar que ele desse em cima das minhas melhores amigas na minha frente. Ele me chamou de chata e mal-humorada. Teve a audácia de dizer que eu não sabia chupar seu pau direito.”
“Ah, minha cara, você precisa tomar cuidado com seus dentes”, disse Harry. “Acho que você sabe disso. Você deveria ter praticado um pouco.”
“Acredite, menino, eu seria capaz de sugar o cérebro dele pela bunda e soprá-lo pelo ralo do banheiro.”
Harry perguntou: “Como ele era na cunilíngua?”.
“Entusiasmado, às vezes. Mas impreciso. E depois…”
“Depois?”
Ela disse: “Quando um homem não quer comer você por fora é porque está farto de você”.
“Essa deve ser uma das lições mais difíceis da vida.”
Ela prosseguiu: “De fato, Mamoon era capaz de congelar você, até que eu não consegui mais aguentar tanta ansiedade. Sexo a três não era meu forte, eu tinha experimentado. Os homens acham que gostam disso, mas têm os olhos maiores do que a pica. Se já é raro um homem satisfazer uma mulher, que dirá duas. De qualquer forma, decidi que aquelas mulheres podiam se unir a nós, se quisessem — uma de cada vez. Por que não? Já não tínhamos vivido a década de 1960? Por que ser convencional, por que dizer não para tudo? E elas eram mulheres livres. Fizemos aquilo algumas vezes. Mamoon disse que era a coisa mais excitante que já havia feito”.
“Por que as mulheres fizeram isso?”
“Foi a primeira vez, eu acho, que ele viu que podia explorar sua posição, seu poder e seu carisma para seduzir e usar alguém. Como ele dizia, ser famoso, inteligente e bonito faziam dele um chamariz irresistível para mulheres na menopausa. Estava a tal ponto interessado em certas coisas que o mundo parecia vibrar em torno dele. E aquelas mulheres eram curiosas. Mas tinham maridos, filhos e vidas, e não estavam disponíveis toda vez que ele queria. Mamoon então teve a brilhante ideia de chamar profissionais para se juntar a nós.”
“Quantas vezes?”
“Quase todas as noites durante algumas semanas apenas. Ficamos tão dominados por aquilo que abrimos um grande buraco nas finanças dele, mas não que ele tivesse se importado com isso. Por que se importaria? Acho que boa parte do dinheiro era de Peggy, e Mamoon achava que ela lhe devia aquilo.”
“Vocês bebiam e se drogavam? Havia outros homens envolvidos?”
“Ele ficou muito empolgado.”
“Como posso saber se isso é verdade?”
“Existem cartas.”
“Se vamos pegar Mamoon de jeito, preciso ver as cartas.”
“Precisa mesmo?”
“Do contrário, ele pode dizer que você não passa de uma fantasista doida.”
Marion hesitou um momento antes de se levantar e levar Harry para fora da sala. No corredor, ela empurrou a porta de seu quarto.
Na frente de Harry, emoldurada na parede, havia uma grande reprodução da fotografia de Mamoon tirada por Richard Avedon, que Harry só tinha visto do tamanho de um selo de correio, na capa de um livro. De paletó e gravata, envolto em fumaça de cigarro, Mamoon devia ter quarenta e poucos anos, cabelo escuro, olhos pretos, angustiado, um homem com força para encarnar, com alma de poeta, um Camus asiático. No devido tempo, Mamoon, o transgressor radical — para quem a linguagem precisa era sempre revolucionária —, iria discutir e brigar com seus colegas escritores; seria banido de vários países por causa de suas opiniões políticas ou religiosas; iria angariar um punhado de fatwas e numerosos prêmios e condecorações, dos quais ria; e ainda iria escrever bons livros.
“Está vendo?”, perguntou Marion.
Com ela atrás dele, Harry continuou olhando: caso tivesse esquecido por que havia adorado Mamoon quando jovem — o cara durão, o artista de vida difícil que encarava as trevas sem hesitar e falava o que via, pondo a verdade e a autenticidade acima da segurança —, aquele retrato de orgulho, autoconhecimento e glamour serviria para refrescar sua memória.
Como Rob gostava de reiterar, a verdade é que todo escritor, e de fato qualquer artista, era o diabo que rivalizava com Deus em criatividade, tentando até superá-lo. Deus era, seguramente, a criação mais fatal do homem; o diabo, brincadeira de criança. Com sua insistência em ser adorado e admirado, era Deus quem tornava necessário o argumento da arte, para manter aceso o fogo da dissidência nos homens e nas mulheres. Essa dissidência era o artista, que com sua imaginação abarca a razão e a desrazão, o baixo e o alto, o sonho e o mundo, os homens e as mulheres.
Platão, e também o último papa, reconheceu como é perigoso ter um artista por perto fazendo travessuras, misturando as coisas com a colher da verdade e com o tóxico da fantasia e da magia. E assim, por ter atravessado a fronteira, e por roubar o fogo de Deus, os artistas foram banidos, aprisionados, condenados, silenciados, mortos — e sempre seria assim com esses ocasionais Cristos da página.
Deve ter sido essa ideia fáustica de Mamoon como herói e santo transgressor, aquele que enfrenta Deus e os justos, que despertou a paixão de Harry, a imagem que o conduziu àquele quarto, seguido por aquela mulher, que havia dormido sob o retrato noite após noite durante anos. Era também a imagem do homem que Harry tinha desejado se tornar em determinada altura da vida. No entanto, agora Harry não era o tema, mas apenas o ilustrador. E Harry se perguntou de que maneira poderia se tornar mais semelhante à imagem do retrato? Em que medida tinha sido corajoso ou audacioso?
Marion beijou os próprios dedos e tocou-os na fotografia.
Harry notou que não havia nenhum lugar para sentar senão ao lado dela, em sua estreita cama de solteiro. Acima da prateleira limpa, havia fotografias de seus filhos quando jovens. Harry disse a ela que eram crianças lindas.
“Mulheres não devem cair fora”, disse ela. “Meus filhos me puniram. Quando fui embora, um deles tentou se matar e ainda está louco, no hospício. O mais novo não me deixa conhecer meus netos.”
Marion pediu a Harry que puxasse uma caixa de sapato que estava embaixo da cama. Da caixa, ela pegou as cartas, que eram umas cinquenta. Marion abriu duas delas e deixou-o ver a data, o “Querida Marion” e o “todo o meu amor, Mamoon”, na conhecida letra diminuta do escritor.
Marion disse: “Durante esse período, ele vivia dizendo que eu o entediava e que ele não se sentia mais vivo. Que se eu não inventasse coisas novas para fazermos, ele ia enlouquecer. Era fascinado por estilos de fazer amor, pelas maneiras diferentes como as mulheres reagem, mexem, beijam, e por como ele se renovava a cada vez. Para ele, era uma coisa quase que de polícia científica.
“Sugeri que podíamos pedir que homens se unissem a nós e que ele podia ficar olhando, se quisesse. Ele olhou; ele quis participar. Mamoon parecia unir forças com os outros homens. Havia muitos deles. Mamoon começou a me obrigar a fazer coisas que eu não conseguia fazer para agradá-lo. Cenas tão depravadas que me dá enjoo só de pensar. Tiger burning...
“Ele queria um êxtase acelerado, como ele dizia, aquilo que Poe chamou de ‘infinito de excitação mental’… Mamoon afirmava, o que era muito estranho vindo dele, que aquele extremo, aquela transgressão repetida e aquele sacrilégio eram a coisa mais próxima de uma experiência religiosa que ele havia conhecido. Nisso, dizia Mamoon, ele podia se perder por inteiro, de maneira fecunda, e trair o pai vezes e vezes seguidas. Ele entendia a ideia de multidão e de como aquilo era capaz de tirar a pessoa de dentro de si mesma. E isso dito pelo mais fervoroso adepto do individualismo.
“Fiz amor com pessoas que, se não fosse por isso, eu jamais teria tocado. Era perigoso na época, mas eu era capaz de fazer qualquer coisa para mantê-lo comigo. Qualquer coisa.”
“Ele machucou você?”
“Agora, recordando o que aconteceu, eu me sinto violentada. Eu fui usada. Fui tola ao pensar que ele iria me amar sempre, que ia casar comigo.” Marion disse: “Na época, ele era forte. Agarrava meu rosto e empurrava na direção do púbis de um homem qualquer e eu me lembro de pensar assim: ‘Você me machucou pelo seu prazer. Isso vale mais do que eu, para você’. Há muita degradação no sexo, não acha?”.
“Quando é feito direito. Você quer dizer que ele era um pervertido?”
“Afinal, você é um escritor sério ou está trabalhando para um tabloide sensacionalista, o National Enquirer?”
“Para o Enquirer.”
“Aprendi que o sexo de verdade é louco, louco, louco”, disse ela. “Pode passar por cima de todo o resto, sobretudo do bom senso e da inteligência. E é bom você não se esquecer de uma coisa: ele me amava muito, mesmo quando me odiava. Eu o conquistei sexualmente, e ele era meu. Felizmente, Mamoon viajava muito, ao mesmo tempo, e me escrevia fazendo vários ‘pedidos’ que eu teria de satisfazer quando ele voltasse para casa.”
“É mesmo?”
“No fim, Peggy, que não andava bem nem da cabeça nem do corpo, pediu para ele voltar. Mamoon hesitou por alguns dias. Imagine se ele simplesmente largasse tudo. O que ia perder, o que ia ganhar? E quanto a ela? Obrigação de amor? Nunca vi Mamoon tão angustiado. Fui tola: falei que eu ficaria com ele de qualquer jeito que fosse. Ele me deu um beijo e disse adeus. Eu acreditava que ele ia casar comigo. Não pensei nem por um momento que nunca mais ia vê-lo.” Ela prosseguiu: “Desconfio que Mamoon voltou para ver outra mulher — não a Liana. Ainda não tinha chegado a vez dela”.
“Outra mulher? Sabe que mulher era essa?”
Marion deu de ombros. “Você sabe? Sim, é óbvio. Você sabe.” Como ele não disse nada, ela continuou. “Só mais tarde, lendo o que ele escreveu, eu soube que as experiências que tínhamos vivido o haviam traumatizado. Ele só conseguiu processar toda aquela experiência brutal depois de se fechar num quarto durante meses. Acho até que ele ainda acreditava que poderia dar as costas para a sua sexualidade e sublimar aquilo por completo.
“Peggy continuou tocando o barco por dezoito meses. Ela criava o ambiente de que ele precisava, onde ele escrevia aquele texto horroroso, um dos livros mais feios que já li, com um sadismo que creio ser bastante inconsciente, pois na verdade ele ama as mulheres. Mamoon era o mais consciente dos artistas, mas sabia que existiam certas coisas que era preciso deixar de lado, quando ocorriam com a gente mesmo, e que eram a essência de algo verdadeiro.”
Harry disse: “Preciso lhe pedir uma coisa. Tem certeza de que não posso ver as cartas dele para você? Não posso copiá-las? Podia fotografá-las com o meu celular. Podia ajudar você a negociá-las com uma universidade americana. Nem é preciso dizer que você pode ganhar um bom dinheiro com elas”.
Marion riu. “Tenho consciência disso e preciso terrivelmente de dinheiro para cuidar da saúde. Não sou tão burra assim, Harry. Esse material vai render um capítulo no seu relato. Estou segurando um pouco isso, por enquanto, porque para mim vai render um livro inteiro. E o meu vai ser muito mais picante, apaixonado e vulgar do que o seu. Conheço as outras mulheres envolvidas e elas vão me dar respaldo com suas recordações, contanto que fiquem anônimas. E já comecei a escrever meu livro. Você e eu estamos apostando corrida?”
Harry disse: “Vindo de mim, isso pode soar um pouco presunçoso, mas por que você teria interesse em expor esse material tão particular?”.
“Imagine se a amante de Flaubert tivesse escrito um livro sobre ele. Ou a noiva de Kafka. Como seria a companheira de um escritor? Depois do meu relato da minha vida com ele, Mamoon e eu ficaremos juntos, lado a lado, para sempre.” E acrescentou: “Ele me amou e me explorou. Agora posso fazer a mesma coisa com ele!”.
“Bem sensacionalista.”
“Não são as vozes das mulheres que costumam ser suprimidas? Você tem inveja de Mamoon e nunca vai saber como é amá-lo. Eu vou oferecer o ponto de vista do quarto de dormir, o retrato da intimidade. Se você quer conhecer um homem, veja como ele é no amor. Não é aí que reside a verdade?”
“Sim, mas a verdade sempre mente. Pode estar na complexidade da obra.”
“Isso é só o álibi.”
Harry disse: “E se ele quisesse ter você de volta?”.
“Eu iria correndo para ele num estalar de dedos, mesmo agora. Você dirá isso a ele? Mamoon era cruel, bonito e genial, tudo o que um homem deve ser. Harry, pronuncie meu nome diante dele e observe seu rosto, combinado? Ele sabe muito bem que continua a ser meu, que não vai escapar de mim.”
Na porta, ela ofereceu o rosto a Harry. Ele beijou sua bochecha e viu que ela queria lhe oferecer a boca. Talvez fosse seu último beijo. Por um breve instante, Harry lhe ofereceu a boca. Por que não? Ela tentou puxá-lo para si, mas Harry afastou as mãos de Marion de seu corpo.
“Ainda tenho sensações físicas”, disse ela. “Se você me ajudar, eu lhe mostro as cartas.”
“O que você quer dizer?”
“Estou cansada. Você volta amanhã? Pode vir só mais um dia? Vou ter uma coisa importante para você.”
No dia seguinte, Harry ficou sabendo que poderia ler algumas cartas na cama de Marion, onde ela ficaria deitada a seu lado. Ele ficaria de camiseta e calça e ela teria permissão de tocar só a parte de cima de seu corpo: peito, ombros, cabeça e cabelo. Harry não fez objeção a suas carícias; achava que estava satisfeito por ser útil e, de todo modo, sentia-se mesmo tenso, por muitas e boas razões.
Enquanto as mãos dela o tocavam, Harry se dedicou ao material: eram cartas de amor, com pedidos de encontros disfarçados do desejo de que outras pessoas os acompanhassem em “caminhadas”. Apesar das promessas de Marion, e de frases sobre como “aquela noite” tinha sido importante para ele naquela fase de sua vida, e de como ele estava “revivificado” e “interessado” mais uma vez pelo que chamou de “cenário humano”, não havia provas substanciais nas cartas.
Tudo o que Harry fez foi agradecer a Marion, depois beijou-a e despediu-se. Escreveria, caso precisasse de mais alguma coisa.
“Por favor, volte… a qualquer hora que quiser”, disse ela, segurando suas mãos. Harry se perguntou se ela o deixaria mesmo ir embora dali. “Por favor, vou tentar encontrar outras fotografias e bilhetes. Diga-me, você tem pena de mim, de uma velha solitária sem nada a não ser algumas recordações de um escritor?”
“Admiro você, Marion.”
“Por quê?”
“Por ser uma fundamentalista, por abrir mão de tudo em favor de uma ideia — o amor. E de continuar a viver assim.”
“E você? Teria sacrificado tanta coisa também?”
“Para mim, o mundo está repleto de mulheres. Muitas delas, um número grande delas, são simpáticas.”
“Os amores em série mantêm você a salvo e isso é a coisa mais perigosa que existe. Você nunca sente falta de ninguém e, se não existe sacrifício nenhum, não existe amor.”
Harry perguntou como ela encarava seu amor agora, se como devoção ou como o canto de sereia do masoquismo.
“Até você falar, eu achava que era devoção. Agora você me revelou.”
O autossacrifício era o vício mais difícil de abandonar. Harry disse: “Mamoon se sentia incomodado com todo esse amor implacável e essa possessividade em cima dele”.
“Isso é o que você sentiria. Sei que certos homens fracotes têm medo das mulheres. Mas por que você diria isso dele?”
“Ele fugiu.”
“Então, no final das contas, ele é a vítima.”
Harry disse: “Imagino que seja maravilhoso se apaixonar, mas sair disso, perder a ilusão, essa é que é a arte necessária, que deve ser proveitosamente aprendida”.
“Suponho que seja isso que você vai escrever. Então preciso escrever meu livro.” Ela suspirou. “Parece que arruinei minha vida e você parece que salvou a sua.”
“Não tão depressa”, disse Harry. “Minha namorada e eu fizemos um exame de sangue em Londres e ela vai ter um filho. Conversamos sobre filhos, mas nunca chegamos a concordar em nada mais definido. Eu mesmo ainda me sinto um adolescente.”
“Você está com uma imagem errada de si mesmo”, disse Marion. “Isso é muito perigoso.”
“Mas como enxergar direito?”
“Esse é o problema.”
“Como, como?”
“Ela já está feita, a visão correta”, disse Marion. “Você viu. Agora você oculta. Você se esconde de si mesmo.” Ela o beijou. “Não esqueça, convencionalmente falando você possui aquilo que a maioria das pessoas deseja. Mande-me uma fotografia da criança.”